3ª edição do Maloca Dragão realiza uma festa democrática em Fortaleza

Festival que comemorou os 17 anos do Instituto Dragão do Mar de Fortaleza mostrou a diversidade e a riqueza da cultura cearense

Antônio do Amaral Rocha, de Fortaleza

Publicado em 08/05/2016, às 12h55 - Atualizado às 20h58
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Conhecida por mesclar elementos do afrobeat e da música de cabaré, a cantora Anelis Assumpção se apresenta no festival Maloca Dragão. - Manuel Filho

A cidade de Fortaleza viveu quatro dias de muita cultura entre os dias 28 de abril e 1 de maio. A programação do 3º Maloca Dragão, organizado pelo Centro de Arte e Cultura para comemorar os 17 anos do Instituto Dragão do Mar, apresentou um festival com artes integradas, somando exposição de artes visuais, performances, espetáculos de teatro, dança, música, circo, cinema, feira literária com destaques para lançamentos e estreias, além de mesas de debates sobre temas como mercado musical, festivais, produção musical, comunicação, difusão, promoção e direção artística. Ao todo, foram mais de 150 eventos, a maior parte deles selecionados dentre 323 projetos que foram inscritos por chamada pública.

O imenso espaço do complexo do Instituto Dragão do Mar foi dividido em oito palcos e, ainda, os lugares de circulação foram utilizados para as apresentações de circo, brincadeiras infantis e feira de livros. As performances começavam sempre às 16h e avançavam até o meio da madrugada.

Na noite de quinta-feira, 28, no Anfiteatro Sergio Motta, o guitarrista Fernando Catatau (Cidadão Instigado) acompanhado de baixo, bateria e percussão, trouxe o projeto Instrumental, uma viagem pela sua já conhecida psicodelia. Teve rock, passou por blues e regionalismo e, ainda, ele contou com uma canja do mestre da guitarrada de Belém, Manuel Cordeiro. Os dois fizeram até uma música especial para o evento que chamaram de “Quem Erra É Humano”.

Na mesma noite, a banda pernambucana Mundo Livre S/A, fazendo lançamento do combo DVD-CD Mangue Bit ao Vivo, apresentou, no palco Praça Verde, um dos mais esperados shows de toda a festa, traçando um passeio pelos 30 anos de repertório da banda, largamente influenciada pelo samba-rock e cada vez mais parecida com Jorge Ben Jor. Esse show foi também o primeiro dos momentos em que a atual situação política do país, até então ainda um grito parado no ar, virou assunto. Foram ouvidos sonoros “Não vai ter golpe”, “Fora Cunha” e outras frases de protesto contra a repressão e retrocesso.

A noite de sexta-feira, 29, foi seguramente a mais disputada, tornando o espaço e as ruas adjacentes do complexo intransitáveis. Perto de 40 mil pessoas de tribos variadas deram o ar de sua graça. Em um pequeno palco interno do complexo, o La Cumbia Negra, composto pelo renomado produtor Miranda (tocando percussão), além de Gabriel Guedes (Pata de Elefante) na guitarra, fez algo parecido com um pocket show, visto que no mesmo momento estava se apresentando a banda sensação Verónica Decide Morrer em um palco bem maior. O grupo mostrou sua psicodelia com guitarras distorcidas e misturas de música peruana com ritmos do norte.

Ninguém ainda consegue explicar muito bem esse fenômeno da cena underground cearense chamado Verónica Decide Morrer, com a notável foi a performance do ator transformista Jomar, vestido de Verónica. O som é um rock básico, meio punk, agressivo, e em alguns momentos até viajante, mas o que importa aqui são as mensagens das letras, que tratam de “empoderamento, solidão, drogas, morte, submundo das travestis de rua e amor”. Tudo isso em um show escrachado, com teatro, dança e lembrando desde Secos e Molhados até David Bowie. O toque político e de afirmação de gênero também esteve presente em discursos de Jomar, especialmente uma referência ao decreto assinado por Dilma que permite às pessoas o uso de nomes sociais, de acordo com o gênero com que se identificam. Jomar/Verónica festejou a conquista no palco da Praça Almirante Saldanha sob forte ovação.

Ainda na sexta, 29, o cearense Daniel Groove se apresentou no palco da Praça Verde, o único espaço que teve limite de público. Os ingressos tiveram que ser retirados com antecedência porque o espaço da praça permitia a presença de 5 mil pessoas no máximo. Daniel (e banda) faz um som muito próximo da jovem guarda e acertou em cheio o público jovem, falando de amor, encontros e desencontros. Temas do álbum Romance pra Depois e Giramundo estiveram no setlist com o público todo cantando junto, especialmente na vez de “Novo Brega”, “Você Sabe Muito Bem o que me Resta”, “Enquanto Acreditar eu Vou Correr”, “Nada” e “Giramundo”, músicas que, segundo Daniel, "precisa tocar senão apanha".

Ainda naquela mesma noite, tivemos outro fenômeno sonoro cearense que precisa ainda ser melhor compreendido. O burburinho e empurra-empurra começaram próximo ao fim do show de Daniel Groove. A ideia que se teve era a de que o público seria substituído. Quando os Selvagens à Procura de Lei entraram ao som apoteótico de “O Guarani”, de Carlos Gomes, aconteceram cenas de histeria coletiva e o público cantou junto todas as faixas da apresentação do grupo, que está lançando o álbum "Praieiro".

