Com os discos' Courage' de 1968 e 'Milton' de 1970, Milton Nascimento se tornou um dos músicos mais influentes da Música Popular Brasileira, símbolo de potência e singularidade
Redação Publicado em 01/02/2023, às 17h00
Milton Nascimento não havia chegado aos 25 anos quando gravou seu disco de estreia, mas ele soa experiente, como se estivesse há tempos pelos bailes da vida. Na verdade, é isso mesmo: Bituca, como era conhecido entre amigos, há anos atuava como músico na noite mineira enquanto se aventurava escrevendo suas próprias canções, que aos poucos se tornavam conhecidas.
O ponto definitivo de virada foi Travessia (1967), aclamada com o segundo lugar no II Festival Internacional da Canção (FIC) de 1967. Clássico instantâneo, a parceria com o amigo letrista Fernando Brant tornou Milton a nova voz a ser acompanhada na afluente cena da MPB da época. Outra original, “Morro Velho”, alcançou o sétimo lugar no mesmo festival, que também elegeu Bituca como “o melhor intérprete”. O sucesso no evento de alcance nacional acelerou sua estreia em formato long play, a convite da gravadora Codil, justamente a responsável pelo disco oficial do FIC.
Batizado com seu nome, como era praxe na época, este álbum singular é um perfeito cartão de visitas para o artista respeitado que Milton almejava se tornar – o que não demorou a acontecer, diga-se. Já está tudo lá em Milton Nascimento, tão eficiente (e discretamente) como o mais mineiro dos cariocas seria capaz: as melodias agradáveis e complexas, o timbre manso e envolvente flutuando sobre versos enigmáticos de histórias íntimas, os arranjos intrincados com texturas delicadas.
Curtas e inéditas, as dez faixas exploram os diferentes estilos por onde Milton tão bem circulou nas décadas seguintes. Ouvidos menos atentos podem interpretá-lo como um álbum de bossa nova, ainda que esbarre no jazz, no samba e até no recém-surgido tropicalismo, além de convocar ritmos africanos e regionais pelo caminho. Tudo foi devidamente contemplado pelos inspirados arranjos do pianista Luizinho Eça, que liderou o grupo Tamba 4, aqui responsável pela instrumentação. Provavelmente, este é o disco menos “fora da caixa” da carreira de Milton, mas mesmo domado, ele parece confortável e inspirado, conduzindo o violão com tranquilidade, a voz exprimindo autoconsciência.
Apesar da onipresença potente de Travessia (fortalecida pelo arranjo épico de Eumir Deodato), são as canções escritas por Milton sozinho que melhor exibem seu virtuosismo como cantador de histórias: além da já citada “Morro Velho”, “Canção do Sal” e a instrumental “Catavento”, com marcante solo de flauta de Danilo Caymmi, (todas essas lembradas na recente turnê derradeira, A Última Sessão de Música). Cada uma a sua maneira, as músicas denotam outras características interessantes do corpo de trabalho de Milton: o olhar nostálgico melancólico de suas letras e a sofisticação natural com que embala melodias alegres e doloridas.
Mesmo repercutindo menos do que os outros álbuns, Milton Nascimento hoje é entendido como uma das estreias mais consistentes de um cantor-compositor daquela geração. Rebatizado mais tarde
de Travessia (e com a ordem das faixas trocada, para capturar o sucesso do primeiro hit), o álbum representa um artista maduro e pronto para voos mais ambiciosos, o que veio a acontecer no álbum seguinte, Courage, gravado nos Estados Unidos. Mais do que isso, de um jeito que é só dele, Milton nos avisava que não estava nessa para passar despercebido.
Apesar de ser considerado o segundo álbum de inéditas de Milton Nascimento, Courage é uma releitura de seu primeiro projeto com foco no mercado estrangeiro. Sobre a viagem insólita, Milton se recorda com nostalgia:
Foi um negócio esquisito, porque eu estava saindo de Minas Gerais, aparecendo em um festival e, de repente, estava em Nova York, em um dos melhores estúdios. Não acreditei que pudesse existir uma coisa daquelas”, ele contou à Rolling Stone Brasil em 2011.
De fato, o trabalho de três dias no estúdio Van Gelder (na verdade, em Nova Jersey), conhecido por suas gravações de jazz, confere um ar de sofisticação internacional a Courage. Nada menos do que sete das músicas de Milton Nascimento estão no álbum, dessa vez rearranjadas e conduzidas pelo maestro Eumir Deodato. Ainda as mesmas no âmago, as canções soam mais grandiosas, com toques de brasilidade acentuados pela percussão de Airto Moreira.
