Grandes nomes da música nacional - especialmente do hip hop - migraram para a plataforma Twitch e, agora, investem em conteúdos cada vez mais independentes
Lorena Reis Publicado em 25/08/2020, às 07h00
Quase cinco décadas atrás, em 11 de agosto de 1973, a cultura hip hop nascia no bairro do Bronx, em Nova York, fortemente influenciada pelo DJ jamaicano Kool Herc e as famosas “block parties” [festas do bairro, em português]. Unindo apenas o instrumental de músicas funk e soul da época, representadas por nomes como James Brown e James Clinton, Herc ajudou a difundir um dos gêneros mais expressivos da história da música - e, de certo, levou o público à loucura.
Já em meados da década de 1980, o movimento surgia no Brasil para dar voz a alguns grupos periféricos de São Paulo, que se reuniam na Galeria 24 de Maio e no Metrô São Bento para reproduzir as novas sonoridades oriundas do Bronx. E, por muito tempo, o rap falava exclusivamente com (e para) a periferia, divergindo do mainstream e das mídias tradicionais.
Hoje, é tudo bem diferente. Há quase um mês, em 27 de julho, o rapper Emicida estabeleceu um diálogo necessário sobre democracia, racismo estrutural e a importância de reverenciar o movimento negro no Brasil durante o programa Roda Viva, da TV Cultura. Assim, ele tornou-se um dos poucos artistas que já participaram do talk show em mais de 30 anos (entre eles, Elza Soares, Caetano Veloso e Gilberto Gil). No mundo do hip-hop, somente Mano Brown, integrante do Racionais MC’s, já esteve na bancada do Roda Viva, em 2007, contrariando todas as estatísticas ao falar sobre drogas, marginalidade e política.
De um tempo para cá (também como forma de driblar as barreiras criativas impostas pela quarentena), nomes da música nacional e, especialmente, do rap - como Criolo, Filipe Ret, Evandro Fióti, co-criador da Laboratório Fantasma, e Marcelo D2 (além de BaianaSystem, Jaloo, Kondzilla, Mel, Só Track Boa e Tropkillaz) - migraram para a Twitch, uma rede de streaming da Amazon que, embora seja focada na transmissão de games, tem investido em novas formas de criar conteúdo.
“A Twitch é uma empresa de live streaming, diferente de outras plataformas que não necessariamente têm esse como o business principal. A Twitch já nasceu de um conceito de interatividade, ou seja, a gente tem muitas ferramentas de engajamento e de comunidade”, explicou Wladimir Winter, diretor de parcerias e conteúdo da Twitch no Brasil, ao ser questionado sobre o diferencial da plataforma. “O que nós criamos foi quase um ecossistema que a gente chama de TV - essa é grande diferença. O que temos aqui é uma plataforma muito estabelecida em live streaming, na qual o criador consegue monetizar o próprio conteúdo de maneiras diferentes.”
Winter também explica a inclinação natural da Twitch para o rap: “Tem muita afinidade com o game. A gente já sabia disso antes de trabalhar essa vertical de música. O rap e o game conversam há algum tempo. Existe uma afinidade entre os dois mundos.”
Para entender melhor sobre esse movimento, conversamos com Criolo, Filipe Ret, Fióti e Marcelo D2 sobre as diversas narrativas do rap e como elas vêm sendo exploradas nas TVs por streaming. Confira abaixo:
“A gente inventou a CrioloTV, antes de tudo, como um lugar de construção de afeto, onde a gente aprende junto”, revelou Criolo à Rolling Stone Brasil.
