Cantora se apresenta a partir desta sexta, 24, em Brasília, para homenagear João Bosco e Aldir Blanc
Por Patrícia Colombo Publicado em 24/09/2010, às 11h36
O time de cantoras na história da música brasileira poderia ser dividido em dois: as que cantam com a alma e o resto. Se tal cisão não fosse apenas imaginária, Elza Soares certamente já teria sua cadeira no primeiro grupo. Talvez cadeira não seja a melhor das opções. A mulata assanhada de 73 anos tem energia demais para economizá-la sentada. É bem possível que preferiria ficar em pé em tal seleção, com os quadris em movimento na cadência do samba. O ano de 2010 tem sido bastante agitado em sua carreira, já que, além de estar finalizando um álbum em parceria a João de Aquino, Arrepios (que deve chegar às lojas no ano que vem), segue com suas apresentações ao vivo e outros projetos. Elza sobe ao palco do Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, nos dias 24, 25 e 26 de setembro durante o Dois pra lá, dois pra cá, uma homenagem à parceria de quatro décadas entre os compositores João Bosco e Aldir Blanc.
A maratona começou no dia 11, mas a animação deste fim de semana fica a cargo da artista, que se apresentará ao lado do sambista, violonista e compositor carioca Moacyr Luz, para encerrar a série de shows. A dupla interpretará os grandes clássicos de Bosco e Blanc, entre eles "Incompatibilidade de Gênios", "O Mestre Sala dos Mares", "Nação" e "O Bêbado e a Equilibrista". Elza Soares, que ficou mundialmente conhecida por cantar com sua poderosa rouquidão, brincando com scats jazzísticos, tem sensibilidade para sacar belas letras - comprovada por seu trabalho com grandes compositores ao longo da carreira, entre eles Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Chico Buarque, Ataulfo Alves e Billy Blanco. Para ela, celebrar o trabalho de João Bosco e Aldir Blanc não representa esforço, mas prazer. "É emocionante participar desta homenagem, porque eu tenho verdadeira paixão pelo João Bosco, paixão pela música dele, pela nobreza dele", afirma a cantora, em entrevista ao site da Rolling Stone Brasil. "E participar de um trabalho assim é gratificante demais. É uma coisa muito séria, muito boa, porque se trata de boa música, feita com capacidade. Estou feliz pra cacete."
Diva viva
"Eu sempre tive muito tesão para cantar e isso não morre, não acaba", afirma ela, garantindo que considera o palco uma extensão de sua própria casa. A primeira vez que subiu em um, por sinal, foi em 1953, durante o programa Calouros em Desfile, comandado pelo célebre compositor e radialista Ary Barroso. A vida era dura para a cantora e vencer o programa significava dinheiro para comida - seus 45 kg denunciavam os perrengues sociais vividos por ela e sua família na época. "Lama", composto por Paulo Marques e Ailce Chaves, foi o samba escolhido. Para a surpresa dos presentes, daquela aparente garota mirrada saiu um mulherão enérgico que, com sua voz, calou a boca dos que dela riram. Levou o prêmio, claro. O resto é história.
Era preciso ter garra e tapar algumas vezes os ouvidos para entrar no mundo musical, já que a sociedade moralista da década de 50 taxava as cantoras de prostitutas e os representantes masculinos de boêmios. Elza diz que se tal realidade a assustou no princípio, deixou as besteiras de lado e seguiu em frente. "Fiz e andei para quem pensasse isso", conta. "Meu talento, nasci com ele, ninguém me deu a não ser Deus". Confiança nela mesma não faltava e se havia algo a temer era da fome e das péssimas condições de vida que tinha, não do que poderiam pensar mentes mais restritas. "Eu entrei de corpo e alma. Fui entrando e me aceitaram. E aqui estou: uma mulher negra representando a grande massa", sustenta.
Esta mulher, que quando garotinha, no bairro de Água Santa, no Rio de Janeiro, cantarolava como forma de escapismo nos momentos tristes, diz que o valor da música para ela não mudou. "Acho que tudo que interpreto fala muito dentro de mim, não há nada que eu não cante que não sinta um pedacinho de mim ali dentro", revela. "Cantar ainda é remédio bom e a música alimenta a alma." Elza, porém, afirma ser forte como aparenta e como canta, mas, humana que é, tem também fases mais sensíveis. Algumas tristezas não exteriorizadas na música assumem sua forma em lágrimas. "Eu choro também. Tenho meus momentos de não raciocinar, de ficar fora do eixo, às vezes quero me segurar, mas meus pés não deixam", desabafa. "A vida é isso. A arte ou te ajuda muito ou te machuca muito. E eu vivo as duas partes."
Elza caracteriza sua voz como "bandida", já que diz não fazer grandes esforços para mantê-la. Mas não é só seu rouco que a diferencia das demais intérpretes. Ela tem a malandragem do morro, suingue e gingado que definitivamente não são para todos. Brinca e se vale de ousadia sem medo. Tanto que, nessas de fazer o que bem entende, lá atrás "jazzificou" o samba ao inserir scats ao longo das faixas que cantava. "O scat é muito negro, muito blues, muito jazz", explica a experiente artista. "Comparo o samba ao blues e ao jazz. É o sofrimento do negro, é o açoite, é a angústia, a agonia, é amor demais." Na Copa do Mundo do Chile, em 1962 (época em que namorava o craque Garrincha, com quem se casou), conheceu uma de suas grandes influências, o norte-americano Louis Armstrong. "Mandaram eu chamar o cara de 'father' e eu falei 'não vou chamar o cara para a foda comigo de maneira alguma', depois me explicaram que 'father' era 'pai' e aí ficou tudo mais fácil", revela, às gargalhadas.
De criança pobre a diva da música, sua vida cheia de altos e baixos, além de ter sido tema da biografia Elza Soares - Cantando Para Não Enlouquecer, escrita por José Louzeiro e lançada na década de 90, deu origem a um documentário dirigido por Izabel Jaguaribe, intitulado Elza, que será exibido no Festival de Cinema do Rio de Janeiro (que teve início nesta quinta, 23, e vai até o dia 7 de outubro). A cineasta mineira Elizabete Martins está trabalhando em outro projeto sobre a cantora, Elza Soares - A Voz do Brasil, filme cujo mote é o "my name is now", frase tão proferida pela própria Elza em sua forma de mostrar como enxerga a vida: nada do passado, nada do futuro. O que vale é o agora.
Dois pra lá, dois pra cá
Dias 24, 25, 26: Elza Soares e Moacyr Luz
Sextas e sábados, às 21h
Domingos, às 20h
Teatro I - SCES Trecho 2, lote 22 - Brasília/DF)
R$ 7,50 (meia para estudantes, professores, maiores de 65 anos e cliente BB)
Informações: www.bb.com.br/cultura ou (61) 3310-7087
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