Com quinto álbum lançado nas vésperas de uma turnê cancelada, artista reflete sobre a solidão e o infinito à 'Rolling Stone Brasil'
Pedro Antunes, editor-chefe Publicado em 04/04/2020, às 18h00
Se fosse um filme, cena seria ideal para a sequência de início. Lá do alto, acima das nuvens, a câmera desce, desce, desce. Noite, madrugada, algumas poucas luzes ainda estão acesas naquela região de Portugal. Avistamos um rapaz, sozinho, sentado no banco de uma praça.
Ele usa fones de ouvido e um notebook no colo enquanto olha para cima, para a câmera, para nós, para as estrelas. A imagem segue em descida, passa por perto dos cabelos cacheados dele até ir de encontro à tela do computador no colo, como se a atravessasse. E estamos, de novo, no espaço, em nova descida, dessa vez mais rápida. Tudo se repete. Enfim, vem o letreiro: Cosmo, por Cícero.
Ali, quem está é Cícero Rosa Lins, um artista a finalizar o novo álbum, o quinto da carreira, um disco criado na solitude, Cosmo, lançado recentemente nas plataformas digitais (escolha aqui).
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Cosmo é tudo e nada, conceitualmente, é o universo todo (a ideia da crença em algo maior acima de nós) e a insignificância (afinal, a busca por um significado maior parte justamente do entendimento da nossa própria pequenez).
Já são alguns anos com entrevistas com Cícero. E, pela primeira mais, ele soava ansioso do outro lado da linha. Falava mais rápido, com ideias que vinham e iam embora mais depressa - e, por vezes, respondia uma pergunta com outro questionamento. São outros tempos esses, afinal.
Aos 34 anos, Cícero está de volta à casa da mãe, de onde saiu quando tinha 21, antes mesmo de estrear como o artista que conhecemos hoje. Tem conseguido manter a mãe dentro de casa durante esse período de isolamento, mas a tia ainda deixa o apartamento. "Ela é médica, então é por uma boa causa", explica ele.
Por vezes, ele conta, percebe-se andando pela casa, zanzando de um lado para o outro. "Estou até arrumando meu quarto, uma coisa que não faço desde 1994", ele diz antes de gargalhar, possivelmente acometido por lembranças de quando vivia ali.
Cícero vivencia o momento de lidar com a ansiedade de ter um disco na rua sem poder segui-lo e levá-lo para estrada. Vivia em Portugal por pouco mais de 1 ano quando voltou ao Brasil, ao Rio de Janeiro, para lançar Cosmo nas plataformas digitais e para dar início à turnê.
É disso que sente falta, ele diz, e o angustia. "Um exemplo: as músicas que cantei junto em um show, elas ganharam uma importância muito maior na minha vida", ele explica. "As que só ouvi no streaming, elas ficam ali. Isso me deixou frustrado no começo."
Esse sentimento é um bom exemplo da transformação de Cícero como artista e performer. Os shows, no início de carreira, em 2011, eram um espaço emocionalmente mais hostil. O que é compreensível, afinal, a estreia, Canções de Apartamento, foi um álbum criado em um mundinho habitado por ele, como diz o título. Tudo muito íntimo.
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Ao longo dessa década, ele passou por uma metamorfose artística até a chegada de Cosmo, um disco que, sem querer, previu a solidão do isolamento mundial.
Não é exagero dizer que Cícero é um artista veterano. São cinco discos, afinal: Canções de Apartamento (de 2011), Sábado (2013), A Praia (2015), Cícero & Albatroz (2017) e, agora, Cosmo (2020). Cada um deles é como um retrato.
Canções… é como uma selfie de alguém que ainda procura para onde caminhar, enquanto Sábado e A Praia também refletem momentos de transformação (e de mudança de moradia). Cada álbum foi gravado em um novo ambiente, com Cícero em uma nova casa - A Praia, por exemplo, foi um disco feito durante a vivência dele em São Paulo. Já Albatroz é um disco coletivo e de volta ao Rio de Janeiro, por isso é tão expansivo e intenso.
