Conversamos com Paulo Rogério Nunes sobre a reprodução de estereótipos e a necessidade de mudança na imprensa
Camilla Millan Publicado em 18/06/2020, às 07h00
O adolescente João Pedro morreu há um mês, no dia 18 de maio de 2020. Vítima de uma ação das polícias civil e federal, o estudante negro foi baleado dentro de casa no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do RJ. Parentes acharam o corpo 17 horas depois, no IML(Instituto Médico-Legal) de Tribobó.
O caso é apenas mais um que representa a violência policial e o racismo sistêmico no Brasil. Apesar de declarações relacionadas à morte do adolescente, as mobilizações nacionais se intensificaram com a morte de George Floyd, homem negro assassinado por policiais brancos nos Estados Unidos.
Alguns questionamentos feitos nas redes sociais remetem ao porquê de brasileiros se mobilizaram fortemente apenas após o caso George Floyd - e um dos motivos pode ser a forma que produções audiovisuais a e própria imprensa brasileira acabam, muitas vezes, normatizando a violência e o racismo.
“Isso mostra muito sobre o nosso racismo. Mostra muito sobre a nossa falta de reflexão sobre o assunto e que às vezes as pessoas não entendem que o Brasil é racista… Discussão que já deveria ter sido superada”, explicou Paulo Rogério Nunes à Rolling Stone Brasil.
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Nunes é consultor de diversidade, autor do livro "Oportunidades Invisíveis" e, em 2018, foi escolhido como um dos afrodescendentes mais influentes do mundo pela organização Most Influential People of Africa Descent (MIPAD).
Segundo Nunes, como o racismo acaba não sendo entendido como algo grave, é necessário refletir sobre o que leva a sociedade brasileira a se posicionar desta forma. Assim, é preciso analisar os discursos produzidos diariamente no Brasil.
Toda produção, seja ela fictícia, jornalística, audiovisual ou não, produz um discurso. Segundo o campo de estudos de análise do discurso, produzir um discurso significa carregar e transmitir ideologias, mesmo que não seja de forma explícita.
Trabalhos audiovisuais como filmes, séries e documentários são importantes produtores de discursos - e em relação aos negros, qual tipo de ideologia é transmitida?
Uma recente pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia analisou 26 séries de dramas policiais para entender como é realizada a representação de negros, assim como o comportamento de policiais e agentes da lei nas produções.
O resultado indicou que “64% das representações de atitudes passíveis de punição foram cometidas por pessoas de cor (predominantemente negras) ou mulheres”, segundo matéria do Notícias da TV.
Além disso, a pesquisa analisou 453 atos passíveis de punição cometidos por agentes da lei. Na ficção, somente 13 deles foram investigados e só seis personagens foram acusados formalmente de crimes por ações errôneas. Não à toa, o projeto da universidade foi chamado de Injustiça Normalizada, cujo objetivo foi chamar atenção para como esse tipo de drama torna a injustiça racial aceitável.
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Tal sentimento de impunidade, assim como o estereótipo de “herói branco” e “negro bandido”, também é replicado no Brasil - podendo ser ainda mais evidente, segundo o consultor de diversidade Paulo Rogério Nunes.
“Provavelmente as produções brasileiras possuem estatísticas até piores porque se você olha, por exemplo, a plataforma de streaming, você verá um pouco mais de diversidade narrativa, não só diversidade representativa. Aqui no Brasil, procura ver um filme de representação negra. São raríssimos, e os que existem mantêm os estereótipos da violência, da pobreza... As pessoas negras não são mostradas em um ambiente familiar ou profissional. É uma série de estereótipos que até hoje estão presentes", explicou.
A representação do negro na produção brasileira é um reflexo do racismo sistêmico, segundo Nunes: “Se você parar para pensar nos filmes, inclusive os que têm a melhor representatividade negra, não serão filmes brasileiros e sim produções de Spike Lee, por exemplo. Por que? Pois a presença de cineastas negros no Brasil é muito pequena. O Brasil não dá oportunidade às novas vozes se colocarem no cinema. Tem gente preparada, qualificada, mas eles não têm oportunidade de contar novas narrativas - e sabemos da importância do cinema para a construção do imaginário”.
No Instagram, a filósofa escritora e professora negra Djamila Ribeiro propôs essa reflexão sobre a reprodução de estereótipos e normatização de violência por meio do filme Tropa de Elite, que acompanha o capitão da força especial da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Segundo a filósofa, as operações policiais informadas por meio de veículos noticiosos acabam normalizando a violência com “cenas do Caveirão do Bope, veículo conhecido do Tropa de Elite”. Ribeiro caracteriza a produção como “filme que ainda é exibido semanalmente, apesar de glorificar tortura, corporação e máquina de guerra genocidas”.
