O cantor e compositor fala sobre suas peripécias para levar às telas um roteiro que trata de cangaço, circo e cordel
Antônio do Amaral Rocha Publicado em 27/03/2016, às 11h08 - Atualizado às 17h56
Alceu Valença fez nesta quinta, 25, sua estreia como diretor. Na data, o filme dele A Luneta do Tempo foi lançado nacionalmente. O pernambucano também assinou a trilha sonora e o roteiro do longa, que reconta a história de Lampião (Irandhir Santos, de Tatuagem) e Maria Bonita (Hermila Guedes, de O Céu de Suely).
Alceu Valença - perfil (outubro de 2014): Incansável Trovador.
Leia abaixo nossa entrevista com o cantor e compositor, que narrou suas peripécias para levar às telas uma história com cangaço, circo e cordel.
Como você, que já tem uma carreira consolidada como compositor e cantor, se preparou para se tornar diretor de cinema?
Minha ligação com o cinema vem desde menino. Mas lá em São Bento do Una, a cidade onde nasci e vivi parte da infância, a população era pequena tinha uma programação de cinema sexta, sábado e domingo. Eu ia com minha mãe, com 6, 7 anos. Fui para Recife com 9 anos e lá via filmes de chanchada, com Oscarito, o Grande Otelo, essas coisas. Depois, com 13 anos de idade, comecei a jogar basquete e fui da seleção pernambucana, fiz três campeonatos fora do Pernambuco. Comecei a viajar e deixei o cinema de lado. Daí, quando entrei no curso Clássico, com 15 anos, comecei a querer ser intelectual. E esse momento coincidiu com a nouvelle vague, movimento do cinema francês, e também com o neo-realismo italiano, então eu ia em cinemas de arte. Quando eu era menino, diziam que era parecido com o [ator Jean-Paul] Belmondo no filme Acossado [de Jean-Luc Godard]. Comecei a gostar de cinema. Quando saíam da sessão, as meninas viam que eu tinha a cara do Belmondo e daí eu arranjava muitas namoradas.
Ouça duas faixas da trilha de A Luneta do Tempo.
Como foram as suas experiências como ator?
[Já no Rio de Janeiro,] fiz um disco com Geraldo Azevedo e não aconteceu nada. Aí conheci Sergio Ricardo, que estava com um projeto de novos cantores para os discos do O Pasquim. Quando fui mostrar as minhas músicas, ele me viu e falou: "Você vai ser o ator do meu filme, você é o espantalho" [em A Noite do Espantalho]. Pensei que ele estivesse me gozando. Enquanto todos os atores estavam atuando eu ficava de fora, olhando a câmera, olhando os planos, ficava observando, observando. Daí eu voltei pra música, mas sendo convidado pra ser ator. Todas as vezes que me convidavam, era para um papel mais ou menos igual ao que eu já tinha feito. E eu recusei e recusei. Depois de muito tempo, a TV Manchete me chamou para eu fazer um pequeno papel em uma minissérie, par com Daniela Mercury. Era uma novela que tinha cangaço no meio [Mandacaru, de 1997] e eu interpretei Virgulino Lampião. Eles não pagavam cachê, por isso eu peguei o figurino que usei. Essa roupa eu levei para a fazenda do meu pai lá em São Bento.
Consta que seu pai, político e jurista em São Bento do Una, conheceu e viveu de muito perto a saga do cangaço.
Meu pai me contava, quando eu era menino, as histórias de grupos de cangaceiros. Quando estudante universitário, eu lia muito sobre isso: livros de Rui Facó, como Cangaceiros e Fanáticos, toda a literatura de cordel, A Chegada de Lampião no Inferno... Mas A Luneta do Tempo não é sobre Lampião, é sobre o cangaço, sobre a mitologia do cangaço.
No filme, existe como pano de fundo a História com "H" maiúsculo e a história da vida dos cangaceiros, de Lampião.
