Quatro motoristas fãs de Vin Diesel achincalham a crítica especializada e debatem filmes pop sem qualquer profundidade - e isso se tornou um ótimo negócio
Pedro Antunes Publicado em 28/07/2019, às 08h58
"Claramente são atores", escreveu alguém em um comentário em um dos primeiros vídeos publicados pelo programa Choque de Cultura, no YouTube da produtora/coletivo TV Quase. E isso, por si só, era genial.
Alguém assistiu ao programa no qual os atores Caíto Mainier (que dá vida a Rogerinho do Ingá), Leandro Ramos (o Julinho da Van), Raul Chequer (Maurílio dos Anjos) e Daniel Furlan (Renan da Penha) debatiam qual das duas potências dos quadrinhos, Marvel ou DC Comics, era mais poderosa nos cinemas, e "percebeu" que não se tratavam de motoristas de van de verdade, mas, sim, atores que interpretavam personagens na telinha de YouTube.
No louco ecossistema do YouTube, houve quem achasse que o Choque de Cultura era real. Que Rogerinho do Ingá de fato possui uma sprinter vermelha e azul e que faz o circuito de Charitas até a Gávea em 30 minutos, independentemente do trânsito. Ou que Renan, também motorista, realmente cuida do filho Renanzinho da forma nociva e atrapalhada como ele diz no programa.
Iniciado em novembro de 2016, no YouTube, o programa Choque de Cultura cresceu de forma viral, no boca a boca e no compartilhamento. Em 2018, em uma nova temporada já em parceria com o site Omelete, seus vídeos semanais passavam de 1 milhão de views. Dali, pasmem, eles foram parar na Globo.
A estreia no maior canal aberto do País, nas tardes de domingo, entre o filme da Temperatura Máxima e a exibição da tradicional partida de futebol, pegou todo mundo de surpresa - eles não fizeram divulgação alguma, o que talvez tenha pegado o telespectador-médio da TV Globo de surpresa com os jargões esdrúxulos e por vezes violentos. Deu certo.
Neste domingo, 28 de julho, às 15h45, o Choque de Cultura volta à Globo com pompa. O programa Choque de Cultura Show ainda terá o máximo de 8 minutos de duração, mas a divulgação tem sido massiva. Na semana antes, no dia 25, os quatro atores assumiram seus personagens e foram entrevistados por Pedro Bial no programa Conversa Com Bial por mais de 40 minutos.
"Fenômeno cultural", decretou Bial na abertura do programa. "Eles surgiram na internet com um formato que parece simples. Houve quem duvidasse que aquele humor sarcástico funcionasse fora da internet. Tudo indica que não é bem assim."
O Choque de Cultura Show ainda é tratado com mistério por parte dos integrantes. Pouco se sabe o que esperar da nova temporada da Globo - sempre acessível, Caíto não respondeu aos apelos da reportagem para comentar a nova atração.
O coletivo TV Quase também é responsável por outro quadro de sucesso, o Falha de Cobertura, com paródia dos debates futebolísticos na TV foi chamado pelo site GloboEsporte.com, também das Organizações Globo, para narrar partidas da seleção brasileira de futebol.
"Achou que a gente não ia falar de…?", diz Rogerinho do Ingá no começo de cada programa. "Achou errado, otário". É o meme é tão poderoso que Caíto Mainier é pedido para repetí-lo na frente das câmeras dos celulares para onde passa.
Esse talvez tenha sido o primeiro meme a viralizar do Choque de Cultura, mas, pela sobrevivência e vitalidade do programa, não foi o único. O fato de cada um dos quatro motoristas, autointitulados "maiores nomes do transporte alternativo do País", ter uma personalidade tão distinta e marcante ajuda.
Maurílio é o sabichão por trabalhar com transporte de atores no Rio de Janeiro, virou o "palestrinha", alcunha com a qual você pode ter cruzado por aí. Julinho da Van é o ex-marombado que fala sobre levantar peso e ainda mora na casa da mãe e detesta ver cenas feitas com efeitos especiais nos filmes blockbusters - o que seria uma incoerência no mundo real, mas faz a gente chorar de rir no YouTube. Renan acha que sabe tudo e quer ter a palavra final em qualquer discussão.
