- Rooney Mara, Molly Ringwald e Saoirse Ronan (Foto: Reprodução)

Como o estupro é romantizado na cultura pop - e não podemos mais aceitar isso

Nos cinemas e na televisão, a violência sexual foi normalizada, justificada ou estereotipada

Julia Harumi Morita Publicado em 30/07/2020, às 07h00

Há muito tempo, a cultura pop banaliza o estupro. A indústria cinematográfica e televisiva, ignorou por muitos anos a discussão sobre consentimento e reproduziu uma cultura abusiva em que o sexo deveria ser obtido a qualquer custo para satisfação pessoal ou aprovação social.

Nos filmes e nas séries, os estupradores ganharam uma imagem de vilão estereotipada e os jovens abusadores foram perdoados sob a justificativa de serem apenas garotos. Além disso, o trauma foi usado para fortalecer protagonistas e transformá-las em heroínas. 

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É preciso reconhecer que grandes clássicos do cinema, como De Volta Para o Futuro (1985) e Gatinhas & Gatões (1984), ajudaram a romantizar o abuso. Da mesma forma, é necessário questionar se o atual retrato da violência sexual realmente contribui para o avanço do debate na sociedade. 

Para entender como o estupro foi normalizado e justificado na cultura pop, a Rolling Stone Brasil analisou como o cinema e a televisão abordaram o tema ao longo dos anos. Confira:

O abuso nas telas e nos bastidores do cinema 

Após o fim da era de ouro de Hollywood, o diretor italiano Bernardo Bertolucci chocou os espectadores ao exibir uma cena de estupro explícita entre Maria Schneider e Marlon Brando em Último Tango em Paris (1972).

Em entrevista ao Daily Mail, a atriz afirmou que Brando decidiu alterar a cena original de sexo anal descrita no roteiro e avisou, pouco tempo antes das gravações, que usaria manteiga como lubrificante. Mais tarde, o diretor confessou que havia armado a cena com o ator para gravar uma humilhação verdadeira, segundo informações da Independent UK

O caso de Maria levanta uma questão essencial no debate do estupro na cultura pop: Para quem são filmadas as cenas de abuso? Claramente não são para mulheres que assistem desconfortáveis nem para as atrizes que se sentem violadas. 

A resposta não é difícil de adivinhar. Os homens sempre comandaram a indústria cinematográfica, dos estúdios aos roteiros. Consequentemente, as produções refletem os pensamentos, crenças e desejos deles. E, como sabemos, a vida imita a arte ou vice-versa. (Foto: Reprodução)

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Garotos serão garotos

Na década de 1970 e 1980, podemos ver muitas narrativas de adolescentes que desejam o sexo para terem aprovação social ou popularidade. O debate sobre consentimento passava longes das telas de cinema e os personagens acreditavam que poderiam usar qualquer estratégia para conseguir algum tipo de interação sexual.

Em Gatinhas e Gatões, Sam se sente incomodada com as aproximações do impopular Ted. Além disso, em certo momento, Caroline fica bêbada em uma festa ao ponto de ficar inconsciente. Quando todos vão embora, o namorado Jake afirma que poderia “violar ela de 10 jeitos diferentes, se quisesse”.

Contudo, ele não está mais interessado na garota e decide entregá-la para Ted. Após Jake dizer para os dois “se divertirem”, Ted tira fotos sem autorização e faz sexo com Caroline.

Em nenhum momento, os dois garotos refletem sobre estado de embriaguez da personagem ou a possibilidade de Caroline não querer estar naquela situação. A jovem é tratada como um objeto do namorado que pode ser entregue para quem ele bem entender.  

Segundo o Inside Hook, o assédio e o abuso eram justificados com uma simples frase, “garotos serão garotos”. Ou seja, a ideia de que o comportamento libidinoso incontrolável faz parte da natureza masculina.

