Traumas psicológicos, autodescobrimento e o fim da jornada de um guerreiro fadado a viver imerso em dilemas e tristezas
Igor Brunaldi Publicado em 10/08/2020, às 07h00
Nesta segunda, dia 10 de agosto, Samurai Jack completa 19 anos. Neste mesmo dia, em 2001, o Cartoon Network exibia o primeiro episódio desse desenho que não demorou para se tornar um clássico, e por motivos indiscutíveis.
Criado por Genndy Tartakovsky (mente responsável por também trazer ao mundo O Laboratório de Dexter, dirigir vários episódios de As Meninas Superpoderosas e ainda desenvolver o elogiado Star Wars: Guerras Clônicas), a animação se destacou por unir enquadramentos cinematográficos a uma direção de arte exemplar, além de usar trilha sonora e silêncio como elementos mais importante para a narração do que os próprios diálogos.
Em setembro de 2004, o conto do samurai do Japão feudal transportado para o futuro pela impersonificação das trevas chegou ao fim. De certa forma.
A 4ª temporada encerrou de um jeito um tanto quanto aberto, e a história de Jack ficou assim por treze anos, até que em 2017 Tartakovsky e a equipe responsável pelo universo criado até então decidiram contar o final definitivo do personagem.
Os dez últimos episódios do desenho, que compõem a 5ª temporada, foram lançados pelo Adult Swim, vertente do Cartoon Network responsável por produções voltadas ao público adulto. Apesar de nunca ter sido uma animação tradicionalmente infantil, o desfecho dessa aventura usou de uma maior liberdade criativa para assumir um tom surpreendentemente obscuro, com temáticas delicadas e dilemas existencialistas.
E essa atmosfera fica clara logo na premissa: 50 anos se passaram desde o último episódio da 4ª temporada e Jack ainda está preso no futuro. Mas com o tempo, ele percebe que não envelhece, e o passar dos anos traz para ele apenas uma crescente desesperança de voltar para casa e o desespero de ver tudo ao seu redor morrer, mas não acompanhar esse ciclo natural da vida.
A partir disso, e para comemorar os 19 anos do desenho, vamos fazer uma jornada pelos dez episódios da última temporada de Samurai Jack para mostrar que Tartakovsky orquestrou com maestria esse desfecho e encerrou de maneira impecável uma história que já havia ganhado o status de clássico.
A seguir, obviamente haverão spoilers definitivos do desenho.
O primeiro episódio não demora a mostrar de forma bem explícita que aquele Jack sereno e otimista não existe mais.
A exaustão e o desespero do protagonista são apresentados tanto através da aparência dele (como feições raivosas expressivas, cabelo e barba longos) quanto da postura muito mais agressiva, além da notável troca da katana, que o acompanhou por anos, por lanças tecnológicas, metralhadoras e revólveres.
O samurai esperançoso e amigável aparece agora como um ser consumido pelo ódio, ríspido e despido de todo e qualquer ideal moral que seguia antes.
Mas apesar do estranhamento que esse novo Jack pode causar, é impossível não compreender o estado em que ele se encontra, afinal de contas, há décadas ele é incessantemente caçado por capangas do antagonista Aku, além de ser constantemente atormentado pelo passado ao qual ele nunca conseguiu voltar, que o atormentam com visões de cadáveres, gritos de socorro e acusações vindas do fundo de uma mente que culpa pelo fracasso.
Como se não bastasse a carga emocional, o primeiro episódio apresenta também as Filhas de Aku, um grupo de sete mulheres nascidas da essência do vilão, treinadas e doutrinadas a acreditarem que Jack é a causa de todo o mal e destruição do mundo, e por isso, têm como único objetivo de vida matá-lo.
Com a predominância do tom geral mais sombrio, é interessante ver como é o próprio antagonista que protagoniza os momentos mais engraçados da temporada. Aku retorna mais carismático do que nunca, com um senso de humor ácido e irônico que tornam interessantes todas as esporádicas aparições dele.
Mas apesar de ter conseguido aprisionar Jack no futuro caótico que construiu, o vilão não está satisfeito com a situação que vive.
Ficamos sabendo que Aku também enlouqueceu ao ver que o passar dos anos não afeta seu maior inimigo, afinal de contas, como ele mesmo diz, esperava que o guerreiro simplesmente morresse de velhice, já que nenhum dos seus capangas robôs consegue matá-lo.
O episódio apresenta também uma versão de Jack que apenas ele vê, em momentos de surto, e que o confronta com verdades doloridos e questionamento existencialistas como a ideia de desistir da vida e se entregar à morte para encerrar o ciclo infindável de sofrimento que vive há tantos anos.
É também nesse ponto da narrativa que o samurai mergulha ainda mais no poço da insanidade.
Perseguido e atacado pelas Filhas de Aku, ele consegue cortar o pescoço de uma delas, para descobrir logo em seguida que elas são humanas e, pela primeira vez, ele matou uma pessoa.
Fisicamente ferido e mentalmente traumatizado (mais ainda), Jack passa o terceiro episódio escondido das seis Filhas de Aku restantes, que ainda o caçam, ao mesmo tempo que cuida do ferimento profundo que quase o matou.