Em seguida, o rapper de 44 anos explicou como é a dinâmica de atividades dele na Twitch: “A gente fica lá de terça, quarta e quinta, às 17h. De terça, a gente assiste um filme junto, que pode ser um longa, um curta ou um documentário. Quarta é dia de aprender junto, sempre tem alguém pra me ensinar alguma coisa. O DJ Dandan, por exemplo, tá me dando aula de discotecagem. Eu sempre pedi muito pra ele me ensinar e agora surgiu essa oportunidade. Ele me dá dicas sobre a parte técnica e como é essa vivência com os equipamentos, como entender a música. E também dá uma aula sobre os ritmos, sobre a história que existe em cada segmento musical. Me situa, em tempo e espaço, sobre essa evolução dos ritmos e dos estilos. Essa troca tem sido muito rica. De quinta, a gente promove alguns diálogos necessários. Já teve até uma ocupação do Festival MARSHA, que é feito 100% por pessoas t [trans] e traz essa temática, é bem educativo. (...) Devagarinho a gente vai construindo um espaço de aprendizado. Também espero, em algum momento, aprender a fazer beats. Eu tenho algumas coisinhas aqui em casa, eu faço, mas não sou um beatmaker, não sou um produtor, então eu espero o dia de aprender com amigos que sabem fazer beat. Que eles me ensinem um pouquinho aqui, ali, sobre como se usa tal equipamento, como recorta um sample, esses alicerces para fazer um beat, e por aí vai.”
Os artistas, em geral, acabam representando muitas pessoas e comunidades, especialmente em momentos tão difíceis. Qual, para você, é o peso de ser um artista no Brasil atual?
“Um país com tantas necessidades, tantas desigualdades, onde, a todo momento, desde que se é criança, você percebe que há uma desvalorização da arte, um ambiente criado para desvalorizar tudo aquilo que faz com que você se perceba, entenda sua importância no mundo. A arte é tida como algo supérfluo, algo sem valor. A sociedade diz que a arte é sem valor, só os números valem. Uma sociedade assim, eu reitero, com tamanha desigualdade social. A luta pela sobrevivência se faz presente desde as primeiras fases da vida, né? E as coisas que fazem com que você respire ou pense diferente e comece a enxergar que o mundo pode ser construído de outra forma passa a ser desvalorizada, humilhada, colocada de lado, como algo inferior, algo que não merece atenção. Então é realmente muito difícil, mas a arte respira, a arte resiste, a arte segue apontando caminhos, mostrando tudo aquilo que o ser humano tem de bom e o que o ser humano é capaz de construir de positivo. Cada pessoa tem um jeito de ser. Cada pessoa tem sua forma de se expressar. Vai da alma de cada um.”
"A gente recebeu esse convite da Twitch e achamos uma ferramenta interessante de aproximação com os fãs, ainda mais numa quarentena, já que a gente perdeu tanto contato”, lembrou Filipe Ret à Rolling Stone Brasil.
“Antes, a gente fazia uma média de dez shows por mês e, depois de todos eles, a gente recebia os fãs, trocava ideia, tirava foto. A gente perdeu isso, né? Então foi uma ideia que casou super bem e veio num momento super oportuno. Agora, eu to percebendo que é uma ferramenta que vai muito além disso, na verdade. É uma comunicação muito poderosa, principalmente nos dias de hoje. A gente tem que transmitir tanta coisa, tanta informação, e ali é um canal em que a gente pode trocar ideia mesmo e os fãs acompanham as novidades, entendeu? A gente tá sempre estimulando as pessoas a colaborarem com a nossa comunidade. Tipo, as pessoas querem colaborar com o streamer, porque assim ele vai continuar criando conteúdo e gerando novidade. Então é meio que uma ferramenta de autossustentação, que trabalha com muita interatividade. E tem uma dinâmica com game também, o pessoal fica assistindo e interagindo enquanto você joga, dando dica, opinião. É uma plataforma mais voltada pro gamer? Sim, mas pode ser bem mais que isso também, é só deixar a criatividade aflorar.”
Um dos projetos mais interessantes que o rapper de 35 anos tem de diferente em seu canal da Twitch é um momento no qual ele “escuta música nova, novos talentos e tal, peneira para os projetos que eu tenho em mente. Projetos para a TUDUBOM, que é o meu selo. Caso a gente encontre alguém prodígio, quem sabe a gente não investe um pouco mais, dá um clipe para esse artista. Eu tô nessa peneira aí, de ouvir artistas novos.”
E a Twitch estabelece um processo bem horizontal, né? O público interage bastante.