Fechando a noite do dia 29, no palco da Praça Almirante Saldanha, a baiana/pernambucana Karina Buhr mostrou o show do CD Selvática que deu muito que falar no ano de 2015. Com Fernando Catatau na guitarra, Karina fez um show transgressor, reafirmando a temática do feminismo tão presente no disco, e não precisou de muito esforço para agradar.

A noite de sábado, 30, começou com uma boa surpresa. No palco Poço da Draga, a cearense Lorena Nunes, que faz carreira local, apresentou temas escolhidos da Tropicália, como “Panis Et Circensis”, e brilhou em uma versão arrebatadora de “Baby” (Caetano Veloso), entre outras do movimento. Lorena também tem público cativo na cena cearense, dona do disco Ouvi Dizer Que Lá Faz Sol.

No palco da Praça Verde, encerrando a noite e também com limite de público, BNegão & os Seletores de Frequência fizeram o show mais politizado de todo o festival, com palavras de ordem sobre o conturbado momento político em meio a hip-hop, rap e funk. Eles acabaram dividindo o público com a Bixiga70 e seu afrobeat e latinidade dançantes, que se apresentava no mesmo momento no palco da Praça Almirante Saldanha. É seguro dizer que ninguém perdeu com isso, visto que as duas bandas têm público distinto.

O domingo, dia 1º de maio, noite de encerramento da festa, começou com a apresentação, no Anfiteatro Sergio Motta, do bandolinista Hamilton de Holanda, acompanhado de baixo acústico e bateria. Hamilton mostrou o repertório do CD Samba de Chico, uma selecionada mostra do repertório de Chico Buarque (“Morena de Angola”, “A Volta do Malandro”, “Ana de Amsterdam”, “Roda Viva”, “Vá Trabalhar Vagabundo”, “João e Maria”, além de “Samba de Chico” do próprio Hamilton). Em seguida, no palco Praça Verde, se apresentou o paraense Saulo Duarte e a Unidade, outro músico que tem público cativo e veneração em terras cearenses. Saulo fez todo mundo cantar o refrão “só é seu aquilo que você dá!”. Veio acompanhado de uma banda estrelada, com Curumin na bateria e Betão Aguiar na guitarra.

Estava ótimo, mas a festa tinha que acabar. Também no palco da Praça Verde, Anelis Assumpção reproduziu o repertório de Legalize It, o icônico álbum de Peter Tosh. Aqui, digno de nota foi a quantidade de gente no palco, nada menos que dez pessoas, entre sopros, guitarras, teclados, bateria e backing vocals. E como o álbum não completava o tempo de um show, Anelis acabou inserindo alguns temas de seu repertório. Terminou chamando diversos músicos ao palco, realizando um encerramento em alto astral.

Conexões Maloca

Com curadoria de Priscila Melo, o festival também promoveu durante os três dias uma série de discussões sobre três temas de interesse do mercado de música. No dia 29, falou-se de “Festivais, Exportações e Novos Modelos de Produção Musical”, com mediação de Ivan Ferraro e participações de Heloisa Aidar Pripo (Pommelo Produções), Melina Hickson (Porto Musical), Marcelo Damaso (Festival Se Rasgum), Karen Cunha (Secretaria Municipal de Cultural de SP). No dia 30, o assunto foi “Comunicação, Difusão e Promoção”, com mediação de Guga de Castro (jornalista, programador musical da Rádio Beach Park e DJ) e teve participações de Patrícia Palumbo (Vozes do Brasil), Alexandre Matias (Trabalho Sujo), Yasmin Muller (Deezer) e Debora Pill (Brisa - PRBNA Radio). No dia 1º, o tema tratado foi a “Direção Artística e Produção Musical”, com mediação de Mona Gadelha (cantora, compositora e jornalista) e participações de Paul Lewis (diretor de palco de Criolo), Anna Turra (direção artística de Elza Soares), Yury Kalil (produtor musical) e Maurílio Fernandes (produtor musical).

Com debate aberto ao público, na maioria composta de músicos e produtores, ficou claro que a necessidade mais premente de quem vive de fazer música de forma independente é resolver a dificuldade no gerenciamento da carreira. Todos tinham uma reclamação a fazer nesse sentido, apesar de nem sempre ser esse o tema debatido. Foram ouvidas ótimas contribuições, como a de Heloisa Aidar, que aprendeu gerenciamento trabalhando com Mariana Aidar e hoje cuida da carreira de Tulipa Ruiz; Melina Hickson discorreu sobre a experiência como diretora do evento Porto Musical e produtora executiva do Abril Pro Rock; Yasmin Muller esclareceu os mistérios da plataforma digital Deezer; e Patrícia Palumbo falou sobre a vitoriosa carreira do programa Vozes do Brasil e o seu lançamento em plataforma digital. No aspecto mais técnico, a contribuição de Paul Lewis foi esclarecedora, discorrendo sobre as exigências que a banda ou o artista devem fazer ao contratante, apresentando um rider técnico detalhado em planilhas, explicando detalhes sobre iluminação, equipamentos de som, entre outros itens. Também foi interessante a participação de Anna Turra, que falou sobre a direção do show de Elza Soares, mostrando em telão o seu trabalho de iluminação e desenhos de cenários.

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