Com Kendrick Lamar, o último trabalho de Bowie queria fugir daquilo que já tinha feito - o que levou a um hip-hop com saxofone
Andy Greene / Rolling Stone EUA Publicado em 24/01/2020, às 14h26
No dia 24 de março de 2016, Blackstar, último disco lançado por David Bowie, chegou ao topo das paradas musicais do Reino Unido e dos EUA. O artista havia morrido algumas semas antes, em 10 de janeiro, e deixou como despedida um disco diferente de tudo aquilo que havia gravado até então - em um processo constante de crescimento.
Em uma noite de domingo no começo de 2014, David Bowie entrou no 55 Bar, um clube de jazz de 96 anos escondido em uma rua tranquila no bairro de West Village, em Nova York. Uma amiga, Maria Schneider, que integra uma banda de jazz, tinha sugerido que ele fosse assistir à principal atração da noite, um quarteto comandado pelo saxofonista Donny McCaslin.
Bowie sentou em uma mesa perto do palco, viu o show e saiu sem falar com a banda. “Um garçom perguntou: ‘Espera, aquele era o David Bowie?’”, conta McCaslin. “A ficha das pessoas foi caindo.”
Algumas semanas depois, McCaslin recebeu um e-mail: Bowie queria que a banda se juntasse a ele no estúdio. Pensei: ‘David Bowie me escolheu e está me mandando um e-mail?’”, relembra McCaslin. “Tentei não pensar demais nisso. Só queria aproveitar o momento e fazer o trabalho.”
Esse trabalho, inicialmente, era apenas uma música: a viajante e jazzística “Sue (Or in a Season of Crime)”, que Bowie gravou com a banda de McCaslin e lançou na coletânea Nothing Has Changed (2014). Em janeiro de 2015, Bowie chamou o grupo para ir ao estúdio Magic Shop, no centro de Nova York, e começar a trabalhar em seu 25º álbum, Blackstar, lançado em 8 de janeiro, aniversário de 69 anos do artista - e dois dias antes de sua morte.
Em 2013, Bowie lançou o primeiro disco dele em quase uma década, o álbum de rock relativamente tradicional (para os padrões de Bowie) The Next Day. Em Blackstar, estava determinado a fazer algo muito diferente.
“Ouvimos muito Kendrick Lamar”, diz o produtor de longa data do músico, Tony Visconti. “Acabamos não fazendo nada parecido, mas amamos o fato de Kendrick ter sido tão aberto e não ter feito um disco estritamente de hip-hop. Ele jogou de tudo ali, e isso era exatamente o que queríamos fazer. De muitas, muitas formas, o objetivo era evitar o rock.”
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Esse mesmo espírito de aventura que pautou a sonoridade foi transposto para as letras. “'Tis a Pity She Was a Whore”, movida por uma batida de hip-hop e saxofone, tem o nome de uma peça do século 17 do dramaturgo inglês John Ford, e a letra de “Girl Loves Me” vem do Polari, uma forma de gíria usada por gays britânicos na Londres de meados do século 20.
“Ele também pegou algumas palavras de Laranja Mecânica”, diz Visconti. “As letras são malucas, mas muitos britânicos, especialmente os londrinos, entenderão cada palavra.” A faixa-título se refere repetidamente a uma “vela solitária”. “Ele me falou que era sobre o Estado Islâmico”, conta McCaslin. “É uma faixa inacreditável.”
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O fundador do LCD Soundsystem, James Murphy, toca percussão em duas faixas, embora inicialmente tenha sido considerado para uma participação mais significativa. “A certa altura, falávamos sobre três produtores para o disco: David, James e eu”, conta Visconti. “[Murphy] ficou ali por um tempo, mas tinha de cuidar dos próprios projetos.” Mark Guiliana, baterista da banda de McCaslin, acrescenta: “O papel dele nunca foi muito definido. Ele trouxe alguns sintetizadores e alguma percussão e teve milhares de ideias.”
Quando a banda terminou as faixas, em março de 2015, Bowie e Visconti regravaram a maioria dos vocais, dando a eles um efeito fantasmagórico. “Este é o jeito típico em que trabalhamos”, afirma Visconti. “Ele soa realmente bom quando fazemos este efeito chamado ADT, ou automatic double-tracking [“gravação dupla automática”]. Depois, brincamos um pouco com alguns ecos ondulantes e repetidos. Todos os efeitos são sob medida.”
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Para promover o single “Blackstar”, Bowie rodou um curta-metragem surreal no qual faz o papel de um profeta cego no espaço que encontra um grupo de espantalhos crucificados. “Acho que comecei a chorar quando ele me ligou”, conta o diretor, Johan Renck, responsável pelo trabalho.
No entanto, esse vídeo pode ser a última visão que os fãs terão de Bowie por enquanto. “Acredito que ele nunca mais fará shows”, afirma Visconti. “Se fizer, será uma surpresa completa.” Claramente, Bowie está determinado a deixar o álbum falar por ele. “Quando ele lançou discos como Heroes e Low (ambos de 1977), ninguém estava fazendo nada parecido”, diz Visconti. “E daí deu origem à cena New Romantic. David desconstroi gêneros musicais. Mal posso esperar para que comecem a sair álbuns imitando Blackstar.”
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Este texto foi publicado inicialmente na edicão da Rolling Stone de janeiro de 2016. Quando foi escrito, Andy Greene não sabia que as predições feitas no último parágrafo (de que aquela poderia ser a última visão de Bowie e que o astro nunca mais faria um show) seriam corretas, mas David Bowie morreu poucos dias depois dessa publicação.
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