Como discursos sexistas podem influenciar os adolescentes e jovens adultos a reproduzirem o machismo dentro da sociedade?
Isabela Guiduci Publicado em 10/08/2020, às 07h00
Desconstruir os conceitos formados a partir de uma sociedade machista patriarcal é um processo longo e, de fato, complexo. Foram séculos, décadas e anos com um pensamento extremamente sexista. Se desprender dessas ideias, portanto, requer uma reeducação de princípios e convicções. Não é diferente para as obras audiovisuais, ainda mais para os filmes clichês direcionados ao público adolescente e jovem adulto.
As produções cinematográficas são um dos principais meios de comunicação do século em que vivemos. Somos bombardeados de informações - e o audiovisual tem sido uma ferramenta importantíssima na disseminação de ideias - seja com séries, documentários, e/ou filmes.
Com tantas tecnologias acerca de nós, criamos métodos de linguagem que são extensões do nosso corpo. Portanto, as modernizações também são capazes de gerar identificação, compartilhar ideologias, crenças e reproduzir discursos - negativos ou positivos - que são reflexos da sociedade.
Em 2014, com a chegada dos streamings no Brasil, os hábitos de consumo audiovisual foram repensados para as plataformas, por ser uma opção facilitadora, principalmente para o público adolescente e jovem adulto.
De acordo com uma pesquisa de 2019 da App Annie, via TechMundo, o nosso país ficou em 6º lugar entre os que mais usam plataformas de streaming para assistir produções audiovisuais. Inclusive, os mesmos dados mostram que foram registrados uma alta no tempo de consumo de 90%, com destaque para o uso de celulares.
Os streamings mudaram, portanto, os hábitos de consumo de filmes das pessoas, que não precisam mais ir até aos cinemas para assistir uma nova produção, por exemplo. Além disso, facilitou o acesso para todas as idades.
Para catálogos mais completos, os serviços como Netflix, Amazon Prime Video, HBO GO e outros, passaram a investir grandemente em inserir filmes adolescentes, ainda mais os de comédia romântica. Todos são muito consumidos por diversas faixas-etárias, não apenas jovens adultos.
Um exemplo é a produção original Netflix, Barraca do Beijo, que ganhou o segundo filme em 24 de julho. No dia do lançamento, o longa ocupou várias posições nos assuntos mais comentados do Twitter e provou ser um dos principais sucessos do streaming.
Há uma questão bastante problemática em relação a estas produções teen, porém. Na maioria dos casos, e principalmente naqueles que apresentam relacionamentos heterossexuais, os filmes trazem personagens homens cisgênero - e até mesmo mulheres cisgênero - reproduzindo um discurso machista e mantendo posturas de masculinidade tóxica.
Para se desconstruir e repensar os personagens e discursos sexistas apresentados constantemente nos filmes clichês teen, é preciso entender o que é o machismo e a masculinidade tóxica.
O machismo é o enaltecimento do sexo masculino sobre o feminino, a partir de comportamentos, opiniões e sentimentos que declaram a desigualdade de direitos entre os dois. Este discurso também propõe relações de poder, nas quais, em relacionamentos heterossexuais, o homem sempre será o dominante.
Ainda, um discurso machista é aquele cujo acredita que homens e mulheres têm papéis e responsabilidades distintas na sociedade, e julga a mulher como inferior em aspectos físicos, intelectuais e sociais - o que causa opressão, objetificação e outros.
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Já o sexismo é similar, mas vai além - em uma explicação direta e objetiva, é a discriminação de gênero. Mais detalhadamente, reforça os costumes enraizados e ensinados desde a infância, como os conceitos do que deve ser respeitado por cada sexo, como o modo de vestir até o comportamento social "adequado". Em uma sociedade machista estrutural - o sexismo é o expoente do preconceito de gênero.
A masculinidade tóxica é a ideia de que o homem precisa ser agressivo, violento, rígido, não demonstrar sentimentos, ser infalível, bem-sucedido, dominante, com uma postura viril e mais.
Os relacionamentos retratados nos filmes são machistas. E, por ser direcionado para um público adolescente, pode influenciar em comportamentos destes jovens que estão formando ideais pessoais, e criam referências com essas obras audivoisuais. Meninas e meninos podem normalizar estes comportamentos.
Ainda, em filmes como Barraca do Beijo e After - dois grandes sucessos entre adolescentes - é possível identificar um controle maior por parte do parceiro envolvido na relação amorosa. Se um controla, o outro é dominado, portanto, é sexista e pode ser até abusivo.
Estes comportamentos não são exclusivos aos filmes teen, mas de jovens adultos também. Exemplos clássicos são a franquia Cinquenta Tons de Cinza e o recente lançamento da Netflix, 365 Dias.
Uma das principais questões é a naturalização destes comportamentos sexistas e, opressores em relacionamentos abusivos ou assédio. Essas atitudes são um retrato da sociedade, que pode ser um dos fatores os quais dificultam o público a entender o teor preocupante das ações machistas e da masculinidade tóxica.
Vale pontuar, ainda, que homens e mulheres podem reproduzir comportamentos sexistas, por isso é tão importante a desconstrução, debates e questionamentos sociais.
No caso das mulheres, isso acontece porque estruturalmente ela é conduzida a reproduzir estes discursos - exatamente pelo machismo, o qual, não 'quer' que ela conteste esses pensamentos.
