Em entrevista para a Rolling Stone Brasil, Jenn Nkiru, co-diretora do filme, também explicou a ligação direta entre o longa e os brasileiros
Camilla Millan I @camillamillan Publicado em 18/11/2020, às 07h00 - Atualizado às 12h00
“Queríamos retratar a África como fonte, como o início de tudo, mas também queríamos ter uma conversa diaspórica”, explicou Jenn Nkiru, artista e co-diretora nigeriana-britânica do álbum visual de Beyoncé para o Disney+, Black is King. O streaming chegou ao Brasil na última terça, 17 de novembro, assim como a obra da artista.
Inicialmente, o projeto seria apenas de alguns videoclipes com as músicas do disco de Beyoncé, The Lion King: The Gift, mas se transformou em um dos filmes mais aclamados de 2020. O longa recria a história de O Rei Leão a partir das canções do álbum da artista e da jornada de um garoto negro para se reconectar à ancestralidade - uma verdadeira obra de arte que envolve um necessário olhar decolonial sobre as Áfricas.
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Minha primeira impressão sobre o filme foi, certamente, a quantidade de informação e de conteúdo - era como se, a cada frame, Black is King me ensinasse algo. Não foi apenas uma sensação. Em entrevista com Nkiru, a importância do longa como fonte de conhecimento ficou ainda mais evidente.
Black is King foi o terceiro trabalho da co-diretora Jenn Nkiru com Bey. Nkiru trabalhou no videoclipe de “Apes**t”, parceria de Beyoncé e Jay-Z, e também nos vídeos da campanha da coleção Ivy Park, que estreou em 2020. Segundo a cineasta e artista, o trabalho com a cantora é sempre uma “oportunidade incrível”, e com o novo álbum visual não foi diferente:
"É um lindo casamento de muitas coisas e tópicos que eu tendo a focar no meu trabalho pessoal, e isso me deu a oportunidade de realmente expressar essas ideias e esses temas em uma grande plataforma", disse.
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Segundo Nkiru, Black is King permitiu revisitar questões que antes eram muito enquadradas: "Ela dá espaço para culturas que existem fora da compreensão dominante do que é o passado, presente e futuro preto. É sobre liberdade e confiança. Ela contribui para a conversa e abre as pessoas para uma forma alternativa de pensar sobre si".
Como explicou a co-diretora, a obra aumenta a autoestima de corpos pretos, resgata a história africana, dá visibilidade às diferenças entre os negros e mostra a importância de educar as próximas gerações sobre a verdadeira riqueza e beleza dos corpos pretos. Realmente, o filme é uma lição - e Queen Bey é a professora. A artista dirigiu, roteirizou e estrelou o álbum visual pensando em cada detalhe - e a cada cena, fica ainda mais evidente o objetivo do projeto.
No filme, a história de O Rei Leão é apresentada em uma narrativa contemporânea que anda lado a lado com as canções - e cada uma apresenta uma mensagem. Fala-se sobre empoderamento das mulheres pretas em “Black Skin Girl”, a exaltação da negritude em "BIGGER" e a importância da conexão com a ancestralidade no afrofuturista “Find Your Way Back”, por exemplo.
Em outros países onde o Disney+ já estava disponível, Black is King estreou no dia 31 de junho, em meio aos diversos protestos contra a violência policial e o racismo institucional.
A intencionalidade de cada trecho, referência, pose, figurino e dança faz da obra um marco das produções cinematográficas - tudo isso a partir da apresentação das diferentes Áfricas, que raramente ganham protagonismo no mainstream.
Black is King foi gravado em diversos países, como Nigéria, Gana, Inglaterra e África do Sul, e propõe uma reflexão sobre os antepassados e sobre a representação preta. A obra mostra a beleza dos corpos pretos e dá uma lição de representatividade. Além disso, ela apresenta, com profundidade, como as trajetórias negras não começaram com a escravidão, e sim nas riquezas e reinos da África.
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O filme de Beyoncé não entrega todas essas informações de forma improvisada ou impensada. São diversas cenas e trechos que, juntos, potencializam as narrativas dos corpos negros - e mesmo que não se entenda todos os pontos abordados, a proposta é de oferecer uma conexão imediata com o conteúdo.
A co-diretora Jenn Nkiru explicou: “Black is King é uma peça tão carregada de coisas... São tantas ideias e tantas pequenas pistas, e todas essas dicas… Você faz dessas peças um trabalho e espera que percebam tudo (...) Tem sido surpreendente ver quantas pessoas aprenderam tanto e como algumas estavam imediatamente conectadas com o trabalho”.
“Se os espectadores não entendiam em um nível intelectual, eles realmente se conectavam no nível visceral, ou ambos. Então, esse tem sido para mim o tipo de feedback mais bonito… Quantas pessoas estão sendo capazes de se conectar com o filme e usar como uma fonte de alegria, orgulho e bondade”, disse Nkiru.
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Em Black is King, há referências aos rituais de povos africanos, como o Zulu e Ewe, às obras e autores negros e às divindades das culturas e religiões de matriz africana. Em momentos, Beyoncé se faz Mãe África, Exú, Oxum e a deusa da fertilidade Hator.
