Entrevista

Novo álbum de Travis narra "a maldição de viver em tempos interessantes", diz Dougie Payne

Com retorno ao Brasil marcado para novembro, banda escocesa celebra boa recepção do 10º álbum de estúdio, 'L.A. Times'; à Rolling Stone, o baixista Dougie Payne disseca produção do disco e ataca música criada por IA: "não é uma p*rra de um conteúdo"

Eduardo do Valle (@duduvalle)

Publicado em 23/07/2024, às 17h10
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- Travis (por Steve Gullick/Divulgação)

O anúncio de um show no Brasil no próximo dia 5 de novembro pegou os fãs do Travis de surpresa por aqui. Primeiro porque a apresentação põe fim a um hiato de quase 11 anos exatos desde a primeira passagem do grupo pelo país naquele longínquo festival Planeta Terra, em 2013; segundo porque coloca o público brasileiro na rota de um dos trabalhos mais interessantes da história do quarteto escocês.

Lançado no último dia 12 de julho, L.A. Times (BMG, 2024) é o décimo álbum de estúdio da banda, e um dos mais celebrados desde o sucesso experimentados por eles com discos como The Man Who (1999) e The Invisible Band (2001). Produzido por Tony Hoffer (veterano platinado de nomes como Beck, Air e Belle & Sebastian), o álbum acerta ao coordenar em seus pouco mais de 30 minutos uma série de inovações sonoras à identidade clássica do quarteto - prato cheio para quem os acompanha há décadas.

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Capa de 'L.A. Times' (Divulgação)

 

É também um álbum profundamente pessoal, explica Dougie Payne, o carismático baixista do Travis à Rolling Stone Brasil. Liricamente, L.A. Times é descrito como um álbum sobre as experiências do vocalista Fran Healy vivendo em Los Angeles na última década - com a cidade como alegoria para os tempos acelerados, controversos e profundamente polarizados que atravessamos.

"O que quer que aconteça em Los Angeles, na Califórnia ou em Hollywood, aquilo é um aviso do que vai acontecer em todo lugar, 20 ou 30 anos depois", explica Payne - ele próprio, vivendo no Reino Unido, distante da agitação de Healy em Los Angeles, como assim como os companheiros Andy Dunlop (guitarrista) e Neil Primrose (bateria). Sem fazer uma distinção ou levantar qualquer bandeira moral sobre o tom do disco, o baixista limita-se a dizer: "Acho que é realista. Não acho que seja realmente pessimista ou otimista. Fala de apreciar o agora."

"E agora tudo está muito polarizado. Há uma riqueza imensa e uma pobreza enorme, sem muito espaço entre eles. E todos estão atomizados, indo em direção a estes lugares distantes com pouquíssima conexão entre si. Parece que é para esse momento que estamos indo - vivendo em tempos polarizados. Então L.A. Times parece apropriado. É a maldição de viver em tempos interessantes - nós podíamos ter chamado o álbum de Tempos Interessantes também [risos]."

São esses tempos interessantes que aparecem na construção de cenários sonoros mais ou menos complexos, de faixas como "Live It All Again" em que temas como perda e superação se revelam em acordes melancólicos e surpreendentes; e em outros, como "Alive" ou "Gaslight" [ouça acima], onde o trabalho Tony Hoffer aparece mais vibrante e reluzente:

"[Hoffer] foi tão importante quanto Nigel Godrich foi em The Man Who e The Invisible Band. Ele trouxe tanto detalhe e musicalidade, além de atmosfera para as músicas, vendo coisas, pequenas coisas nas músicas, e elevando-as. E isso foi fenomenal", conta Dougie.
Dougie Payne (Getty Images)

 

"Arte não é um palavrão"

O tom celebratório do baixista, que se estende por quase toda a entrevista, apenas encontra resistência quando ele fala sobre o fênomeno atual de música criada por inteligência artificial - ou transformada em "conteúdo":

"Eu odeio essa palavra do c*ralho. Arte não é um palavrão. Não é algo para dar vergonha. É alimento para a alma e uma necessidade - tanto para quem faz, quanto para quem a consome. Não é uma p*rra de um conteúdo [risos]."

Retorno ao Brasil

São tempos interessantes e para lá de acelerados para a trupe e para o baixista. Sem abrir detalhes da apresentação no Brasil - a entrevista aconteceu antes do anúncio -, Dougie limitou-se a elogiar o público brasileiro, que também definiu como "fenomenal".

Antes de sair correndo para a passagem de som de um de seus shows lotados na The O2 Arena, em Londres, Payne apenas prometeu retornar. "É isso - estamos na correria", disse, não sem antes garantir, antes do anúncio do retorno: "Mas queremos voltar para o Brasil."

Confira a entrevista com Dougie Payne do Travis abaixo: 

Rolling Stone Brasil: L.A. Times fala da experiência de Fran Healy morando por uma década em Los Angeles - e o resto de vocês, onde fica?
Dougie Payne: O resto de nós está no Reino Unido, eu estou em Glasgow, na Escócia, Andy [Dunlop, guitarrista] está em Liverpool e Neil [Primrose, bateria] está no norte da Inglaterra. Então Fran é quem destoa - ele é quem torna tudo difícil, sabe? [risos] Mas sim, todos fomos para L.A. para gravar L.A. Times, ficamos lá por um mês. E o disco... bem, nós usamos diversas experiências de vida para escrever as canções, e você direciona algumas delas, mas elas costumam vir de forma mais abstrata. Então o álbum obviamente fala de amizades, da experiência de viver em L.A. por quase uma década, muito disso acaba entrando ali. Mas ele sempre foi um disco muito pessoal, que acaba trazendo uns temas específicos, com esse arco em comum, que não foi feito deliberadamente.

