Como o olhar lúdico e o uso de uma antropofagia brasileiríssima ajudaram Rita Lee a traduzir suas influências de rock e jazz dos Estados unidos para seu repertório em português
por Mário Coutinho, especial para a Rolling Stone Brasil Publicado em 09/08/2024, às 11h00
Conheci Rita Lee aos onze anos. Minha avó fofocava com uma amiga em uma visita enquanto eu conversava com o filho caçula dela, que devia ter quatorze, quinze anos. Num clássico da socialização masculina, ele me mostrava sua coleção digital de pornografia. Não me lembro tanto das imagens quanto da organização, que faria um bibliotecário versado no sistema decimal Dewey suspirar: tudo em ordem cronológica e subcategorias específicas de bunda, peito, tatuagem, etc. Acima de tudo, lembro disso porque uma música que estava tocando me chamou a atenção. Perguntei o que era e ele me respondeu: “‘Lança Perfume’, é Rita Lee. Rita Lee é do caralho!”
Rita Lee virou “Caso Sério” desde então. Quando arrumei um toca discos e não encontrei nenhum LP dela, tratei de gravar músicas que passavam na rádio em uma fita cassete. Minha mixtape, só de Rita Lee, começava com “Agora Só Falta Você” numa gravação de rádio AM. Um exercício kitsch e custoso, coisa de adolescente obcecado.
Quando cito meu caso sério com Rita, omito o fato que talvez eu tenha sido mais leal do que fiel; ferinamente leal, escandalosamente infiel. Ouço muita coisa, hoje de maneira semi-sistemática. A vítima da vez é Mina, Mina Mazzini, La Tigre di Cremona, mas isso é assunto para outro texto. Outra paixão é o jazz. Mais especificamente o jazz vocal das décadas de 1930 e 1940 – de l’entre-deux-guerres – e ramificações, como o Sinatra das saloon songs, a sofrência da segunda metade dos anos 50 e dos 60 inteiros. Acontece que “Blue Moon”, de Lorenz Hart e Richard Rodgers, é uma das melhores músicas desse período. É também uma das melhores interpretações de cantoras como Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Julie London, a extraterrestre Mina e, finalmente, Rita Lee Jones.
Quando Rita morreu fiquei muito mal. Meu avô, que tinha a mesma idade que ela, estava indo e voltando do hospital e eu só sabia dele por telefone. Alguns meses depois ele também se foi, e de alguma maneira minha cabeça entrelaçou essas duas passagens de duas pessoas que só tinham a idade em comum: meu avô, sargento; Rita, Lee.
Com a segunda biografia dela em mãos, a que relata sua luta contra o câncer, me impressionei com a lucidez com que a sra. Jones-Carvalho encara a própria mortalidade. Meu avô não conseguia respirar e falar em suas últimas horas, e em resposta achei o silêncio e a linguagem do gestos mais apropriada, sinto que de certo modo me conectei com ele, o livro me fez refletir sobre o que ele estaria pensando naquele momento, a garra de se manter vivo. É desnecessário dizer que li em uma sentada só; a trilha sonora era da autora mesmo, e como ela citava poucas músicas, em contraste à primeira biografia, que é um testemunho de sua carreira musical, esta é mais pobre em referências musicais. A solução era deixar a música citada no repeat até que outra fosse apresentada. E aí que as que surgiram foram “Coisas da Vida” e nossa velha amiga “Blue Moon”.
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Ora, “Coisas da Vida” é a única música composta pela autora no piano. Rita descobrira que sua mãe, Romilda, ou Chesa, recebeu um diagnóstico de câncer. Sentou-se ao piano e minutos depois a música estava pronta. É minha música favorita de Entradas e Bandeiras (1976), acho que ela conseguiu imprimir a mesma sensação com “Minha Vida”, sua versão de “In My Life” que é uma das boas interpretações de Rita para Lennon/McCartney em português - o que é um tanto justo, pois tematicamente as duas canções estão mais que conectadas, tratam-se de balanços da vida feitos em momentos de crise, de confronto com a mortalidade.
O original de Rodgers & Hart não está atrelado a nenhum musical – para meu espanto. O balanço conta a história de alguém que estava na pior, sem rumo, eira nem beira, e é visto quase que suplicando por alguém. Logo os dois estão juntos, abraçadinhos - ou o equivalente, com o decoro adequado e próprio de 1934, claro. A música, um tanto vaga, não cita gênero dos amantes, o que para mim é golpe de mestre do ponto de vista comercial: uma música que pode ser cantada por intérpretes de qualquer gênero sem a menor adaptação; com nebulosidade, torna-se objeto de identificação por qualquer pessoa que já sofreu de amor - virtualmente todo mundo. Um clássico instantâneo. Lembro que Umberto Eco formulou um ensaio sobre Casablanca e a grande sacada era que o filme se torna um clássico por ser construído todo em cima de clichês. Neste sentido, “Blue Moon” é uma cena de Casablanca, um topos generalista, mas mas muito bem trabalhado, levado às últimas consequências.
A versão de Rita foi lançada no álbum Flerte Fatal, de 1987, composto em parceria com seu namorado humano Roberto de Carvalho. Rita diz em sua autobiografia de 2016 que mal se lembrava de ter produzido o disco: estava afundada nas drogas depois da perda de sua irmã mais velha Mary. Creio que isso tenha uma relação sentimental com o percurso que me fez chegar até aqui.