Os colaboradores e artistas africanos, as roupas e poses que se referenciam aos orixás das religiões de matriz africana e às músicas que evidenciam as mulheres negras fazem parte de uma obra complexa de 85 minutos que não pretende aceitar a representação superficial e estereotipada dos corpos negros - e tudo isso tem uma conexão direta com os brasileiros.
O Brasil possui a maior população negra fora da África, e a relação com as diversas culturas e religiões africanas é inegável. Por isso, Black is King tem um diálogo direto com os pretos e pretas que moram no país - e isso foi pensado pela produção da obra.
"Existem ligações muito diretas para as culturas africana e brasileira. Nós pensamos que a cultura orixá vem da Nigéria, e você a encontra dentro das culturas latino-americanas. Tudo está conectado, há palavras milagrosas encontradas nas diferentes culturas", explicou Jenn Nkiru.
A co-diretora comentou que Black Is King possibilita um amplo diálogo entre os diferentes corpos negros - e isso a deixa ansiosa para a reação dos espectadores da América Latina, especificamente do Brasil:
“Da espiritualidade ao movimento, coreografia, comida...Há tantas interconexões que podem ser vistas entre o filme e a diáspora maior, então isso vai ser realmente empolgante para o público latino-americano, em particular com o público brasileiro”, explicou.
Em Black is King, não é só a música que propõe um diálogo diáspórico entre os espectadores. Beyoncé fez questão de chamar artistas africanos para o álbum visual, assim como se vestir com roupas e acessórios de estilistas negros - e uma delas tem o Brasil como país natal.
Loza Maléombho assina a famosa roupa de Beyoncé em "Already". Nascida no Brasil, a estilista cresceu na Costa do Marfim e nos Estados Unidos, e é conhecida pelo trabalho que exalta a realeza africana. Maléombho criou a jaqueta gráfica em preto e branco usada pela estrela no álbum visual.
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Todos esses vários pequenos (mas importantes) detalhes estabelecem uma comunicação e relação direta com os espectadores - e essa estratégia foi utilizada principalmente quando os co-diretores pensaram as danças.
Tratando-se de Beyoncé, uma artista musical, era esperada a presença da dança no longa - mas a significância dos passos precisa ser exaltada. Em conversa com Jenn Nkiru, comentamos sobre a importância do movimento como linguagem universal - fonte de um diálogo direto que não precisa de tradução.
"Estávamos lidando com tantas ideias que falam através da espiritualidade... Elas falam a partir das experiências sentidas em oposição às verbais. O movimento é intrínseco a milhares de culturas africanas, mas ele é um tema e elemento universal que se encontra presente em diversas culturas", disse a artista e co-diretora.
“O movimento pode nos conectar aos ancestrais, ao espírito, tradição, religião e uns aos outros. E o poder do movimento de várias pessoas como uma só. É algo muito universal, uma tradução direta de sentimento e expressão”, continuou a cineasta.
Em Black is King, a dança tem um papel bem maior do que um simples acompanhamento estético à música. Tais movimentações, presentes desde a antiguidade em rituais e religiões africanas, representam a união e a ancestralidade. São movimentos identitários que acompanham o protagonista na jornada de autoconhecimento.
Dessa forma, trata-se de um corpo em atualização e constante mudança, principalmente a partir da reconexão com o passado e com os ancestrais. Como linguagem universal, a dança em Black is King representa essa união dos pretos que, mesmo separados na diáspora africana, juntam-se para reivindicar o seu passado, presente e futuro.
Inclusive, o álbum visual de Beyoncé retrata a Gumboot, dança criada por sul-africanos que eram forçados a trabalhar em minas de ouro e diamante pelos colonizadores holandeses e britânicos no século XIX. Por serem de diversas etnias e não conseguirem se comunicar verbalmente, eles passaram a utilizar as batidas das botas como forma de expressão.
Durante a entrevista, Nkiru evidenciou a importância da dança em Black is King, citando uma palestra da coreógrafa peruana Victoria Santa Cruz: “Ela disse que as pessoas negras nunca eram escravas porque 'nunca poderiam escravizar nosso ritmo’. Pensei 'uau', porque há liberdade no movimento - e nós queríamos trazer elementos disso para a obra”.
“Ao ver isso [a dança], você sente, imediatamente. Você não precisa se desempacotar intelectualmente. Você meio que sabe e sente quando está lá - e é algo que nós sabíamos”, concluiu Jenn Nkiru, sobre o papel das coreografias no álbum visual.
A partir da história de O Rei Leão e das canções do disco The Lion King: The Gift, Beyoncé e os produtores, colabradores e co-diretores, como Jenn Nkiru, apresentaram uma obra completa que exalta as negritudes de forma a retratar verdadeiramente as trajetórias e todas as belezas dos pretos.
Tal narrativa parte dos próprios pretos, não de uma perspectiva colonial costumamente retratada no mainstream. Deixa-se de lado o olhar estereotipado que se configura a partir das dinâmicas coloniais de dominação: o álbum visual dá abertura para a desconstrução dessas narrativas vazias, restaurando identidades e memórias
Por isso, o ábum visual é muito importante para a indústria cultural. Protagonizam-se os corpos pretos sem abordagens superficiais - Black is King é uma obra decolonial que marca a indústria audiovisual, esperançosamente vista como inspiração para projetos futuros.
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