Local de acolhimento e resistência, a cultura ballroom foi criada por pessoas LGBTQ+, negras e latinas - mas isso não foi totalmente apresentado ao mainstream
Camilla Millan I @camillamillan Publicado em 19/08/2020, às 07h00
Madonna é, definitivamente, um ícone da cultura pop. Por meio das músicas e videoclipes, a cantora uniu um discurso empoderado pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQ+ a um visual que quebrou tabus relacionados ao sexo, à igreja e até à comunidade 60+.
A artista foi importante em diversas áreas da cultura, da moda à música e dos clipes às declarações de uma celebridade mundial. Com um alcance internacional, Madonna deu visibilidade a várias questões entendidas como polêmicas.
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“Like A Virgin”, “Like a Prayer”, “Express Yourself” e “Erotica” foram algumas das canções que marcaram a ascensão de uma verdadeira estrela do pop - sem contar com uma das faixas mais famosas, “Vogue”.
Para além de uma canção e de um clipe repleto de dança, “Vogue” expressa uma pequena parte de uma cultura complexa e repleta de significâncias: a cultura Ballroom. Se você acredita que vogue está relacionado unicamente com "imitar capas de revista", esta matéria tem como objetivo mostrar a você um movimento bem mais complexo e significativo.
Sem dúvidas, Madonna foi importante para trazer a dança voguing para o mainstream, inclusive por meio de dançarinos do movimento. No entanto, a cantora apresentou apenas uma parte de uma cultura criada por corpos LGBTQ+ negros e latinos dos Estados Unidos.
Karoline Lima, Pioneer Mother da Kiki House of Raabe, conversou com a Rolling Stone Brasil sobre o tema. Ela, Raissa Santos e Carol Frizeiro fazem parte da house e coordenam o site House of Raabe, focado em pautar mais sobre o movimento.
“Madonna tem importância e relevância, mas o trabalho ainda fica com a gente. Ela é ela, independente de ‘strike a pose’. É um ícone pop que revolucionou e a cada álbum se reinventa - é pioneira no que faz. Muitas pessoas conheceram o voguing a partir dela, mas ainda sim, a cultura ballroom existia antes, ainda existe, e está resistindo e é um trabalho nosso”, explicou Karoline Lima.
A cultura ballroom faz parte de algo muito maior que não foi captado inteiramente pela cantora pop. Os bailes organizados por houses começaram em 1972 com Crystal LaBeija, drag queen e mulher trans negra que se posicionou contra o racismo de concursos de beleza drag - enquanto o hit de Madonna foi lançado apenas em 1990.
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Mesmo com registros sobre a cena ballroom e com a história trans negra e latina do voguing, muitas pessoas ainda acreditam no pioneirismo de Madonna - uma mulher cis e branca - quando se trata do movimento.
Conversamos com Silvia Miranda, travesti de 21 anos chamada de Mãe Pioneira Yagaga Kengaral na comunidade Ballroom. Ela trabalha no movimento desde 2018 com o coletivo Becha Cearense. Segundo a artista, o “uso” do voguing por Madonna se trata de uma apropriação cultural.
“Querendo ou não, Madonna é uma mulher cis branca protagonizando uma cultura LGBTQ+ criada por travestis pretas. Ela se apropria dessa cultura e nem informa as pessoas. Em pleno 2020, acreditam que o vogue foi criado por ela e ‘tem lá o clipe para comprovar’”, explicou Miranda.
Uma das principais críticas feitas em relação à cantora, é a escolha de uma pequena parte da cultura. A artista norte-americana teria levado ao mainstream uma parte ínfima da comunidade ballroom - tudo sem explicar do que realmente se trata. Dessa forma, mantiveram-se lugares de privilégios, deixando de fora os reais protagonistas do movimento: corpos trans negros.
“O maior erro da Madonna foi não ter falado sobre a origem negra e latina dessa cultura e música. Todo mundo sabe que o racismo vem atravessando anos e e séculos, e esse não-posicionamento dela traz consequências muito fortes. A comunidade ballroom é referência para o mundo pop desde antes da Madonna. As pessoas já estavam atentas ao runaway e à própria comunidade LGBTQ+, mas enquanto corpos mais privilegiados, que não eram transgêneros ou negros”, disse Victorya Devin.