Cosmo, por sua vez, é novamente uma selfie de Cícero, agora em outro país, Portugal, em outro ritmo. "Meus discos refletem o lugar onde eles foram feitos, mesmo", concorda, "Albatroz foi um disco com 8 pessoas tocando ao mesmo tempo. Era mais agressivo, mais rápido. E Albatroz tinha sido pensado para ser contraponto dos discos anteriores."
Cícero segue: "Portugal é um país muito mais devagar, isso foi deixando o disco mais lento, mais calmo. Por isso eu me mudo tanto, fiz Albatroz depois de dois anos de São Paulo, óbvio que seria assim. As coisas fazem sentido de acordo com o lugar que elas são geradas".
Isso é tão perceptível, de fato, como o olhar para cinco fotos do Cícero nos anos de cada álbum. O mesmo é ouvi-los, os discos, em sequência - a calmaria, a tormenta - e perceber como cada espaço se reflete na estética do disco.
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Cosmo, que soa tão orgânico, foi criado sem que Cícero pegasse no violão, veja bem. Os sons foram criados no computador, camada por camada, até chegar o momento de gravar. Aí, Cícero convocava alguém para fazer o registro no estúdio. "Foi o disco que eu mais demorei para gravar", revela.
"A guitarra entrou como um contraponto dos arranjos", ele revela, "em vez de ser o chão. Ela traz uma linha mais melódica, um riff."
Cosmo, portanto, reflete esse novo espaço mental e físico de Cícero. Porque a distância de casa, estar em outro país, também é responsável por um sentimento de falta de pertencimento, saudade e solidão. E é nesse ponto que o quinto disco do artista bate e bate forte. A solidão.
É um disco esteticamente introspectivo. Cícero, que canta manso naturalmente, soa quase como se sussurrasse. "É um disco pensado para ser ouvido em um fone de ouvido, porque foi assim que eu o fiz", ele conta.
A cena da abertura do texto, do artista sentado em um banco de praça, na madrugada, com notebook e fone de ouvido foi real. Assim que Cosmo chegou à forma de hoje.
Nas canções, a solitude ganha diferentes formas. Do sentimento criado com a partida de alguém, como em "A Chuva", ao próprio título, uma reflexão sobre a pequenez humana e a necessidade por encontrar algo maior do que a própria existência.
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"Desde o início da humanidade, o homem foge da solidão. Seja na presença de outro ou na presença de si, mesmo, tentando se contextualizar em algo maior. Por isso, criamos deuses, fábulas, algo que venha antes ou depois", explica Cícero.
Ele segue: "A gente cria situações para não se sentir sozinho. Cosmo é uma expansão de significados que beiram o delírio. O disco começa e chega ao fim dizendo que tudo é sozinho e um delírio, tudo são projeções da nossa cabeça em busca de uma grande coisa, um significado, uma coisa que seja tudo. Alguns dão nome de Deus, de Natureza, de Grande Mistério. Acho todos válidos, poéticos e bonitos. Para mim, isso é Cosmo."
Cosmo é um disco complexo justamente por pedir por uma audição atenta. É quando ele aflora, quando o ouvinte está em um lugar calmo, com fones de ouvido com alguma qualidade, quieto por esses pouco mais de 30 minutos. É quando o universo particular, o próprio, se expande, graças às canções contemplativas de versos enigmáticos de Cícero.
Por fim, o disco se apresenta como um refúgio. Em tempos de bombardeamento de notícias ruins e calamidades, Cícero oferece um alento particular para cada um que ouvi-lo.
Uma frase, um verso, um som pode despertar um sentimento de expansão, de consciência ou de claridão, como se um novo universo abrisse dentro de cada um. Um cosmo próprio e só seu.
No meu caso, caso estejam curiosos, ocorreu com "Miradouro Nova Esperança", quando fui inundado por essas palavras aqui: "Ser feliz é um contra-ataque". Pareceu pertinente e curioso: um disco criado a partir e sobre a solidão tornou-se a companhia.
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