No filme, Capitão Nascimento é um homem branco interpretado pelo ator Wagner Moura. Ele comanda a força especial da polícia militar, cujas ações nas favelas do Rio de Janeiro são regadas à violência e tortura. Apesar disso, o filme dirigido por José Padilha foi elogiado e o protagonista considerado “herói nacional”.
Não só Tropa de Elite, como outras produções podem ser analisadas a partir desta replicação de estereótipos. Muitas séries possuem um número muito pequeno de protagonistas negros, como é o caso do drama médico Sob Pressão, da Rede Globo.
A série estreou em 2017 e possui muitos poucos astros negros no papel de médicos ou enfermeiros - e os que existem não são os protagonistas, presentes em todas as três temporadas.
Sexo e as Negas, série criada e dirigida por Miguel Falabella, também foi alvo de denúncias de racismo e reprodução de estereótipos. Apesar de protagonizada por quatro atrizes negras, a forma como elas foram representadas levou a um movimento de boicote à produção.
A série mostra as desavenças amorosas e sexuais das personagens e foi baseada em Sex and the City, que possui quatro protagonistas brancas de classe média alta moradoras de Nova York. No entanto, de acordo com as críticas, ao longo da série há a reprodução de estereótipos racistas e machistas sobre a mulher negra, além de mostrar, novamente, o negro como morador de subúrbios e favelas.
No Brasil, a representatividade negra estereotipada e a falta de produtores e roteiristas negros pode ser percebida nas novelas - produções amplamente consumidas por espectadores e talvez uma das mais responsáveis pela construção e disseminação de discursos.
Em 1969, a novela da Globo A Cabana do Pai Tomás foi a primeira com um protagonista negro, por exemplo. No entanto, para ser realizada, utilizou-se o blackface - prática racista na qual um ator branco se pinta para poder atuar como negro. No caso, o ator Sérgio Cardoso interpretou o escravo Tomás.
O blackface é amplamente criticado por ser ofensivo e não dar oportunidade a astros negros representarem papéis em produções.
Desde então, a representação do negro nas telenovelas e produções audiovisuais evoluiu, mas ainda não é possível falar sobre uma completa melhoria, como explicou Paulo Rogério Nunes: “A publicidade de alguma forma está um pouco mais representativa, mas o cinema realmente está bem atrás. Não temos uma série como Black-Ish, Scandal, filmes como Spike Lee, documentários sobre racismo da Netflix. Essas vozes não são mostradas no Brasil”.
Desta forma, repetem-se padrões pejorativos que insistem na falta de representação negra ou na falta de produtores negros no backstage de filmagens. Um exemplo é a novela Segundo Sol, exibida na Globo entre 14 de maio e 9 de novembro de 2018.
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Escrita por João Emanuel Carneiro, a novela Segundo Sol se passava na Bahia, estado no qual, segundo o IBGE, 80% da população é negra. No entanto, a produção não refletia esses números, e recebeu críticas pela baixa quantidade de atores negros no elenco.
Segundo o Estadão, antes do início da novela, o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) enviou uma notificação com teor recomendatório com 14 exigências a serem cumpridas pela Globo nos dias seguintes.
Uma das recomendações era "assegurar a participação de atores e atrizes negros e negras" e promover "a representação étnico-racial da sociedade brasileira, especialmente em cenários de população predominantemente negra”.
Uma das grandes produtoras de discurso no Brasil é a própria imprensa. Por meio veículos noticiosos, transmite-se informação e ideologias que podem contribuir para a normatização da violência e racismo. Um dos exemplos é a cobertura das ações policiais nas comunidades, nas quais muitas vezes se evidencia a atitude "boa" do oficial branco como de correção do tráfico nas periferias .
Na perspectiva do "bom uso da violência" para corrigir a "má violência" das comunidades, cenas de ações policiais acabam sendo apresentadas na mídia com a estética de filmes de ação no qual o policial, obviamente, salva o outro - normalmente afrodescendente.
“Estamos falando de um problema que é sistêmico, a violência e o próprio racismo. De modo geral, os meios de comunicação e imprensa fazem parte dessa engrenagem, muitas vezes por falta de diversidade nas redações”, relatou Paulo Rogério Nunes.
Segundo o consultor de diversidade, a cobertura jornalística é uma consequência deste sistema: “Muitas vezes se normaliza uma ação policial, aquele velho questionamento ‘será que não é suspeito? Será que não está fazendo alguma coisa errada?’ É aquela questão do benefício da dúvida, que muitas vezes não acontece”.