Na cultura da internet, ninguém se torna alguém se não for capaz conseguir produzir um conteúdo que seja compartilhável. É assim que o jogo é jogado na web, não tem jeito. Um vídeo publicado no YouTube só vai deixar a casa das centenas de visualizações se conseguir ser indicado de pessoa a pessoa, nas redes sociais, na vida real.
O caminho dos memes é o mais fácil para esse formato. Um amigo manda para o outro, conta da piada, logo estão todos reproduzindo os memes, compartilhando com mais gente. Parece simples - e é, só é preciso talento para criar esses "momentos compartilháveis". Choque de Cultura tem aos milhares.
Crítico é uma figura muito chata, essa é a verdade. Quem assina esse texto, veja só, escreve críticas de música, cinema e televisão e, portanto, pode "falar com propriedade" (para usar mais um jargão o Choque): somos insuportáveis nas nossas opiniões necessariamente contundentes, escritas e publicadas sem a possibilidade de diálogo ou debate. São as "verdades" expostas ali. Concorde o público ou não, é o que o crítico escreveu/disse que estará ali, publicado no lugar que for.
Acontece que um fenômeno tem enfraquecido o poder da crítica na construção de fama ou destruição de carreiras artísticas. Com as redes sociais, internet, blogs e tudo mais, todo mundo pode ser o crítico que quiser, falar/escrever sobre o que tiver vontade. Afinal, todo mundo pode (deve?) ter uma opinião sobre algo.
Choque de Cultura surfa na onda da "opinião generalizada sobre qualquer coisa" que muito se ouvia na vida real, nas conversas na fila da padaria, com o taxista, do motorista com o cobrador do ônibus - basicamente, em qualquer lugar -, mas não tinha espaço para ser oficializada em alguma mídia que fosse.
O programa de Mainier, Furlan e companhia dá voz à figuras que entendem patavinas de cinema para comentar cinema. Se aproveitam de um enfraquecimento da chamada crítica especializada criado pela chamada era da opinião para dar voz a personagens que falam o que pensam sobre os filmes.
De forma inteligente, Rogerinho, Julinho, Maurílio e Renan usam bem a linguagem popular, muito diferente da crítica e das suas avaliações cinematográficas/musicais/teatrais/o que for, que partem de um ponto de vista técnico e estudado e, por isso, usam de uma linguagem menos acessível.
É mais fácil entender o que a trupe do Choque disse sobre A Forma da Água, filme de Guillermo del Toro, do que muitos críticos escreveram por aí em jornais, revistas e sites. É melhor e mais aprofundado? Claro que não. Mas é acessível.
E, no fim das contas, a capacidade de se comunicar deveria ser um dos mandamentos básicos para qualquer comunicador - críticos inclusos.
Por fim, a construção desse novo império de mídia que é Choque de Cultura parte da ideia de que cada um dos personagens do quarteto é muito "gente como a gente".
Julinho fala como o pai de Leandro Ramos, o estilo "palestrinha" de Maurílio vem do irmão de Raul Chequer. A língua presa e o jeito de falar de Renan foi copiado de um vendedor de mate das praias no Rio de Janeiro.
Mas também poderiam ser qualquer um. Certa vez, no Uber, falava de cinema com o motorista quando ele disse que não gostava de filmes de heróis, porque "eles usam computador demais". O motorista preferia a franquia Velozes e Furiosos, acreditem. Ele parecia ter saído diretamente do Choque de Cultura para me levar do cinema para casa.
Percebem o acerto de Caíto Mainier e companhia? As opiniões de seus personagens são por vezes desastrosas, noutras, absurdas, muitas vezes equivocadas, mas elas tem um quê de real que crítico algum, do alto do seu palanque, é capaz de ter.
E, no fim das contas, trata-se de um programa de humor, não de crítica especializada. Isso que faz do Choque de Cultura tão genial: quatro motoristas de van que levam a sério a ideia de serem críticos de cinema sem ter ideia alguma de cinema - assista ao episódio sobre 2001: Uma Odisseia no Espaço, por exemplo.
Sim, claramente são atores, mas poderiam não ser.
* Pedro Antunes é editor-chefe da Rolling Stone Brasil e constantemente recebe críticas por falar como os personagens Julinho da Van e Renan, ambos do Choque de Cultura, nos vídeos de YouTube da RS Brasil.
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