Devin é Legendary Princess Bruxa Cósmica, 1° legendary mainstream scene do Brasil, coroada princesa do capítulo brasileiro da House of Xtravaganza (NY), artista, performer e co-fundadora da Casa de Cosmos (RJ), juntamente com a Mother Buraco Negro e o Father Matéria Escura. Devin foi “adotada” por Jose Gutierez Xtravaganza, dançarino que participou e coreografou o clipe “Vogue”, de Madonna, e trabalhou com a cantora em turnê.
Segundo a Legendary Princess Bruxa Cósmica, é essencial evidenciar a importância da Madonna para a cultura pop, além de considerar a história dela. No entanto, a dançarina acredita na existência de um desvio dos verdadeiros protagonistas da cultura ballroom: “Apesar de termos ali os bailarinos que vivem essa cultura no clipe, o Jose, o Luiz Xtravaganza, ainda eram corpos cis, confortáveis na sua identidade”.
Ela continuou: “A gente percebe ali que aquela imagem não foi quebrada, e o Vogue é sobre construção de imagem. Então, ela [Madonna] continuou reforçando uma aparência que estava sendo feita igual a todas as outras pessoas. É justamente sobre esse lugar do privilégio cis”.
Para entender a importância da cultura ballroom e do protagonismo dos corpos trans negros, é essencial a compreensão da origem da dança e das balls - bailes nos quais acontecem a reunião de pessoas da comunidade, batalha de vestimentas e dança.
Em muitos casos, a revista Vogue é tida como a inspiração para a dança, mas os movimentos fazem parte de algo muito maior que inclui acolhimento de corpos LGBTQ+ e protagonismo de pessoas como as Femme Queens, mulheres trans da cena ballroom.
De acordo com o site House of Raabe, na década de 1920, um movimento cultural negro se iniciou no Harlem, bairro de Nova York: era o Harlem Renaissence. Ele tinha diversos líderes LGBTQ+ e negros - algo que influenciou as manifestações culturais no local.
Segundo Victorya Devin, Legendary Princess Bruxa Cósmica, tudo começou em 1929 com uma lei dos Estados Unidos que prendia pessoas travestidas em locais públicos. Em vigor durante décadas, a lei encarcerou diversos transgêneros - e várias pessoas foram para a prisão de Rikers Island, em Nova York. “Dentro da cadeia, surgiu essa brincadeira de imitar as poses da revista, e a única revista que entrava na penitenciária era a Vogue”, explicou a dançarina.
Em paralelo, aconteciam os bailes e concursos de belezas de Drag Queens repletos de categorias. Em um deles, a drag queen e mulher trans negra Crystal Labeija se indignou contra o racismo e “o silenciamento dos corpos negros”, como escreveu o site House of Raabe.
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Assim, em 1972, Crystal Labeija criou um baile exclusivo para queens negras, organizado pela House of LaBeija. Foi a primeira ball (baile) criada por uma house e representou o surgimento dos "moldes da cultura ballroom". Segundo Victorya Devin, o evento consistia em categorias de “melhor montação, roupa, performance, maquiagem e lipsync”. Nos próximos anos, os DJs também se juntaram ao evento e os participantes passaram a acompanhar as batidas das músicas - e isso se uniu ao movimento das pessoas trans sendo liberadas das prisões.
Um momento de mudança para a cena aconteceu com Paris Dupree, drag queen. Durante uma ball, a artista começou a desfilar com a revista Vogue em mãos, imitando as poses das modelos e as encaixando nas batidas da música. A outra drag que estava na batalha a imitou - o que representou a primeira batalha de voguing.
Desde então, o movimento se transformou e foi influenciado por diversas outras manifestações artísticas, como o breaking, tutting e popping. Atualmente, divide-se a dança voguing em três estilos: Old Way, New Way e Vogue Femme.
O site House of Raabe explicou: “Old Way é a modalidade cujo foco são as linhas e simetrias, como nas páginas da revista; New Way, tem foco na flexibilidade e agilidade, inspirado em movimentos ginásticos; e o Vogue Femme, criado pelas Femme Queens da cena, traz a feminilidade, acrobacias, sensualidade e energia.
A cena ballroom também conta com as Houses (Casas). Segundo Silvia Miranda, “as Houses foram criadas pelas travestis quando tinham pessoas que moravam na rua, porque você imagina como era ser LGBT nos anos 1960, 1970. Também foi no tempo da onda de HIV, então muitas pessoas estavam em situação de vulnerabilidade. Assim, mães e pais da comunidade ballroom chamavam essas pessoas pra morar com elas, acolhiam essas pessoas. Isso é house, é uma casa de verdade, a sua família”.