É tudo mentira a história. Fui eu que criei. Não é a vida dele. É sobre ele no purgatório. A morte de Lampião entra ali na medida que meu pai, quando estudava na faculdade de Direito... Naquela época havia uma teoria chamada lombrosiana [do italiano Cesare Lombroso, psiquiatra e criminologista] que dizia que o bandido já nasce bandido e pelo próprio físico se vê. Meu pai não acreditava nessa teoria, achava que era uma coisa fascista. Um dia, ele estava discutindo esse assunto na faculdade e um colega trouxe um telegrama contando que tinha acontecido o confronto em Angicos, [resultando na] morte de todos os cangaceiros. Meu pai e uns amigos da faculdade alugaram uma caminhonete e foram para lá. Ele relatava que os corpos estavam putrefatos e todos de cabeça cortada. Contava também que pegou um chapéu e levou para casa, outro colega pegou um broche de ouro. Depois que meu pai morreu, em 2012, encontrei o chapéu e me lembrei daquelas histórias todas que ele me contava. Daí eu comecei a escrever compulsivamente uma coisa que eu pensava que talvez fosse virar um romance.
Tem esse pano de fundo, mas tem também um circo, que era o circo que passava em São Bento, e a narrativa que o cordelista-personagem faz colocando o bando de Lampião dentro do purgatório. Ou seja, o cangaço está no purgatório, e esse purgatório está lá por causa de um cordel chamado A Chegada de Lampião no Inferno.
Mas o filme coloca muito mais do que a vida do cangaço em um pretenso purgatório.
O filme procura colocar vários outros [temas], como a questão do poder, a morte e a tragédia. Os circos que passavam por São Bento tinham teatro, e eu aprendi a gostar de teatro desde pequeno por causa disso. No filme também existe a tragédia, uma coisa grega, e no fim das contas o filme é regional, mas é universal: a conversa vai muito além do cangaço. Tem como ponto de partida o cangaço, mas eu poderia fazer o filme na favela, sobre a luta de traficantes.
O filme têm três núcleos de narrativa. Isso foi originalmente pensado no roteiro?
São três tempos porque eu vivo em três tempos. A minha música [Embolada do Tempo] fala: "Eu marco o tempo/ Na base da embolada/ Da rima bem ritmada/ Do pandeiro e do ganzá/ Você quer parar o tempo/ E o tempo não tem parada/ Você quer parar o tempo/ O tempo não tem parada/ O tempo em si/ Não tem fim/ Não tem começo/ Mesmo pensado ao avesso/ Não se pode mensurar/ Você quer parar o tempo/ E o tempo não tem parada/ Você quer parar o tempo/ O tempo não tem parada/ Buraco negro/ A existência do nada/ Noves fora, nada, nada/ Por isso nos causa medo/ Tempo é segredo/ Senhor de rugas e marcas/ E das horas abstratas/ Quando paro pra pensar". Essa música não entrou porque o filme demorou tanto que eu já tinha gravado, mas fazia parte do roteiro. Os três tempos que eu uso são o cangaço, o circo e o cordel, mas existe ali uma perseguição contra o cangaço.
Há alguma proximidade com o universo de Glauber Rocha a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol?
Existe sim, mas eu poderia dizer que tem também com Cangaceiros de Lampião [filme de 1967 de Carlos Coimbra, com Vanja Orico] e com filmes bem anteriores. Um deles é aquele com Milton Ribeiro, que faz o papel de chefe do cangaço e que é um filme paulista [O Cangaceiro, de Lima Barreto]. E sem negar a importância de Glauber Rocha, eu vim a assistir os filmes dele muito depois que eu já me interessava por literatura de cordel, muito depois de eu estudar Rui Facó, e também muito depois que meu pai já me ensinava sobre esse assunto, quando ele me contava essas histórias todas. Tudo que seja do cangaço tem que ser Glauber Rocha? Não necessariamente. Mesmo porque o meu olhar é diferente do dele.
Qual a memória mais longínqua que tem da sua relação com a imagem?