“Sim, com certeza. Tá aí uma palavra importante, essa horizontalidade é bem importante no mundo de hoje como um todo e tá todo mundo junto nessa, né? O [Marcelo] D2 já participou da minha live, o Emicida… E eu também acompanho eles, tô sempre assistindo a Laboratório Fantasma. A gente tá aqui para aprender a mexer na ferramenta, entender essa questão de live, de ao vivo. Estamos descobrindo coisas muito interessantes nesse processo todo.”
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Já Evandro Fióti, co-criador da Laboratório Fantasma ao lado do irmão, Emicida, explicou à Rolling Stone Brasil, via e-mail, que “a Twitch surgiu como alternativa, porque é uma plataforma muito completa e com um modelo de negócio atrativo para o nosso mercado musical”. Segundo ele, “é bom para quem assina e promissor para os produtores de conteúdo.”
“Como bom empreendedor, filho de Ogum, a estratégia me orienta. Os Orixás e os meus ancestrais me protegem e o instinto me guia [risos]. Mas o que posso dizer é que estamos inovando não só em abrir esse espaço na Twitch, mas na programação que estamos nos propondo a desenvolver. E o mercado do entretenimento já percebeu isso”, continuou o empresário, músico, produtor e diretor artístico.
O perfil da LabFantasma na Twitch fala sobre "um portal para um novo futuro, mais solidário, coletivo e que valorize a diversidade, a pluralidade e o afeto". Que tipo de conteúdo vocês têm produzido e publicado por lá para concretizar isso?
“Quando a gente fala de 'novo futuro', estamos falando sobre nos respeitarmos enquanto ser humano, compreender nossas diferenças e valorizar nossa pluralidade. Não tem como pensar num coletivo que não leve em conta a busca pela igualdade e equidade de raça de e gênero. Temos a intenção de criar conteúdo autêntico desenvolvido e protagonizado, sobretudo, por criadores negros de origem como as nossas, vindo das margens da sociedade, pois sabemos que não se trata de capacidade e, sim, de oportunidade. Nós somos a prova viva disso. A Lab Fantasma é a concretização do sonho de nossos antepassados que chegaram ao Brasil resistindo, mas acorrentados e escravizados. Se hoje temos a oportunidade de ocupar um espaço que seja um ponto de luz dentro do momento complexo que vivemos, queremos compartilhar essa luz com a juventude negra e periférica que vem do mesmo ambiente que nós viemos. Queremos resgatar a auto-estima do nosso povo, produzindo conteúdo autêntico, inovador, provocador e de alta qualidade, fazendo com que os brasileiros se conectem com sua afrodescendência, tenham orgulho e valorize o seu passado, projetando um futuro diferente da realidade que vivemos até aqui.”
Ao longo da história, o rap teve a tendência de fugir do mainstream, então era raro ver rappers sendo inseridos na grande mídia, em programas de TV. É claro que muita coisa mudou com o passar do tempo, mas você acredita que o rap tenha assumido a própria narrativa a partir de um formato mais independente?
“O rap sempre esteve no controle da própria narrativa, não por desejo, mas por vocação, sobretudo no Brasil, pela importância de denunciar as mazelas das desigualdades sociais que se faziam e ainda se fazem muito presente nas periferias brasileiras. O problema nunca foi o rap, o problema sempre foi a estrutura de poder e centralização do capital na mão de uma elite branca que nunca respeitou ou valorizou qualquer manifestação cultural vinda das periferias. E isso perdura até hoje”, lamenta Fióti. “Até hoje os espaços são hegemonicamente dominados por pessoas brancas, que excluem e ignoram a arte produzida por pessoas negras. O rap teve que buscar meio de existir e resistir às margens dos meios de comunicação, afinal, que espaço existia no mainstream que de fato fosse respeitar a mensagem contundente e verdadeira do Racionais MC’s, por exemplo? O Brasil era e é o que Racionais cantou e o que o Emicida canta.”