Aliás, é exemplar o design de som no momento em que ele finalmente consegue arrancar a faca fincada na barriga. O ruído de carne e pele sendo rasgados tornam extremamente explícita uma cena que não seria tão impactante de ver se dependesse apenas da parte visual.
A situação e a consciência pesada de ter matado alguém fazem com que Jack se lembre de quando era uma criança, e viu pela primeira vez o pai matar alguém, e como, tranquilo após a matança, lhe ensinou que alguns confrontos na vida são inevitáveis.
E esse momento se mostra essencial para fazê-lo tomar a decisão de parar de fugir e enfrentar as guerreiras que tanto querem matá-lo.
A partir desse ponto, a história toma um rumo inesperado. Jack mata seis das sete Filhas de Aku, e decide proteger Ashi, a única sobrevivente, por se sentir culpado que ela só foi trazida a esse mundo de sofrimentos para matá-lo. Ou seja, a existência dela é culpa dele, assim como ela ter sido criada para e pelo o ódio.
Como se finalmente achasse um propósito que não fosse apenas fugir de ameaças constantes, o samurai decide mostrar como o mundo é de verdade, e como é muito diferente daquilo que foi ensinado a ela desde que nasceu e durante os anos de treinamento na torre do vilão.
Jack se propõe a convencer Ashi de que o criador dela é o verdadeiro inimigo do equilíbrio universal.
Nesse episódio que marca a metade da temporada, Jack viaja pelo mundo com Ashi para mostra evidências de toda a destruição causada por Aku.
Sem mais conseguir enfrentar esses fatos concretos, ela se vê em um conflito interno entre acreditar naquele que sempre lhe foi pintado como o vilão da história e deixar para trás tudo que sabe, ou se manter fiel às próprias origens.
Depois de ver provas suficientes, Ashi inicia a jornada rumo à redenção, apresentada quase que como uma antítese ao declínio mental de Jack.
Depois de conseguir abrir os olhos de Ashi para a verdade sobre Aku e o mundo, Jack foge e decide se rende ao destino que por tantas vezes implorou para que ele desistisse de lutar e acabasse com a própria vida.
Ela então sai em busca dele, e ao longo do caminho, encontra várias criaturas que o samurai ajudou nas quatro temporadas anteriores, que fazem Ashi enxergar não apenas a honra do amigo, mas também toda a bravura que ele inspirou nos outros.
E é exatamente isso que ela traz à tona quando finalmente o encontra, prestes a executar o harakiri, ritual no qual samurais tiravam a própria vida como demonstração de arrependimento por terem desonrado o código sob o qual vivem.
Esse momento representa o ponto de virada para Jack, que volta a acreditar na possibilidade de acabar com Aku e salvar o que resta do mundo devastado pelas trevas.
O sétimo episódio contrapõe de forma excepcional e artística as batalhas que Jack e Ashi precisam enfrentar.
O samurai mergulha em uma meditação profunda, na qual viaja por lugares desconhecidos até encontrar uma encarnação de Buda que faz a ele a pergunta mais simples e mais filosófica de todos os tempos: "Você está perdido?".
Em uma das cenas mais meticulosas e cinematográficas da temporada, ele faz chá e reflete sobre si mesmo em uma conversa eficaz sobre autodescobrimento, que o faz perceber o grande motivo por ter se distanciado do caminho nobre umas vez trilhado: a raiva que se manifestava na outra versão de Jack e aparecia ao protagonista nos momentos de desespero e frustração.
Enquanto isso, em contraponto, Ashi trava uma batalha frenética contra um exército inteiro para defender o corpo do amigo, e luta inclusive contra a própria mãe, em uma demonstração de ter renunciado por completo o passado.
O tom leve do oitavo episódio se destaca no meio do conto sombrio narrado até agora na quinta temporada.
Logo no começo, ele já apresenta como foco o início do interesse amoroso recíproco entre Jack e Ashi, com um cena divertidamente romântica na qual a sintonia do casal vem à tona enquanto eles lutam juntos contra um bando de tigres verdes assassinos.
Sempre preocupado em se defender e ocupado ajudando os outros, essa é a primeira vez em que o samurai demonstra interesse por alguém (em todas as temporadas), e consequentemente, a primeira vez que beija alguém.
Apesar de ter abdicado do passado como uma das sete assassinas conhecidas como Filhas de Aku e até ter matado a própria mãe, Ashi descobre da pior forma que não se livrou por completo da essência do pai, que habita no fundo do ser dela.
Em um confronto contra o arqui-inimigo, Jack se vê novamente obrigado a enfrentar uma Ashi controlada pelo pai, mas dessa vez completamente tomada pelas trevas.
Se ele não reagir, ela o mata. Se ele reagir, pode matá-la. Mais um conflito na vida do protagonista no qual nenhum dos dois resultados possíveis é favorável.
Uma trajetória conturbada como essa apresentada ao longo dos dez episódios da 5ª e última temporada de Samurai Jack não podia ter um final completamente feliz.
Por um lado, o protagonista consegue finalmente derrotar Aku e voltar para o passado, acompanhado por Ashi, com quem pretende se casar.
Por outro lado, se Ashi nasceu de Aku no futuro, e agora ele não existe mais no futuro, então isso significa que... isso mesmo.
Samurai Jack é o conto de um guerreiro fadado a viver dilemas existencialistas e as consequências de cada escolha que o atingem sem perdão.
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