Depois de mudança de hábito sugerida por Zeca Pagodinho, Marcelo D2 grava álbum 'Assim Tocam Meus Tambores' ao longo de 150 horas de lives e canta a empatia em tempos de ódio, limpa a alma e quer espalhar o amor
Pedro Antunes, editor-chefe | @poantunes
Publicado em 23/09/2020, às 07h00"Senti o peso do fim do mundo", diz Marcelo D2, à Rolling Stone Brasil: "Entrei em pânico."
Era dezembro de 2019 ou janeiro de 2020, a data exata escapa da memória de Marcelo D2 enquanto ele busca citar um verso do novo álbum do Planet Hemp, cuja idea era ser lançado ainda em 2020, mas que agora está em suspenso por conta das medidas de isolamento social - mais um dos planos que se transformaram diante da pandemia do novo coronavírus.
"Era uma música que dizia: 'Ninguém me segura, a gente taca fogo nessa porr*'", diz o rapper, de voz distante, enquanto acessa os pensamentos de um Marcelo D2 que parece ser outro agora, tão distante e diferente daquele que existia antes dia 24 de março, data em que foi decretada a quarentena na cidade do Rio de Janeiro.
D2 entrou na quarentena com fúria. Gravava um disco do Planet Hemp, cantava contra o fascismo e a ascensão da ultra direita no Brasil e no mundo. "Fiquei doente, sabe qualé?", ele conta. "Tive um momento de pânico, assim que comecei a fazer Assim Tocam os Meus Tambores."
O novo álbum de Marcelo D2, a ser lançado neste sábado, 26, é o movimento desse artista, uma das vozes mais ativas e importantes da música (e também rei do Twitter), de tirar das costas o peso do fim do mundo. E, com isso, encontrar um remédio para as dores, mentais e quiçá físicas, decorridas deste período de isolamento social.
Da mesma forma como ocorreu com o lançamento de Amar É Para Os Fortes, o álbum anterior de D2, ATOMT é também um filme. Não será encenado como foi o anterior e, sim, mais conceitual. "É como um clipão", brinca D2, ao resumir o filme. O rapper e a esposa, Luiza Machado, com quem se casou em 2020 e assina como diretora executiva de todo o projeto, participam do vídeo que faz a estreia no canal dele na plataforma Twitch também no sábado, 26, a partir das 13h, em uma super transmissão.
O média-metragem é produzido e dirigido por D2, tem a produção executiva assinada por Luiza Machado e foi realizado pela produtora do casal, chamada Pupila Dilatada. O vídeo se passa na casa dos dois e eles são também os protagonistas do filme.
Criado de forma multimídia, Assim Tocam os Meus Tambores também terá um lançamento da mesma maneira. No dia 26, sábado, às 13h, pelo Twitch, D2 fará live para mostrar pela primeira vez o álbum, com participações especiais e a exibição do média-metragem. Quando falou à Rolling Stone, na manhã de terça-feira, 22, ele ainda planejava o line up das atrações da live de lançamento.
Nas plataformas digitais, o álbum chega também no dia 26. Em Spotify, Deezer e Tidal, o disco estará disponível a partir das 20h. Para YouTube Music, Apple Music e Amazon Music, o álbum chega às 0h. O link para ouvir nas plataformas digitais está aqui.
O álbum também ganhará uma versão em vinil lançada pela Noize Record Club, em uma bolachona translúcida e uma revista com mais detalhes sobre o processo de gravação do trabalho.
D2 conta que não conseguiu dormir na noite em entendeu que faria o próximo álbum ao vivo, virtualmente em frente para todos que estivessem online naquele momento. Com isso, ele foi revolucionário. "Uma residência artística na frente de todo mundo", diz o rapper sobre a ideia semente do álbum.
Durante a quarentena, entre alguns poucos shows feitos no esquema drive-in ("me senti em uma distopia", avalia ele sobre a experiência) e outras lives musicais, D2 tentou respirar após a intensidade das gravações do Planet Hemp. "O convite do Twitch mexeu com a minha cabeça, porque veio a ideia de uma rádio pirata", ele diz. "Me fascinou a possibilidade de ser transgressor, de fazer transmissões dentro de casa."
D2 teve (e tem, aliás) uma infinidade de ideias para usar o formato ao vivo. Ele conta o desejo de escrever uma autobiografia para ir além das páginas dos livros e também ser contada em em lives. "Achei uma parada interessante fazer uma live autobiográfica", ele diz, feliz com a ideia.