Citando o avanço da tecnologia e a globalização como grandes divisores de água, ele conclui que, “hoje, os grandes meios de comunicação e conglomerados de mídia - que ainda falam para a maioria da população brasileira - são uma opção, mas não a única. Ter o contato direto com o público através das possibilidades que a revolução tecnológica e digital trouxeram foi essencial para essa nova etapa. O rap brasileiro sempre foi independente, especialmente pelo discurso social a favor da emancipação das pessoas negras. Inclusive, é por isso que do rap vieram os primeiros e melhores cases de artistas independentes da década. Nunca dependemos dos grandes meios de comunicação ou das grandes gravadoras, e repito: não por desejo, mas porque até hoje, por mais que neguem, essas estruturas continuam sendo essencialmente e estruturalmente racistas.”
“A gente foi empurrado para um futuro que já estava para acontecer”, argumenta Marcelo D2 sobre a ascensão da lives. “Já tinha muita gente fazendo conteúdo online, mas a quarentena empurrou a gente para a Twitch. Eu tive esse convite do Zé Gonzales, do Tropkillaz, que tava indo para lá e me falou: ‘Cara, eu tô fazendo live na Twitch, a parada é foda e tal’. Ele foi meio que o meu padrinho, falou: ‘Cara, vamo lá. Tu vai deitar e rolar, vai ser maneiro.’ E eu fui. Me mostraram um projeto que eu achei bem interessante, me explicaram como funciona a plataforma, tinha um suporte legal deles e eu já comecei a pensar em algum manifesto de arte lá dentro, sabe? O que eu mais gosto de fazer é uma live aos sábados, se chama 'Almoço dos Cria.' Sou eu cozinhando com a minha companheira, Luiza [Machado], e a gente bota um som. Eu gosto muito, é divertido, mas eu queria muito fazer um trabalho de arte ali, e a vontade de fazer esse movimento artístico, sei lá, ficou martelando na minha cabeça.”
Depois de pouco mais de um mês explorando a Twitch, D2 e Luiza idealizaram o disco Assim Tocam os Meus Tambores, produzido inteiramente na plataforma de streaming durante o isolamento social. “Minha mulher, que é produtora, foi dormir com essa ideia de que eu ia fazer um manifesto, uma live de 10 a 12 horas num sábado, com DJs amigos meus, e a gente ia chamar esse manifesto de Assim Tocam os Meus Tambores”, conta D2 à Rolling Stone Brasil. “E ela acordou com o conceito do disco pronto. Eu falei: ‘Agora vambora’, e ela produziu e dirigiu tudo. Eu não sabia que daria tanto trabalho fazer um disco via live, mas ta sendo muito divertido, eu tô muito pilhado.”
Gravar um disco via live quer dizer acompanhar esse processo de criação e composição também?
“Isso, o processo todo. Desde a ideia das músicas, a escolha de repertório, compor, fazer a capa, conversar com o advogado sobre direitos autorais. Eu fiz tudo isso via live, sabe? O processo foi todo aberto e todo mundo pode acompanhar. É claro que, quando eu desligo a câmera, continuo pensando no disco, então não é certo falar que tô fazendo 100% do disco ao vivo, porque ainda não dá para as pessoas entrarem dentro da minha cabeça. Daqui a pouco vai dar [risos].”
E é legal porque o ouvinte nem sempre tem essa ideia de como as coisas funcionam nos bastidores, né?
“Sim, e mais que isso: a galera participa diretamente. Eu ouço muito o chat. A pessoa pode dar suporte ao projeto, sabe? As próprias pessoas estão bancando o projeto, ajudando na feitura disso tudo. Teve uma letra que eu fiz praticamente no chat. As pessoas jogavam ideias, eu ia rimando e a gente foi escrevendo junto. É lógico que é o meu disco e a palavra final é minha, mas eles escolheram todas as participações, por exemplo. E eu tô achando muito interessante o fato de ter uma central de TV, a minha própria TV dentro da minha casa e poder ‘streamar’ isso pro mundo todo. Eu acho que é uma puta de uma revolução, porque às vezes a gente depende da mídia ou de grandes suportes e tal, mas essa coisa de fidelizar o ouvinte, sabe? O cara que quer ouvir Marcelo D2 sabe que eu vou estar lá, no meu canal. Acho que a gente foi arremessado para um futuro e não tem mais volta não.”
E esse novo formato parece transmitir mais sinceridade ao público.
“Total. A ideia do cara dentro da sua casa… Não tem muito o que maquiar."
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