Quando era menino, o projetista do Cine Rex me dava os fotogramas quebrados dos filmes que eu via. Botava numa caixa de sapato com um buraquinho e uma luz. Sempre gostei de fotografia. Quando fui para os Estados Unidos comprei uma câmera e ficava com ela o tempo todo, documentando tudo, sem querer fazer documentário. Passei a registrar o Carnaval, Olinda, meus pais, a fazenda do meu pai, vaqueiros. No Luneta..., por exemplo, na cena que tem a passagem de tempo, dos vaqueiros no meio da caatinga, encourados, sabe? Aquilo lá eu já tinha feito antes.
E como você encarou a direção de atores?
Aí começa o trabalho de Bruno Costa, que é um grande preparador de atores que trabalha com psicologia. Os atores, em sua maioria, são pessoas de São Bento do Una. Tem parentes meus (o dono do bar é parente, o gago é parente), o Severo Brilhante é o caseiro lá de casa, Dona Dodô era amiga do meu filho. Saí procurando pessoas, sobretudo pessoas que tivessem "physique du rôle", que significa alguma pessoa que estivesse de acordo com o físico. Claro que tinham alguns que tinham o físico, mas não tinham a capacidade, mas trabalhamos com eles nas ruas de Olinda. O povo pensava que eu estava ficando doido.
Eu escolhi Irandhir [Santos], que eu já tinha visto em Baixio das Bestas, de Cláudio Assis, e chamei a Hermila Guedes (no começo ela não se empolgou muito, mas depois entendeu). O filme dela que eu vi foi O Céu de Suely [de Karim Aïnouz]. Eu adorei e fiquei com ela na cabeça.
Fale um pouco sobre a trilha de A Luneta do Tempo.
A trilha sonora foi toda gravada antes do filme, nela tem as falas, mulher, cangaceiro, tiro, ruídos. Tudo saiu de um estúdio aqui de Recife, do Paulo Rafael. Eu ia lá toda noite e ficava fazendo as vozes para que o filme tivesse um ritmo e para que as pessoas falassem dentro do ritmo, como se fosse um playback. Quando fui ao estúdio, chamei as pessoas para botar uma sanfona e lá eu encontrei o sanfoneiro que se parece com o Luiz Gonzaga no filme, ele nunca tinha feito nada em cinema.
Desde a concepção do roteiro, que começou em 1999, e a efetiva filmagem, que aconteceu em 2014, você estudou cinema?
Perto de casa tinha uma loja que alugava DVDs e eu ia lá todo dia e pegava filmes. Assistia sobretudo para estudar cinema. Quando comecei a escrever o roteiro, estava fazendo um show no Rio e alguém me perguntou se eu estava criando muito. Eu mostrei uma coisa que eu havia escrito e ele me disse: mas isso é cinema! E até se propôs a dirigir comigo. Eu nem sabia que aquilo era cinema até aquele momento. Daí eu fui atrás e comprei o livro de Doc Comparato [Da Criação ao Roteiro] sobre roteiro para me inteirar da coisa.
No filme tem algumas marcas de passagem do tempo na narrativa. Fale sobre eles.
Tem os urubus voando, tem os vaqueiros correndo na caatinga. Os urubus também marcam a questão da tragédia dos cabras que são mortos e os urubus vão comer.
Pernambuco tem se transformado num polo dos mais importantes e criativos do cinema brasileiro. E o seu filme se insere neste fenômeno, como Amarelo Manga, O Baile Perfumado, Febre do Rato e O Som ao Redor, para citarmos alguns.
Muito bons, mas eu já tinha terminado o meu antes de O Som ao Redor. Tem um filme de Pernambuco também importante, foi nele que vi a Hermila Guedes, que se chama Cinema, Aspirinas e Urubus. Ela faz uma ponta nesse filme e achei esta mulher maravilhosa. Depois eu vi O Céu de Suely. Acho esse polo uma coisa maravilhosa, inclusive ele não se vende, é artístico, é a coisa mais linda que tem. As pessoas são donas do seu trabalho, não existe ali interesse comercial. Esses caras de Pernambuco botam a arte como uma coisa muito superior ao dinheiro e isso os diferencia de quem faz comédias para a indústria do entretenimento, porque tudo aí começa a virar cópia.
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