Há diversas houses importantes no cenário mundial, como a Xtravaganza, LaBeija, Ninja e outras - e várias delas são apresentadas no icônico documentário Paris Is Burning (1990), considerado por muitos uma bíblia da cultura ballroom.
Ao considerar as origens e organizações da cultura ballroom, entende-se o movimento como uma manifestação política e de reinvindicações para com os corpos LGBTQ+ e negros - verdadeiros pioneiros e protagonistas da cena.
“A existência da comunidade ballroom como um todo já é um ato político e de resistência. Os bailes de antigamente só contemplavam drags cis e brancas - dificilmente as trans negras participavam. Na ballroom, precisam engolir que as pessoas cis que dançam são convidadas. A cultura foi criada por elas e Vogue Femme também é de pessoas trans. É uma libertação, liberdade de expressão, de qualquer forma do corpo, gênero e singularidade. Tudo é resistência e luta”, explicou Silvia Miranda.
Para além do estético, o movimento se faz muito importante para colocar em local de protagonismo pessoas historicamente marginalizadas. “A cultura, para além do voguing e do glamour da ball, também é um movimento de resistência de pessoas, como dos corpos trans. O Brasil é lider em matar pessoas trans - e a Ballroom também é sobre isso, sobre afirmação”, disse Raissa Santos, da House of Raabe.
Carol Frizeiro, também parte da House of Raabe, refletiu sobre a importância do movimento: “A Ballroom cria lugares que o Estado deveria nos dar. Uma travesti não pode andar na rua tranquila, mas dentro da ballroom, a gente cria um espaço para ela estar segura, sabendo que não vai ser morta, como muita vezes ela tem medo na rua. Do lado de fora da ball, no nosso dia a dia, a maioria das pessoas trans não tem a possibilidade de serem quem elas querem. O Estado deveria nos assegurar, mas ele não faz isso, então criamos esse espaço”.
O movimento possibilita o posicionamento de corpos contra padrões binários estabelecidos na estrutura da comunidade, como relatou Victorya Devin: “O vogue, a cultura ballroom e o ato de pose vem como um posicionamento de combater as políticas já existentes, tentando pensar novas políticas para novas perspectivas, novas corpas. É sobre entender a identidade social e tirar pessoas que estão a margem da sociedade para elas ocuparem o lugar visível”.
Segundo a dançarina, a cultura ballrrom possibilita às pessoas terem identidades e singularidades garantidas: “É um fazer político para assegurar realidade, uma existência do grupo, de um coletivo, de uma cultura".
Atualmente, o voguing aparece em produções audiovisuais na Netflix, como em Pose e Legendary. No entanto, essa visibilidade não significa que a cultura ballroom está sendo apresentada em sua totalidade.
Continuam as discussões sobre apropriação e sobre não apresentar aos espectadores a cultura de forma completa. Segundo Victorya Devin, em Pose, “é muito importante o ato de afirmar a comunidade as casas, mas há uma romantização do que era essa realidade”.
Silvia Miranda vê a série como importante, pois “todas as pessoas que fazem papel de pessoas trans são realmente trans, e isso muito difícil de acontecer”. No entanto, quando se trata de Legendary, as críticas são maiores: “são cinco jurados, mas só uma, a Leiomy Maldonado, é da ballroom”, disse.
Devin também falou sobre as problemáticas de Legendary: “Tentaram transmitir o peso das batalhas, mas o grande pecado foi colocar toda essa cultura em exposição ao júri, onde somente uma pessoa vive essa cultura”.
Apesar das problemáticas das críticas às produções sobre voguing, é preciso falar sobre a evolução da cena ballroom no Brasil.
Karoline Lima, Mother da House of Raabe, refletiu sobre o movimento no país: “Hoje em dia, a gente reflete mais por entender que não é uma cultura nossa. Precisamos ir atrás, pesquisar, saber o que estamos fazendo, quem são as pessoas da cena. Isso já é uma mudança tremenda. O Brasil é o lugar que mais mata trans e também tem a questão racial e histórica no nosso país - tudo isso modifica. Precisamos ter questionamentos”.
Segundo Silvia Miranda, o Brasil pensa as balls por meio de outras perspectivas: “Tem uma categoria usada lá fora que é ‘realness’ e mede a passabilidade das pessoas, a capacidade de ter a aparência de pessoas cis hétero. Isso é uó. E as pessoas que não são passáveis ou não conseguem? A comunidade ballroom brasileira é muito adiante da do restante do mundo. É sobre diversidade de gênero. Temos categoria para pessoas não-binárias, lá fora não tem tanto direcionamento para isso”.
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