Serra da Capivara - guarda assassinado - André Pessoa

Exclusivo: e-mails comprovam que órgãos haviam sido alertados do perigo na Serra da Capivara, onde segurança desarmado foi morto por caçador

André Pessoa, de São Raimundo Nonato/Piauí Publicado em 23/08/2017, às 12h22 - Atualizado às 13h08

O crime praticado por caçadores no Parque Nacional da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, em 18 de agosto, e que resultou na morte do guarda-parque Edilson Aparecido da Costa Silva, de 49 anos, poderia ter sido evitado caso o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em Brasília, tivesse dado a atenção necessária a uma série de mensagens enviadas ao presidente do órgão, Ricardo Soavinski. Além de assassinar Silva, que deixou esposa e sete filhos, os caçadores ilegais – em busca de animais ameaçados de extinção como o tatu-bola – balearam outros dois fiscais. Dois caçadores, conhecidos como Afonso e Netão (sobrenomes não divulgados), foram presos; outros dois, Gilson e Zezinho, estão foragidos.

O Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado a cerca de 500 quilômetros da capital do Piauí, Teresina, constitui a área de maior concentração de sítios pré-históricos do continente americano e tem o título de Patrimônio Cultural da Humanidade - UNESCO.

Em mensagem enviada há alguns meses ao órgão ambiental, o guarda-parque João Leite Araújo Filho, que trabalha na Serra da Capivara desde a década de 1990 – e um dos baleados na ocasião –, fez um amplo relato da situação de perigo a que os fiscais estavam sujeitos. Tal perigo vinha das mudanças que estavam sendo realizadas em seus contratos de trabalho, principalmente a retirada do porte de armas e recolhimento dos coletes à prova de balas (os guardas são contratados da empresa de segurança Thor, de São Paulo). Araújo Filho explicou que antes eram 34 fiscais com porte de armas de fogo e que atualmente apenas quatro têm autorização para o uso delas. Esses quatro fiscais são atualmente acrescidos de outros 22 vigias desarmados, que pouco podem fazer para proteger o parque e suas próprias vidas. “Éramos até então a unidade [de conservação] mais bem protegida, mas com a atual configuração, as ações criminosas quadruplicaram. Há hoje dezenas de caçadores todos os dias dentro da unidade acabando com a fauna desse exclusivo bioma brasileiro. Sem contar a destruição do patrimônio histórico e cultural”, relatou.

Até a manhã desta quarta, 23 de agosto, nenhum representante da empresa Thor havia chegado à região do Parque Nacional Serra da Capivara. Um dos guardas informou que apenas recebeu um telefona da empresa, no qual foi solicitado um atestado médico. A viúva de Adilson ainda não recebeu nenhum tipo de suporte da companhia, o que contradiz o comunicado divulgado pelo ICMBio (abaixo). A Polícia Federal não foi até o local para ajudar nas investigações, embora haja uma equipe de Brasília, do ICMBio, na região para averiguar o caso, segundo informou Melina Rangel, Chefe do Parque Nacional Serra da Capivara. Até as 18h desta terça, 22 de agosto, a única mudança efetiva desde a morte de Edilson Aparecido da Costa Silva era que os guardas não estavam mais ficando nas guaritas isoladas – o que significa que o local está ainda mais vulnerável aos caçadores.

No dia 28 de fevereiro de 2017, Araújo Filho escreveu ao presidente do ICMBio alertando sobre o perigo das alterações que viriam a ser aplicadas. Ricardo Soavinski tinha acabado de visitar a Serra da Capivara e garantido pessoalmente aos fiscais que nada iria mudar. No entanto, a promessa não estava sendo mantida. “Nossos contratos foram modificados, nossas armas foram tiradas, nossos salários reduzidos e amigos de trabalho que dedicaram suas vidas em defesa desse parque serão demitidos”, diz um trecho da mensagem.

Quem respondeu ao e-mail foi o chefe de gabinete da presidência do ICMBio, Wajdi Mishmish. No dia 22 de março, Mishmish escreveu: “...Considerando os ajustes de racionalização e otimização de serviços que passa [sic] todo o Governo Federal, foram necessários pequenos ajustes nos contratos, tendo sido praticamente mantido em termos quantitativos o mesmo número de funcionários contratados atualmente”, dizia parte do documento.

Diante da resposta, Araújo Filho voltou a escrever, dessa vez diretamente para Wajdi Mishmish. “A atitude tomada pelo ICMBio não só coloca em cheque a palavra do Sr. Presidente [do órgão] como a do presidente anterior (in memoriam) e ainda mais a palavra do excelentíssimo ministro do Meio Ambiente, Sr. Sarney Filho, pois os mesmos deram total apoio ao parque e aos guardas que na época passavam por severas dificuldades.”

Algumas semanas após assumir o Ministério do Meio Ambiente, em 2016, Sarney Filho visitou o Parque Nacional Serra da Capivara e se reuniu com a equipe dos guardas-parque garantindo, em público, que nada mudaria no regime de trabalho dos fiscais. Pelo contrário: na época, ele afirmou que as equipes seriam ampliadas e fortalecidas. A prática, porém, se mostrou muito diferente – além da diminuição das equipes, os guardas tiveram suas armas e coletes à prova de balas retirados, em um processo que contribuiu diretamente para a falta de segurança dos profissionais e, consequentemente, para a morte de Edilson Aparecido da Costa Silva.