Dentre as inéditas, chama a atenção a faixa-título, com letra do primeiro parceiro Márcio Borges e adaptada para o inglês por Paul Williams. Rebatizando metade das canções – “Travessia” virou “Bridges” (também cantada em inglês), “Canção do Sal” virou “Saltworkers Song” etc –, Milton se permite olhar para fora sem perder qualquer traço da identidade brasileira.
É em Courage que Milton começa a tradição de estar muito bem acompanhado por músicos internacionais – aqui é o pianista Herbie Hancock, que Milton conheceu em um sarau na casa de Marcos Valle. Além de Hancock, que adiciona seu virtuosismo de bom gosto a todas as faixas, mais de 40 músicos contribuíram com cordas e sopros. Gravado entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969 com produção de Creed Taylor, Courage é um trabalho à altura do potencial universal da
música de Milton, ainda que distante de grandes experimentalismos.
Se não foi o passaporte definitivo para o mercado internacional, Courage no mínimo carimbou novos territórios. A icônica foto de Pete Turner, especializado em artistas negros, captura Milton formando um coração com as mãos. Já na contracapa, um texto de Ralph J. Gleason, cofundador da Rolling Stone EUA, exalta a universalidade do ainda desconhecido brasileiro:
“Neste mundo de tão variados povos, há agora mais um cuja música é capaz de ‘falar’ todos os idiomas. E isso só nos traz grande alegria!”.
Na virada da década de 1970, com três álbuns de experiência e mais acostumado aos palcos, Milton
Nascimento já era um artista propenso a aventuras sonoras. Ou talvez ele ainda quisesse provar algo a si mesmo. Intencional ou não, Milton representa uma ruptura com a fase inicial de sua carreira.
A capa, ilustrada por Kélio Rodrigues, exibe um poderoso rei africano e denota uma tendência de foco nas raízes. Com o apoio robusto da banda Som Imaginário (Wagner Tiso, Zé Rodrix, Tavito, Frederyko, Luiz Alves e Robertinho Silva, além da percussão de Naná Vasconcelos), Milton desvenda um artista mais leve, livre e audacioso. O ar de novidade é evidente em “Para Lennon e McCartney”. Composta durante uma macarronada pelos amigos Márcio Borges, Fernando Brant e
Lô Borges (irmão mais novo de Márcio), a faixa de abertura traz levada de suíngue roqueiro e um dos versos mais emblemáticos já gravados por Milton: “Eu sou da América do Sul / Eu sei, vocês não vão saber”.
A outra participação de Lô e Márcio, dessa vez em parceria direta com Milton, resultou em “Clube da Esquina”. Verdadeira pérola do disco, a canção embalada pelas vozes e violões de Milton e Lô é a
semente da união criativa que resultaria em um projeto conjunto dois anos depois – “apenas” o álbum mais importante da carreira de Milton e, provavelmente, da música brasileira. Não por coincidência, a sonoridade moderna de Milton parece apenas antecipar a exuberância e o experimentalismo abundantes em Clube da Esquina.
Outra maneira de descrever Milton é como um dos produtos mais “cinematográficos” da discografia de Bituca, no caso, literalmente. “Canto Latino” e “Maria Três Filhos” foram escritas para a trilha de Os
Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra (o cantor, inclusive, fez uma ponta no filme, interpretando o bandido Dim Dum). Lançado originalmente com dez canções, Milton foi remasterizado em 1994 e ganhou a adição de quatro faixas gravadas para outro filme, Tostão, a Fera de Ouro, que oferecem ao álbum um desfecho em alto astral. Além da poderosa “O Homem da Sucursal”, o destaque é “Tema de Tostão”, instrumental levado a berimbau relembrado nos shows recentes.
Instigando a curiosidade com escolhas pouco óbvias e sem medo de ousar, Milton continuava a soar diferente de seus pares na MPB. Mas o melhor, surpreendentemente, ainda estava por vir.
Courage (1968) e Milton (1970) são alguns dos discos resenhados no Especial 80 Anos de Música, uma edição exclusiva da Rolling Stone Brasil dedicada à Geração 1942, que reúne nomes essenciais da MPB, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e o próprio Milton Nascimento, além de um panorama global dos nascidos neste ano. O especial impresso já está nas bancas e ns bancas digitais. Clique aqui para saber mais.
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