Quando pensamos em música e álbuns é sempre importante dar atenção ao contexto, cada canção está em seu lugar para que o produto final funcione, e a música que abre o disco, nesse sentido, é importantíssima. Aprendemos que, quando se trata de poesia épica, o primeiro verso é uma síntese da matéria tratada nos cantos. Penso que isso também se sustenta – com exceções, naturalmente – aos álbuns. Muitas vezes em inglês a primeira canção, ou a titular, é aquela que dá o título; Flerte Fatal quebra este padrão com “Brazix Muamba”, a faixa de abertura com vibe techno que lembra muito o Bowie de Let’s Dance, 1983.
“Brazix Muamba”, portanto, ditaria o mote do álbum, isto é, uma batida feita para ser dançada suando em uma discoteca no Bixiga (ao que Adoniran Barbosa, morto quatro anos antes, diria: “estão todos com os cérebros derretidos”). Uma música com uma batida eletrônica me remete ao cenário internacional, também com quezinho afrocubano nos metais, o x estrangeirizante junto com o africaníssimo muamba – do quimbundo ‘cesto longo’, também tem a conotação de feitiço no Candomblé – me dizem que Rita está de alguma forma seguindo algumas proposições do movimento antropofágico. Voltamos aqui em um segundo.
Agora gostaria de retomar “Blue Moon” e comparar as letras. A adaptação composta por Rita é uma versão reduzida, tento ao máximo equiparar os versos:
Blue moon, you saw me standing alone
Without a dream in my heart
Without a love of my own
Blue moon, you knew just what I was there for
You heard me saying a prayer for
Someone I really could care for
And then there suddenly appeared before me
The only one my arms will hold
I heard somebody whisper, ‘Please adore me’
And when I looked, the moon had turned to gold
Without a love of my own
Blue Moon, now, I'm no longer alone
Without a dream in my heart
-
Blue moon, você me viu tão chinfrim
Tão sem ninguém pra sonhar
Sem ter alguém só pra mim
Blue moon, Você sempre soube tudo
Você também lá no fundo
Procura um sol pro seu mundo
Mas de repente apareceu na frente
Um rosto estranho, mas familiar
Ouvi o amor dizendo: ‘finalmente
Você e eu debaixo de um luar!’
Blue moon, já não estou jururu
Eu tenho alguém pra sonhar
E pra dizer I love you!
Blue moon
Uuuh, blue moon
Uuuh, blue moon
Tuturu, turu, tururu
O esquema rímico do original fica algo assim A-B-A*-C-C-C-D-E-D-E-A-A-B, a versão brasileira A-B-A-C-C*C*D-E-D-B-F-B-F-F* – os asteriscos indicam aquilo que ouço como rima toante e no caso de moon e jururu não necessariamente rimas, mas uma aproximação sonora. Podemos ver que a versão não tem uma equivalência exata com o original, o verso de Rita Lee é mais enxuto que o dos alunos de Columbia. Rita, nossa poeta menor, só pode frequentar o Liceu Pasteur e um ano de Comunicação na USP, o que por sua vez faz com que ela expanda o refrão acrescentando solfejo.
A versão em português parece uma brincadeira, uma performance daqueles amigos musicistas talentosos que todos nós temos, que recriam músicas de memória e adaptam as partes que não lembram, o que Ella faz da maneira mais sublime com Mack The Knife num show em Berlim em 1960 – só Ella Fitzgerald para ganhar um Grammy porque se esqueceu da letra de uma música.
Mas não é por ser brincadeira que deixa de ser sério. Um dos poucos comentários sobre a música diz que é uma “versão respeitosa” para a canção, que era a predileta de sua irmã, Mary. Mary morrera em 1980. A canção em sua homenagem é construída quase como uma lembrança, como um retrato, uma vinheta. Ouvindo a abertura de Só de Você (Rita Lee e Roberto de Carvalho) desconfio que Rita já estava com “Blue Moon”, a versão de Billie Holiday, na cabeça desde 1982. Na época, porém, ela assumia a “persona non grata porra-louca”, como descreve a si própria quando sob efeito de drogas e no álcool:
"Não posso dizer que sofria no estado dito ‘alterado’. Ao contrário, eu me sentia ‘alterada’ quando estava sóbria e me percebia castrada de bom-humor e inspiração”, diz Rita em sua biografia.
A recepção negativa do álbum acabaria com que ela se concentrasse nos shows e fugisse dos jornalistas, rendendo carência de fontes – e talvez a pior e mais divertida frase já escrita em língua portuguesa está na página da Wikipedia do álbum, vai assim: “O álbum foi duramente criticado pela crítica, onde fez Rita pegar ódio dos críticos e de dar entrevistas”.
Voltando à letra, o modo como a compositora substitui os vocábulos mui germânicos “alone” e “own” pelos mui brazucas chinfrim e jururu me faz voltar a noção de antropofagia - domando os versos ingleses aos ouvidos brasileiros, sem perder um grama do sentido e emoção do original me remete mais uma vez ao conceito de antropofagia que percebo em “Brazix Muamba”, aproximando a canção do roquenrou próprio de Rita com o respeito à dignidade de um standard de jazz clássico. Fosse eu traduzindo, talvez uma das soluções seria elidir “my own” em “meu”, algo como “to call my own/se fosse só meu” - solução canhestra porque insere o gênero, acabando com o ar indistinto do original, além de ficar parecendo uma adaptação da Bibi Ferreira para o Paulo Autran. Rita brilhantemente devolve a bola no idioma original com o singelo “I love you”. Meu amigo estava certo, Rita Lee é mesmo do caralho.
Mário Coutinho é formado em Letras e mestrando em Arqueologia pela Universidade de São Paulo. Traduziu Jane Eyre (Clube de Literatura Clássica, 2022), organizou Nobreza de Sangue (Pandorga, 2022) e ensaia na crítica.
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