Mais avisos

O guarda-parque João Leite Araújo Filho foi além e mostrou preocupação com a integridade da Serra da Capivara. “Com a destruição do equilíbrio ambiental, as pinturas rupestres serão destruídas por insetos como cupins e vespas, que constroem suas casas e galerias em cima das pinturas, destruindo esse riquíssimo registro... sem falar do desplacamento das rochas, provocado quando o caçador utiliza os sítios [arqueológicos] como abrigo. Desde o dia 1 de março os caçadores invadiram o parque.”

Ao finalizar essa mensagem, ele fez uma espécie de anúncio premonitório do que poderia acontecer. “Não posso desistir de lutar por um patrimônio cultural que pertence ao povo brasileiro e que eu aprendi a amar e a respeitar. Se o ICMBio não puder proteger eu vou fazê-lo ou morrer tentando”, escreveu. O aviso de uma tragédia se confirmou na última sexta-feira, 18 de agosto, quando os fiscais da Serra da Capivara encontraram caçadores na área do parque e foram alvejados.

Antes do crime, no dia 26 de junho passado, Araújo Filho voltou a escrever ao presidente do ICMBio, Ricardo Soavinski. A mensagem tinha um tom de desabafo, pois a decisão do órgão de retirada de coletes à prova de balas e de porte de armas havia acabado de ser confirmada. Ele encaminhou como anexo um vídeo com a música “Se um Dia Eu Deixar de Ser Vaqueiro”, e relatou: “Hoje, ouvindo a música, fiquei muito emocionado em fazer a comparação com o que autor fala com tanto amor: ‘Se um dia eu deixar de ser vaqueiro, vou chorar com a falta da boiada...’. Se um dia eu deixar de lutar pelo parque, vou chorar por ver esse patrimônio único ser destruído”.

No mesmo dia 26 de junho, aparentemente impactado com o teor da mensagem, Soavinski respondeu pela primeira vez diretamente a Araújo Filho, escrevendo: “Caros, vamos conversar a respeito!”. No entanto, nada aconteceu nas semanas seguintes, até o dia 5 de julho, quando o chefe de gabinete, Wajdi Mishmish, respondeu à mensagem de Araújo com cópia para Silvana Canuto Medeiros, Paulo Henrique Carneiro e para o próprio Soavinski: “Os esforços de ampliação das ações de fiscalização e proteção são preocupações diárias deste órgão, que diante dos recursos limitados tem buscado todos os meios para desenvolvê-las em todas as 324 unidades de conservação federais”.

Após o crime, que teve forte repercussão, o ICMBio e o próprio ministro do Meio Ambiente distribuíram comunicados à imprensa: “O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade lamenta profundamente o falecimento de Edilson Aparecido da Costa Silva, vigia contratado da empresa Thor, que presta serviços no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. O ICMBio informa que acionou a Polícia Federal, que já está apurando o incidente juntamente com a Polícia Civil do Estado do Piauí. Tanto o ICMBio quanto a empresa Thor estão tomando providências no sentido de prestar apoio aos funcionários e suas famílias e estão colaborando com as autoridades policiais no esclarecimento dos fatos”.

Já o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, publicou a seguinte nota: “Em meu nome e do Ministério do Meio Ambiente, manifesto o pesar pelo falecimento de Edilson Aparecido da Costa Silva, vigia do Parque Nacional da Serra da Capivara (PI), morto por caçadores que atuavam no local. À família de Edilson e àquelas de seus dois colegas que foram feridos na mesma ocasião, envio minha solidariedade e dedico minhas preces. Desejo, ainda, expressar total repúdio à ação criminosa de quem atenta contra o meio ambiente, destruindo a natureza e, neste caso, vitimando quem trabalhava em sua defesa”.

Tragédias marcam a reserva ambiental

Em 2001, outro crime bárbaro em uma das guaritas do Parque Nacional Serra da Capivara chamou atenção para os problemas de segurança no local. O caçador Paulo de Jesus Souza matou com um tiro de espingarda sua própria irmã e funcionária do parque, Ivani de Souza Ramos. Após ser agredida a facão, no rosto e nos braços, ela levou um tiro pelas costas. Ivani trabalhava na reserva ambiental desde 1999 e já tinha sido ameaçada outras vezes pelo irmão, pois sempre denunciava as entradas ilegais dele na reserva para caçar.

Na época o crime abalou os moradores da pequena Coronel José Dias – um dos quatro municípios que compõem a área do Parque Nacional Serra da Capivara. Após cometer o assassinato, Paulo de Jesus Souza foi visto em um dos bares da cidade fazendo ameaças à pesquisadora Niède Guidon, hoje com 84 anos, e ao chefe do parque naquele período, o biólogo Isaac Simão Neto. Preso algumas semanas depois do crime, o caçador terminou condenado, mas logo foi solto para recorrer em liberdade.

Dois anos após a morte de Ivani, mais uma tragédia. O ano de 2014 se aproximava do fim quando a competição de ciclismo Bike Race Across foi realizada no parque nacional. A ideia era testar os limites dos competidores em uma das áreas mais selvagens e quentes do Nordeste. O resultado foi dramático. Por falta de planejamento um dos trechos da prova estava isolado, sem acesso para resgate ou equipes de apoio. Com a temperatura elevada, vários atletas começaram a passar mal. A ciclista maranhense Dayane Rita, de 20 anos, morreu após ser encontrada com dificuldade de respiração e inconsciente; ela havia ficado muito tempo na Caatinga do interior do parque esperando por socorro.

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