Para Nunes, é preciso uma mudança profunda: “Precisamos fazer um trabalho sistemático com os meios de comunicação e garantir que eles sejam mais diversos e consigam mudar esse olhar para entender que esses assuntos são complexos. Existe uma reflexão muito maior do que o factual do ‘fulano foi preso e tal’”.
Desta forma, a mudança na imprensa teria que vir da base, com os negros ocupando locais de produção de conteúdo nas redações, por exemplo. Segundo Nunes, não há um erro específico na cobertura jornalística, mas a mudança é necessária: “Acho que a imprensa não faz algo especificamente equivocado, mas ela reflete a falta de diversidade que tem no próprio meio, na própria imprensa”.
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Com a divulgação das mortes de João Pedro e George Floyd, assim como a cobertura de manifestações, os veículos já conseguem modificar um pouco a reprodução de padrões pejorativos, mas segundo Nunes “ainda é cedo para avaliar como a imprensa está lidando com isso porque estamos no meio do processo”.
Ao invés de responsabilidade de discurso, percebe-se que ainda ocorre a reprodução de estereótipos racistas e normalização da violência por meio de cobertura jornalística e produções audiovisuais.
Como indicou Paulo Rogério Nunes, o racismo sistêmico é refletido tanto nos estereótipos da representatividade negra quanto na falta de negros que façam parte da criação dessas histórias - e isso acontece também por uma lógica de mercado falha.
"Existe uma lógica de mercado equivocada. Os consumidores, as pessoas, querem se ver de maneira positiva. Ninguém quer se ver de maneira negativa. Se você for parar para pensar que 56% da população se auto reconhece pelo senso como afrodescendente e que grande parte dela não quer se ver representada de maneira ruim, quem está criando uma estratégia de mercado está criando de maneira equivocada”, disse o consultor de diversidade.
Segundo Nunes, a representação positiva é um caminho: “Vou dar o exemplo prático: Pantera Negra. Vi uma movimentação histórica. Nunca vi tanta gente querendo ir para o cinema para assistir esse filme. As pessoas pagavam para outros jovens de comunidade, acampavam na frente dos cinemas. Esse é o poder da representação positiva(...) O mundo todo celebrou heróis negros - uma coisa tão rara na nossa dramaturgia e que deveria ser normal”.
Para Rogério Nunes, o modo de mudar as narrativas e as perspectivas para com as comunidades e representatividade negra é escutando essas vozes: “Estamos falando de uma geração que entrou na universidade, já tem mestrado, doutorado e especialização. Tem muita gente na pobreza e exclusão, mas diversas pessoas já conseguiram superar essas barreiras. No entanto, elas são invisíveis para o mercado editorial, publicitário, imprensa e cinema”.
Segundo o consultor de diversidade, a desigualdade ocasiona a pouca inclusão das pessoas em locais de produção de conteúdo, e as consequências são visíveis.
“Não é à toa que a gente não tem o Prêmio Nobel. Talvez o Prêmio Nobel esteja na comunidade jogando bola, mas sem oportunidade para ser um atleta. Ou ele está com uma arma, neste momento, apontada na cabeça. Ele também pode estar fora da escola porque ela não está funcionando. O Steve Jobs está ali, a Oprah... Nesse momento tem alguém que só precisaria da oportunidade”.
Desta forma, a importância de escutar essas vozes se faz ainda mais presente: “Estamos em um momento em que está se discutindo muito a reconstrução econômica e das bases da sociedade, e vai exigir dar oportunidade às novas vozes. Tem que existir muito mais colunistas afrodescendentes, cineastas produzindo conteúdo para streaming e televisão, pessoas negras produzindo tecnologia”, concluiu Nunes.
Após a morte de João Pedro e a mobilização pelo assassinato de George Floyd, a imprensa também começou a refletir sobre o “fazer jornalismo”, como explica Nunes: “Pela primeira vez estou vendo muito mais especialistas negros e negras falando sobre esses assuntos na TV e na imprensa. Mais uma vez uma grande ironia, porque as pessoas já estavam aí há muito tempo, já estavam nas universidades”.
Para o futuro, Paulo Rogério Nunes espera que a reflexão permaneça: “Espero que fique um legado, uma reflexão na imprensa sobre esse assunto para ouvir essas outras vozes. Inclusive para outros assuntos, não para ouvir só sobre racismo. Que a gente possa ser ouvido também para falar sobre economia, tecnologia, todos os assuntos. Porque quando uma pessoa negra vai falar sobre algo, ela vai trazer no olhar dela uma nuance que muitas vezes a pessoa que não é negra não consegue ver”.
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