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"A conscientização feminista revolucionária enfatizou a importância de aprender sobre o patriarcado como sistema de dominação, como ele se institucionalizou e como é disseminado e mantido. Compreender a maneira como a dominação masculina e o sexismo eram expressos no dia a dia conscientizou mulheres sobre como éramos vitimizadas, exploradas e, em piores cenários, oprimidas”, explica bell hooks, uma das principais pensadoras feministas no livro O feminismo é para todo mundo.
Sobre a questão da consciência, bell hooks também afirma: "Antes que as mulheres pudessem mudar o patriarcado, era necessário mudar a nós mesmas; precisávamos criar consciência." Vale lembrar que o movimento feminista não é anti-homem, mas sim, anti-machista e antissexismo.
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De fato, se desprender de um discurso machista e de uma postura de masculinidade tóxica em uma sociedade machista patriarcal é muito difícil. Não é diferente nos filmes adolescentes.
Um dos principais clichês entre as produções adolescentes norte-americanas é o menino ser do ‘tipo pegador’ e se apaixonar por aquela menina não popular - clássico. No entanto, ao traçar essa narrativa, muitas vezes, os longas caem no erro de reproduzir uma postura sexista, de objetificação e sexualizacação das mulheres - isto é, elas serem resumidas ao prazer do homem -, masculinidade tóxica e outras.
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Por exemplo, é muito comum nessas produções, o garoto não saber demonstrar sentimentos ou por ser jogador e muito popular no colégio, não pode mostrar as emoções para a garota que ele gosta, porque será ‘zoado’ pelos amigos.
Além disso, após o romance acontecer, os filmes trazem comportamentos agressivos, de que o homem precisa se impor, ter ciúmes para mostrar “cuidado”, entre outros. Contudo, essas atitudes são totalmente equívocas e erradas.
No caso de After especificamente, o protagonista Hardin - acostumado por “ter todas as garotas” - fica indignado com o não de Tessa e aposta com os amigos que será capaz de fazê-la se apaixonar por ele. Além disso, ao ficarem juntos, ela trai o então namorado, briga com a mãe, e se afasta das amizades e essa ‘imagem’ ainda é colocada como amor.
Romantizar de tal maneira um relacionamento abusivo como este, no qual, Tessa passa a viver por Hardin, é muito complexo e pode fazer com que o público adolescente entenda isso como um tipo ‘normal’ de relação - e não é. Pelo contrário, reproduz o discurso machista, opressor, e a masculinidade tóxica.
Em geral, portanto, ao usarem o discurso do clichê, os filmes teen acabam normalizando situações sexistas e machistas. Esta narrativa não é exclusiva à Barraca do Beijo e After. Outras produções também reproduzem este discurso problemático, às vezes de maneira mais velada.
O audiovisual é uma das principais ferramentas de consumo de informações, como explicamos. Somado à isso, os filmes clichês teen também dialogam com um público que está no processo de construção de identidade e princípios.
A psicóloga clínica Beatriz Tama Araki Barbosa explica sobre essa fase: “A adolescência é um período de transição entre a infância e a vida adulta e pode ser considerada uma construção social, pois a forma como enxergamos a adolescência varia de acordo com a cultura, contexto social, econômico e histórico em que ela está inserida.”
“Nessa fase, o sujeito fica focado em construir sua identidade, se distanciando dos referenciais infantis, da família e dos pais e buscando um novo referencial, muitas vezes encontrado nos seus pares, que são os grupos de amigos e colegas da mesma idade, e na mídia”, complementa.
Ainda, afirma: “Um adolescente tem o desenvolvimento cognitivo e físico similar ao de um adulto, mas não é aceito como igual por eles. Além da construção de uma identidade sólida, é cobrado do adolescente que ele se insira na sociedade em um novo papel (o de adulto).”
Essa percepção, e processo de identificação, não é exclusiva aos adolescentes. Beatriz conta: “Isso também acontece com os adultos, mas muito mais intensamente com os adolescentes, justamente por estarem em uma fase neurológica e psicologicamente vulnerável em que a construção de seu autovalor e a aceitação social estão em foco.”
“O sujeito [adolescente] está começando a se inserir na sociedade como um ser completamente formado. Além disso, o cérebro dele não está completamente desenvolvido, de modo a ter julgamentos menos precisos, mais irracionais e a ser mais impulsivos”, conclui.
Sendo assim, filmes adolescentes têm a responsabilidade em relação aos discursos que serão apresentados ao público. Isso porque, os jovens que assistem esse conteúdo, em geral, estão em busca de uma identidade e maneiras de formais ideais - diretamente influenciados pela mídia.
Além disso, repensar essas atitudes e comportamentos machistas também é importante para construir ideologias que visam a igualdade de gênero e relacionamentos os quais não sejam baseados em relações de poder para assim se desprenderem da opressão.
Vale lembrar, ainda, que os espectadores de 13 a 24 anos são o principal núcleo de fãs. Estes jovens buscam a identificação nos personagens, por isso, precisam enxergar os comportamentos problemáticos para não reproduzir este discurso de desigualdade de gênero na sociedade - seja com debates sociais entre o público consumidor da obra audiovisual; seja, em um cenário ideal, com roteiros bem-pensados sobre diálogos que pautam o feminismo e desconstrução da masculinidade tóxica.
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