Rolling Stone Brasil: É como se, tratando das idiossincrasias da vida em Los Angeles, vocês falassem de temas mais amplos - um testemunho de nosso tempo, seria isso?
Dougie Payne: Você está completamente certo! É exatamente isso. É engraçado, porque Los Angeles, e particularmente Hollywood, é quase como a história do canário na mina de carvão. Você sabe - mineiros costumavam levar canários a minas de carvão para testar se existia algum gás venenoso adiante. Se o canário morresse, eles sabiam que deviam sair dali. Era um conto de advertência. E L.A. é isso. O que quer que aconteça em Los Angeles, na Califórnia ou em Hollywood, aquilo é um aviso do que vai acontecer em todo lugar, 20 ou 30 anos depois. Então você teve a idade de ouro de Hollywood nos anos 1930 e 1940. E então 20 ou 30 anos depois isso acontece no resto do ocidente, nos anos 1950 e 1960, há todo esse otimismo, e dinheiro, riquezas, e a busca pelo interesse cultural na segunda metade do século 20.

Dougie Payne (Getty Images)

 

E agora tudo está muito polarizado. Há uma riqueza imensa e uma pobreza enorme, sem muito espaço entre eles. E todos estão atomizados, dentro de seus pequenos carros, indo em direção a estes lugares distantes com pouquíssima conexão entre si. E isso parece estar se espalhando nas sociedades, parece que é para esse momento que estamos indo - vivendo em tempos polarizados. Então L.A. Times parece algo apropriado. É a maldição de viver em tempos interessantes - nós podíamos ter chamado o álbum de Tempos Interessantes também [risos].

Rolling Stone Brasil: E como você definiria a visão da banda sobre esses tempos - é otimista ou pessimista? Ou apenas realista, de repente...?
Dougie Payne: Acho que é realista. Não acho que seja realmente pessimista ou otimista. Fala de apreciar o agora. Podemos dizer que é uma previsão do que está acontecendo agora, mas o lance é que quando falamos de canções, de música em geral, sempre somos otimistas. Não em termos líricos, ou falando formalmente, mas é otimista - só o fato de fazer música é um ato otimista, uma forma pura de fé na humanidade. Porque é algo puro. Alimenta a alma. Minha mãe me disse uma vez: "sou tão feliz por você fazer música, você é uma força para o bem". E eu gosto disso. E acredito de verdade.

Enquanto houver gente real fazendo música de verdade - não IA [risos], vamos ficar longe desse papo -, mas gente real fazendo música, fazendo arte e não tratando-a como conteúdo, tratando-a com o respeito real que ela merece... veja, não é conteúdo. Eu odeio essa palavra do c*ralho. Arte não é um palavrão. Não é algo para dar vergonha. É alimento para a alma e uma necessidade - tanto para quem faz, quanto para quem a consome. Não é uma p*rra de um conteúdo [risos].

Rolling Stone Brasil: L.A. Times é o décimo álbum de estúdio do Travis. É um marco interessante. Onde você acha que o novo disco se encaixa dentro da discografia da banda?
Dougie Payne: Eu sei que provavelmente todos os músicos com quem você conversa devem falar que o disco que está lançando é o melhor que ele fez até então. Mas eu realmente acredito que este álbum esteja entre os melhores que lançamos. Musicalmente falando e em termos de performance, de composição... acho que ele está lá junto com The Man Who (1999) e com The Invisible Band (2001). É certamente algo de que nos orgulhamos.

Travis (Getty Images)

 

E não há como falar de como o álbum soa sem mencionar Tony Hoffer, que é incrivelmente importante. Tão importante quanto Nigel Godrich foi em The Man Who e The Invisible Band. Ele trouxe tanto detalhe e musicalidade, além de atmosfera para as músicas, vendo coisas, pequenas coisas nas músicas, e elevando-as. E isso foi fenomenal. Tão rápido, tão musical e tão preciso. Sonicamente, está entre as melhores coisas que já lançamos.

Rolling Stone Brasil: Então conte um pouco sobre o processo de gravação.
Dougie Payne: Foi fantástico. Tony é ótimo em conseguir boas performances das pessoas, ótimo em entender como ele consegue manipular performances e, pegar, digamos, uma ótima performance de bateria de Neil. E então ele vai modernizar, samplear, adicionar algumas coisas... Nós todos gravamos juntos e então vamos aprimorando e melhorando, sabe? Jogando as coisas para ver o que funciona. Então não tivemos um dia perdido, foi um bom momento. Estávamos em um ótimo estúdio chamado Dave's Room em L.A. e não poderia ser melhor. Todos amamos. Ele [Hoffer] nos lançava desafios, sabe? Me fez tocar baixo duplo, que eu nunca tinha tocado, o que foi... interessante [risos], mas que eu gostei. É bom testar coisas novas depois de tanto tempo tocando. É desafiador.

Rolling Stone Brasil: Vocês passaram pelo Brasil em 2013, no Planeta Terra - eu estava lá, foi um ótimo show, Vocês guardam alguma lembrança dessa visita ou do público brasileiro?
Dougie Payne: Nós lembramos porque foi a única vez que tocamos no Brasil. Foi naquele festival no estacionamento, certo? Lembro muito bem. Lembro do público ser fenomenal. E não sei por que não conseguimos voltar. Então estamos voltando para vocês. Não sei exatamente quando - há muito acontecendo, com o disco sendo lançado, mais a turnê pela Europa... sabe a The O2 Arena, em Londres? Eu estou exatamente aqui do lado [risos] [mostra a arena pela janela]. Nós tocamos ali com o The Killers noite passada. Vamos fazer mais cinco datas com eles, saio logo menos para a passagem de som. É isso - estamos na correria. Mas queremos voltar para o Brasil.

Ouça L.A. Times abaixo:

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