Ainda que seja literatura barata, Cinquenta Tons de Cinza estimula o mercado a olhar para a pornografia voltada à mulher
Bruna Veloso Publicado em 02/08/2012, às 13h09 - Atualizado às 14h57
Como um livro tão mal escrito e cheio de clichês pode se tornar um best-seller tão comentado? Será o “mommy porn”, como é descrita a literatura da autora britânica E.L. James (foto), o novo gênero literário a dominar as listas de mais vendidos, depois das sagas épicas e dos contos adolescentes? Cinquenta Tons de Cinza (Fifty Shades of Grey no original), o primeiro livro da escritora de 49 anos, levanta essas questões, mas mais do que isso: por que uma obra erótica com apelo maior às mulheres – por pior, em termos de qualidade da obra, que ela seja – ainda causa tanto alvoroço?
A trilogia de Cinquenta Tons de Cinza, cujo volume inicial acaba de chegar ao Brasil (editora Intrínseca), é um caso intrigante. Erika Leonard James, casada, mãe de dois filhos, dona de casa, começou a matutar a história de Anastasia Steele em sites de fanfics (histórias criadas pelo público) de Crepúsculo. Não tinha experiência como escritora, nem nunca havia lançado título algum. Mas o apelo de sua personagem central, a ingênua e boba Anastasia, tornou-a responsável por um dos best-sellers do ano até o momento.
Anastasia é uma mulher (menina se encaixa melhor) de 21 anos, virgem, insegura e desastrada. Ler o primeiro capítulo do livro é uma prova de fogo, já que Erika é tão fã de clichês quanto os responsáveis por aqueles romances populares e de gosto duvidoso que ainda podem ser encontrados em bancas de jornal. Mas, depois do tédio que são as primeiras páginas, surge Christian Grey (referência ao título em inglês), um empresário com menos de 30 anos, misterioso, bilionário e, segundo a visão de Anastasia, uma espécie de deus grego reencarnado. Grey é sedutor e arrogante – e adepto de um estilo de vida BDSM, sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo.
Se a escrita é sofrível, a história é interessante – afinal, uma protagonista abobalhada que começa sua vida sexual com um homem adepto do sadomasoquismo tem, sim, a capacidade de gerar momentos excitantes. Mas volta a pergunta: como um texto fraco, mesmo com uma trama curiosa, pode ser bem-sucedido em nível global?
Literatura erótica não é novidade para ninguém – nem literatura erótica com apelo para o público feminino. Anaïs Nin a fez há muito tempo, às vezes em seus próprios diários, como em Henry & June (lançado inclusive em versão de bolso no Brasil, assim como Fogo e Delta de Vênus, duas obras dela de conteúdo mais sexual). Catherine Millet escancarou “bocetas”, “paus” e “surubas” em A Vida Sexual de Catherine M., contando de forma crua suas experiências (sem nenhum tipo de floreio, dando muitas vezes um ar mecânico às dezenas de relações descritas no livro). A Casa dos Budas Ditosos, escrito por João Ubaldo Ribeiro, mas sob a perspectiva de uma mulher, é outro exemplo – uma senhora, já perto da morte, que conta o lado sexual da vida com tanto gosto que até o mais pudico dos seres humanos é capaz de se pegar fantasiando diante do texto. Ou então Três, de Melissa Paranello (aquela de Cem Escovadas Antes de Ir para Cama), relato de um triângulo amoroso entre dois homens e uma mulher, e até A Mulher do Próximo, de Gay Talese, que mesmo sendo um livro-reportagem, consegue ter momentos tão quentes quanto os de Cinquenta Tons.
Ainda que seja infinitamente inferior a todos esses exemplos, Cinquenta Tons de Cinza é um grato lançamento. Pode ser completamente descartável para amantes da literatura, mas é, quem sabe, uma porta de entrada para mulheres que jamais se sentiram suficientemente estimuladas a buscar um livro do gênero – e que, tamanha a repercussão da obra, se deem a chance de folheá-lo. E.L. James é a Anaïs Nin do século 21? Jamais. Mas quantas das mulheres que estão comprando Cinquenta Tons podem nunca ter ouvido falar antes de Anaïs Nin e, agora, terão a vontade de conhecê-la?
Mais ainda: uma protagonista que aos 21 anos nunca se masturbou diz muito sobre diversas gerações de mulheres que, embora isso soe completamente absurdo, ainda não conseguem lidar com a sexualidade de maneira equilibrada. É literatura barata, sim – assim como é cinematografia barata o tipo de vídeo pornô que os jovens se acostumaram a consumir. O sucesso de Cinquenta Tons de Cinza não promoverá uma revolução no mercado editorial, mas quem sabe abra portas para algo mais importante: o entendimento de que a mulher quer e pode buscar o consumo da literatura erótica, sem ter de ser questionada por isso.
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