Vinte anos depois da morte de Cazuza, Lobão relembra a época de boemia e a longa amizade com o músico
Por Fernanda Catania Publicado em 07/07/2010, às 19h01
"Lembro de uma época de muita poesia, em que vivemos intensamente a noite, a boemia. Fazíamos poesias nos guardanapos dos bares", diz o músico Lobão, em entrevista ao site da Rolling Stone Brasil, sobre o tempo que esteve ao lado de Cazuza, que, há 20 anos, morria vítima de aids. Não é por menos que Lobão seja uma das melhores pessoas para falar sobre o cantor. Na década de 80, junto a Julio Barroso (morto em 1984), eram melhores amigos e passaram juntos um dos períodos mais intensos de suas vidas.
Na época, o grupo boêmio do Rio de Janeiro costumava se encontrar à noite na região do Baixo Leblon. Era de lá que Lobão conhecia Cazuza, até descobrir o potencial musical do garoto, ao ouvir "Down em Mim". "Falaram que era do Barão Vermelho, grupo do filho do João Araújo, achei que seria mó jabá", conta. "Então, quando acabou a música, eu estava completamente mexido, um grande poeta aparecia ali", afirma Lobão, que disse ter ficado impressionado com a "letra maravilhosa e extremamente inspirada" da faixa. A partir de então, os dois ficaram cada vez mais amigos e passaram a fazer, de maneira despretensiosa, parcerias musicais, como nas faixas "Mal Nenhum" e "Azul e Amarelo" - no geral, Cazuza cuidava das composições e Lobão fazia os arranjos.
Não é de se estranhar que Lobão tenha dado risada durante toda esta entrevista. Afinal, lembrar da amizade com "Caju" é sinônimo de bons momentos. Segundo o músico, Cazuza era "maluco, engraçado, provocador, debochado, sem vergonha e, ao mesmo tempo, uma doce criatura", diferente do garoto tranquilo e sério que passava o tempo lendo livros na casa dos pais, Lucinha e João Araújo. "Ele era doce com todo mundo, mas, de repente, ficava completamente cafajeste, sujo e traiçoeiro", relata Lobão, que se prepara para lançar sua autobiografia em outubro.
Juntos, os amigos viveram os anos mais loucos de suas vidas e "se zoavam o tempo inteiro". Uma das maiores provas disso talvez tenha acontecido em 1989, quando Cazuza, já muito doente, bateu na porta de Lobão para criar mais uma música, "Quero Ele". "Ele me mostrou a letra, mas eu disse que não me sentia muito a vontade de fazer", conta. Basta prestar atenção em alguns versos, para entender a resistência de Lobão: "Quero ele por trás dele/ Por cima da mesa/ Quero Querelle, quero querê-las/ Quero tê-las, seus bagos, suas orelhas/ Quero ele brocha, quero ele rocha/ Quero ele com seus pentelhos/ E seu doce sorriso nas sobrancelhas". "Eu disse que não me via cantando aquilo e ele ficou bravo, mas passou. Um ano depois, quando ele já estava morto, descobri que registrou a música em meu nome, comecei a receber os direitos autorais pela faixa", relembra, às gargalhadas.
Pode parecer que a relação da dupla se resumisse apenas a uma "curtição desenfreada", mas a amizade deles ia além da farra. Segundo Lobão, Cazuza era um grande amigo, companheiro e tinha um coração enorme. "Ele era o único amigo que saía em público para falar sobre mim. Ele dizia: 'Vocês estão subestimando o Lobão, ele é um rapaz educado, não é bandido'. Fazia questão de dar a cara à tapa para me defender".
Morte anunciada
Quem conviveu com Cazuza afirma que ele era um homem intenso e transparente, já que era fácil identificar quando estava em momento destemperado ou frágil. Por isso, não poderia ser diferente durante o período de sua doença. "Ele queria aproveitar a vida. Tomava os remédios, mas nunca deixou de beber e fazer o que queria, acelerou até o final. Todo mundo sabia", conta Lobão. "Na época, a aids causava muito mais pavor, era uma sentença de morte, não tinha solução. E ele sabia que estava ferrado, estava roxo, parecia um zumbi por causa dos remédios. Era muito chocante ver seu amigo definhando, com 30 kg, sem cabelo."
Ao que parece, a amizade com Lobão foi importante nesse período. Enquanto todos o mimavam, o amigo contribuía com o lado realista. "Ao mesmo tempo em que ele gostava de ser paparicado, ficava muito irritado com aquela piedade que sentiam. Eu era muito cruel e ele adorava", afirma Lobão. "A gente fumava um baseado e ele ficava babando no cigarro, aí passava pra gente e eu falava: 'Pô, você com doença contagiosa, não tem vergonha na cara?' Mas [a gente] fumava, ou cheirava no mesmo canudo, sabe?"
Inevitável dizer que a morte de Cazuza marcou uma época, já que foi o primeiro artista do país a falar abertamente sobre a aids. "Ele brincava, falava na boa, mas sofria muito, claro, estava na flor da idade." A postura da imprensa e da sociedade preconceituosa da época pode ter potencializado ainda mais o sofrimento do cantor: "O tratamento era muito cruel, mas eu e Cazuza nos defendíamos muito. Nunca esqueço o que ele disse quando começaram a falar: 'Pô, precisou eu pegar aids e o Lobão ser preso para que vocês prestassem atenção na gente'."
Os anos 80 foram marcados pelo surgimento de grandes artistas da música popular brasileira, mas que, na época, não chegavam perto de serem as figuras de peso que se tornaram hoje. "A produção dos nossos discos ficava largada, a MPB era considerada uma coisa infanto-juvenil, de rock, e não o filet mignon da música brasileira. Isso só seria firmado e maturado se Cazuza estivesse vivo", acredita Lobão. "A gente queria acabar com a caretice da MPB e agora parece que está ainda pior. Hoje, Cazuza seria um grande antídoto contra isso. Ele era o oposto da caretice, sem deixar de ser brasileiro e de ter influências rock 'n' roll."
Lobão faz questão de se posicionar contra a comoção pós-morte dos ídolos da época, como aconteceu com Cazuza. "Sempre digo que ele é uma vítima, porque só foi ter reconhecimento depois de morto. Quando estava vivo, era um roqueiro aidético, maconheiro, filhinho de papai, filho do João Araújo. Ele viveu com essa sensação, jamais poderia imaginar que se tornaria uma figura de peso. Acho triste e irônico, porque ele virou exatamente aquilo de que nunca usufruiu."
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