"Mas o lugar de apresentador ou entrevistador não é o que mais me fascina", ele segue, "então vi o festival Black Lives Matter e falei para a Luiza sobre fazermos um festival de música. Ela foi dormir com essa ideia, quando acordou, eu já tinha pensado em fazer o festival como uma abertura da gravação do meu disco."
Essa era uma ideia mais antiga, revela D2, de conversas que tinha com Luiza sobre os expor os processos de gravação de um álbum. "Sabe aqueles papos que você tem quando tá fumando?", ele pergunta. "Colocar um estúdio de vidro dentro de uma galeria e a galera poderia ir lá, assistir, ver o fluxo de trabalho", conta. Passou a noite de pé, ao lado da cama, conta ele, a espera da companheira acordar para revelar a epifania que o levaria ao Assim Tocam os Meus Tambores da forma como conhecemos hoje. "Ela acordou e eu estava lá, esperando para poder contar tudo."
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"Fazer esse álbum dessa forma foi a melhor coisa para a minha vida. Foi arrebatador. Me tirou de um lugar da quarentena que poderia ter me deixado deprimido", conta D2. "Foi também a parada mais louca que eu já fiz. Foi uma coisa futurística, meio Os Jetsons, sabe qualé?"
Por 150 horas, D2 fez o que nenhum artista do tamanho e relevância dele teve coragem de fazer. Destravou as inseguranças e expôs o processo de gravar um álbum para quem quisesse assistir. Chorou e riu na frente de uma audiência que ficava entre 5 mil pessoas simultaneamente. Ligou para colaboradores, ouviu sugestões para beats e rimas. Inclusive, o álbum possui o registro de 100 vozes de pessoas que assistiam à transmissão em "AS SEMENTES".
"Tive um contato com o público que nunca experimentei", ele diz. Marcelo D2 permitiu ao som do álbum manter a vividez do registro das lives. "Aprendi com os caras do samba. Se cantar 50 vezes, serão 50 versões diferentes. Se tá legal, se a interpretação está boa, vamos nessa."
Marcelo D2 gosta de compor sozinho, por isso a frase acima, dita à Rolling Stone, é tão significativa e diz tanto sobre a excepcionalidade de Assim Tocam os Meus Tambores.
Tem sempre um cantinho em casa com pósteres espalhados pelas paredes. Para escrever rimas, geralmente ligava a televisão sem som, deixava vídeos de skate passando ali. Ligava uma música, mas preferia algo que fosse diferente do comporia. Do jazz ao samba, tanto faz. Também espalhava revistas e livros pela mesa antes de sentar-se para canetar o papel. "Eu escrevo sobre minhas lembranças", ele diz.
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Quando Marcelo D2 diz se tratar do álbum mais coletivo da vida ele fala das lives realizadas durante a composição do disco, é claro. Ele expôs um processo que sempre foi tão íntimo. Ou seja, ele transformou em arte o processo de fazer arte, entendeu?
Mas também teve um time enorme com ele, mesmo à distância. A ficha técnica de Assim Tocam os Meus Tambores já começa com os beatkmarkers estrelados Nave, DJ Nuts, Kamau, Dr. Drumah, Barba Negra e Tropkillaz. A master é assinada por Jonathan Maia, e a mix foi realizada por Mario Caldato Jr..
A lista de participações do disco, em feats ou composições, também é extensa. Se liga aqui (em ordem alfabética): Anelis Assumpção, Baco Exu do Blues, BK', Criolo, Da Lua, Djonga, Don L, Eduardo Santana, Helio Bentes, Ivan Conti "Mamão", João Parahyba, Jorge du Peixe, Juçara Marçal, Kassin, Kiko Dinucci, Luiza Machado, Nobru, Ogi, Rodrigo Tavares, Rogê, Russo Passapusso, Sain e Thiago França.
O verso acima vem da música "Deus de Outro Lugar" e resume o que Marcelo D2 quer com Assim Tocam os Meus Tambores. Mais do que um decreto anti-governo Bolsonaro, o rapper canta a arte e o amor.
Isso tudo se apresenta no álbum. Além dos colaboradores, D2 também teve a família por perto. A filha Maria Joana fez o making of de todo o processo com lançamento em breve. Já Luca, com auxílio do pessoal da Missclick, moderou os chats das lives e deu o suporte para as transmissões ao vivo, algumas delas com mais de 10 horas de duração. Sain rimou na música "PELO QUE EU ACREDITO", faixa com também feat de Djonga e última do disco. A esposa Luiza Machado, além de todo o trampo já citado, também canta em "É AMANHÃ (VEM)", música com participação de Don L.