Esta mentalidade se manteve ao longo dos anos nos filmes adolescentes. Em Superbad - É Hoje (2007), Seth diz explicitamente que precisar comprar bebidas alcoólicas para festa de Jules para poder embriagá-la e transar com a colega, mesmo que ela se arrependa no dia seguinte. (Foto: Reprodução)

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O herói

O abuso sexual já foi utilizado diversas vezes para criar narrativas heróicas, em que o homem se torna o “salvador da mocinha” ao impedir um ataque. Os roteiristas banalizam e transformam o estupro em uma estratégia narrativa para iniciar romances repentinos - ou seja, por fazer o mínimo e respeitar os direitos humanos de uma mulher, o personagem é compensado com um amor incondicional. 

Em De Volta Para o Futuro, a mãe de Marty McFly sofre uma tentativa de estupro apenas para o pai do protagonista salvá-la e se tornar o futuro marido dela. Já em V de Vingança, V resgata Evey das mãos dos fiscais Finger. (Foto: Reprodução)

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Heroínas 

Da mesma forma que o abuso foi romantizado para criar heróis, ele foi usado para demonstrar a força e a determinação de heroínas ou mulheres bem-sucedidas. A  “vingança por estupro” pode ser vista desde Kill Bill (2003) a Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011).

Como cita a revista Glamour, Claire Underwood, de House of Cards, se torna uma figura política poderosa após ter sido abusada durante a faculdade. Já em Game of Thrones Daenerys ganha cada vez mais poder depois de ser violentada por Khal Drogo

Se você não acredita na normalização do estupro na televisão e nos cinemas, talvez seja válido pensar em quantos protagonistas homens sofreram abuso sexual antes de se tornarem super-heróis ou assassinos imbatíveis. (Foto: Reprodução)

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O retrato do abusador solitário 

A imagem do abusador normalmente é associada ao estereótipo do homem solitário com problemas psicológicos que usa estratégias elaboradas para atrair vítimas e, muitas vezes, matá-las depois do abuso.

Em Um Olhar do Paraíso (2010), o personagem de Stanley Tucci constrói um abrigo subterrâneo para atrair a adolescente Susie , enquanto o professor universitário Clive Koch usa a autoridade e a influência para levar jovens até a casa dele em The End Of The Fucking World (2017).

As duas produções trabalham com o retrato do serial killer que ataca uma vítima estrategicamente escolhida. Contudo, na vida real, 39% dos casos são cometidos por conhecidos e 33% dos abusadores são parceiros, seja namorados ou maridos, segundo o RAINN - Rede Nacional de Estupro, Abuso e Incesto. (Foto: Reprodução)

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O lado do criminoso 

13 Reasons Why (2017) foi alvo de inúmeras polêmicas, entre elas o debate sobre como retratar um estupro. Ao longo dos episódios da série, o espectador vê de forma explícita o abuso sexual de Jess, Hannah e Tyler.

Apesar do alto grau de violência das cenas, a grande crítica do público gira em torno do destaque que Bryce ganha no seriado. A produção mostra a família do personagem preocupada com o impacto negativo do crime no futuro acadêmico e profissional do filho. E, em nenhum momento, Bryce confessa ou demonstra arrependimento pelos abusos. (Foto: David Moir / Netflix)

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Um retrato sensível e real 

A indústria cinematográfica e televisiva continua dominada por homens poucos interessados em uma discussão sobre consentimento e os clássicos continuam clássicos. Mas o estupro foi romantizado por muito tempo na cultura pop e não podemos mais aceitar isso.

Com a ascensão de movimentos feministas e manifestações virtuais, novas cineastas e roteiristas conseguiram ganhar destaque por obras que retratam de forma sensível e realista o abuso sexual.

Em 2018, Jennifer Kent chamou a atenção da mídia para o assunto após ter sido xingada de “put*” por um jornalista ao exibir a brutalidade do estupro no filme de época The Nightingale (2018), no Festival Internacional de Cinema de Veneza.

Já em 2020, a roteirista Michaela Coel arrancou elogios do público e dos críticos com a série I May Destroy You (2020), que retrata de forma inovadora o abuso sexual contra mulheres e homens na sociedade atual.

É por meio destas obras que conseguimos, de fato, representar as vítimas, levantar questionamentos sobre os conteúdos exibidos no cinema e na televisão e, enfim, normalizar o debate sobre a violência na cultura pop. (Foto: Reprodução)

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