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"Esse álbum me tirou da ideia de estar em uma distopia", conta D2. "Foi um disco feito com muito amor. Meus amigos e minha família estavam por perto por perto. Eles foram muito influentes desse disco", diz D2. "Mas tive a oportunidade de fazer alguns shows em drive-in e essa foi a experiência mais distópica que tive na vida", brinca.
Assim Tocam os Meus Tambores é um álbum diurno. É perceptível ao dar o play. O mundo está em uma rotação lenta no que parece ser uma noite longa demais.
É um álbum dedo na ferida, é claro, isso é inevitável. "ROMPEU O CORO", com Anelis Assumpção, Baco Exu do Blues e BK', e "VERDADE NÃO RIMA" são poderosas. "Mas até essas músicas mais pesadas têm uma coisa de ser de dia, daquele jornal policial da tarde, de corpo estendido no chão", ele concorda. Mas Assim Tocam os Meus Tambores também apresenta um D2 romântico, com a lovesong "MAGRELA 87".
Em abril de 2020, D2 foi destaque da coluna da Veja Rio pela vibe de paz e amor, apaixonado e mais leve. A nota dizia que ele havia parado de fumar tabaco e "dado um tempo na birita". Também comemorava o início do casamento celebrado em fevereiro deste ano.
D2 sempre foi noturno, ele admite. "Quando todos vão dormir, parece que fica algo de diferente, sabe qualé?", explica. Mas, durante a quarentena, mudou de hábito, passou a acordar cedo. "Às vezes, 5h40 eu já estou de pé", garante. "Tenho gostado de chegar às 9h já tendo feito algo por mim", diz. Acorda, medita por alguns minutos, faz exercício e lê um pouco. "Caralh*, depois disso, o dia ficava fod*. Sentia que há tinha feito alguma coisa por mim. E isso é fida, porque a gente fica muito trabalhando para os outros, atendendo às necessidades dos outros."
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O hábito diurno ele pegou emprestado de Zeca Pagodinho, quase uma década atrás. "Uma vez, estava lá na casa do Zeca, tomando uma cerveja, deu 19 horas e ele se despediu de todo mundo e foi dormir", conta D2. Na hora, questionou o sambista para entender a saída. "Ele me disse que logo ficaria noite e tudo seria mais pesado, os espíritos da noite e tal."
Assim Tocam os Meus Tambores é um retrato de um artista em transformação constante. Que é impactado pelo mundo exterior, mas também contra-ataca. Da fúria vieram os poemas. Da solidão e isolamento social, veio um álbum completamente coletivo.
"Se a gente continuar espalhando ódio nesse campo de batalha, a gente vai perder, esses caras são ardilosos. Bom, a gente já perdeu. Vamos ter que mudar o campo de batalha para um lugar nosso. Porque se querem ódio, a gente quer amor. Se querem a exclusão, a gente quer todo mundo junto. Se querem queimada, queremos mata."
"O isolamento social mexe com a gente, é um lugar de dor. Foi realmente um baque neste ano. Me ensinou muito. Olhar o mundo vazio lá fora foi bem assustador", reflete D2. "Fazer esse disco mexeu comigo, porque me tirou de um buraco que tinha colocado a minha cabeça. A música sempre fez isso comigo. Se parar para pensar, o primeiro disco do Planet Hemp foi a mesma coisa. A música sempre me mostra um caminho. Quando eu me expresso, parece que estou me fazendo vivo."
Ainda imerso no processo completo que é o lançamento de um disco, e isso inclui conceder as primeiras entrevistas, preparar os últimos detalhes de divulgação e distribuição do álbum, Marcelo D2 ainda tenta entender o que conecta essas canções além do processo em si, colaborativo, virtual e ao vivo.
"Sabe, às vezes vou entender isso anos depois", ele admite. "Todo mundo focava na história da batida perfeita", ele diz, em referência ao título do álbum solo A Procura da Batida Perfeita (2003), "e só depois eu fui entender que o que importava não era a batida perfeita e, sim, a procura, a busca."
O que ele busca, então, com Assim Tocam os Meus Tambores? Para D2, é um disco desse nosso tempo. "É sobre empatia."
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