Além de ser uma pioneira, Butler é um dos maiores nomes da ficção científica, com uma prosa única em primeira pessoa
Vinicius Santos Publicado em 22/06/2020, às 07h00
Há exatos 73 anos, em Pasadena, Califórnia, nascia uma menina chamada Octavia Estelle Butler. Filha de um engraxate e uma empregada doméstica, a tímida Octavia, que ainda tinha dislexia, sabia de uma coisa: que queria contar histórias muito melhores do que aquelas que a cercavam.
Aos 12 anos, a vida era chata para Octavia e ela escrevia fantasia para escapar do mundo maçante que vivia. Após aturar o sofrível filme B de ficção científica Garota Diabólica de Marte (1954), ela resolveu competir com ele. "Eu consigo escrever uma história melhor que essa. Qualquer pessoa consegue."
Assim, por acidente e uma grande sorte para o gênero de sci-fi, a garota de Pasadena descobriu que podia escrever, ou melhor, revolucionar as histórias desse conjunto, que ainda passavam por um processo de valorização.
Anteriormente, quando falamos de afrofuturismo, citamos alguns nomes do movimento que ganham cada vez mais espaço na literatura, como a autora Tomi Adeyemi, com o recente Filhos de Sangue e Osso (2018) baseado na mitologia iorubá ou tricampeã consecutiva do Prêmio Hugo N.K. Jemisin.
Todas essas grandes autoras, sem exceção, consideram Octavia Butler uma pioneira e, de certa forma madrinha, do movimento. Mas, muito além da decisão de escrever uma história melhor, a Grande Dama da Ficção Científica, como viria a ser chamada, queria desde sempre se divertir e se enxergar ao especular sobre passado e futuro.
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No aniversário da autora, vamos visitar o legado imortal da autora e como ela transformou o gênero sci-fi com prosa em primeira pessoa e narrativas que mergulham profundamente nos dilemas sociais e no preconceito, sem deixar de fazer previsões quase proféticas.
A primeira coisa que Butler pediu após sair indignada do filme foi uma máquina de escrever. Não demorou para que o preconceito e o racismo viessem de encontro dela, mesmo dentro da própria casa.
“Queridinha, negros não podem ser escritores”, tentou explicar gentilmente uma tia. É claro, eram os anos 1950, vários territórios dos Estados Unidos ainda viviam sob leis de segregação racial e, mesmo vivendo na região 'racialmente integrada' de Pasadena, não havia espaço para enxergar uma mulher negra autora. Porém, Octavia foi capaz de imaginar isso.
"Talvez seja por isso que eu tenha ficado com a ficção científica tanto tempo", disse Butler em 2003 ao Museum of Pop Culture. "A liberdade que ela permite é tão grande. Não havia assunto que eu não pudesse discutir, não havia nada que eu não pudesse analisar."
A menina seguiu escrevendo por diversão até conseguir a máquina de escrever, então foi atingida por outro pensamento, ainda motivada por Garota Diabólica de Marte: "Nossa, alguém foi pago para escrever aquilo." Decidiu então que seria paga por escrever histórias melhores, seria escritora.
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A indignação dela com a realidade que se encontrava impulsionou anos de estudo e de sobrevivência da identidade dela da maneira que ela queria. Por isso, a principal temática de Butler era a ficção científica Soft, ou seja, o tema das histórias é a humanidade dos personagens, relacionamentos, sentimentos e especular a sociedade que eles viviam, principalmente a dinâmica do poder.
Imaginar um mundo onde mulheres negras e as narrativas, sentimentos e ideias delas são ouvidas foi uma várias conquistas de Butler, que sempre escreveu em primeira pessoa. As protagonistas também se encontravam em cenários hostis e preconceituosos, nos quais desafiavam as convenções para mudar ou compreender mundo.
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Desde o primeiro livro, Patternmaster (1976), que mostra uma sociedade controlada por tiranos telepatas, a autora, que já havia batalhado uma formação em um curso de roteiristas com uma bolsa de estudos, começava uma carreira de sucesso, com uma maestria ímpar em provocar emoções e reflexões.
"Conte histórias repletas de FATOS", era uma das lições que Octavia transmitiu, após passar a ministrar oficinas de escrita criativa. "Faça as pessoas tocarem, saborearem e SABEREM. Faça as pessoas SENTIREM, SENTIREM, SENTIREM!"
Aliás, sentir é tema principal na obra considerada peça principal no legado de Butler: A Parábola do Semeador (1993) centra-se na personagem de Lauren Oya Olamina, uma mulher que sofre de um distúrbio chamado de hiperempatia. Ela consegue sentir os prazeres e (muito mais frequentemente) as dores de outras pessoas.
Lauren sente a tristeza do mundo ao redor dela, um futuro próximo da California, arruinada pela ganância corporativa, destruição ambiental e desigualdade. Esse sentimento a motiva a liderar um grupo de refugiados numa jornada em busca de um lugar para prosperar. Lauren termina por fundar uma nova religião, A Semente da Terra, que acredita que Deus está na mudança.
"Deus está na mudança", conta Lauren em um trecho do livro, convicta na crença de que se adaptar para sobreviver é a essência da humanidade. "Tudo que você toca, muda. Tudo que muda, muda você. A única verdade que dura é a mudança." Além de uma verdade universal, o desejo de mudar e imaginar outras conjunturas fazem parte do espírito que permeia o afrofuturismo que ainda viria a ganhar força, muito pelo pioneirismo da autora.
O primeiro livro de Octavia E. Butler a ganhar uma tradução brasileira foi Kindred: Laços de Sangue (2017, Editora Morro Branco) e é também uma das obras mais aclamadas da autora. Apesar da diversidade étnica de Pasadena, o racismo chegava a jovem Butler principalmente quando acompanhava a mãe no trabalho.
Ver a dinâmica de patrões brancos com empregadas domésticas negras, anos de entrar e sair de casas mais endinheiradas pela porta dos fundos inspirou a escritora. Ela teve a vontade de “escrever um romance que fizesse os outros sentirem a história: a dor e o medo que os negros tiveram que superar para sobreviver”, como disse em diversas entrevistas.
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Por isso, em Kindred conhecemos a história de Dana, uma jovem autora que, após desmaiar, é misteriosamente transportada dos anos 1970 para uma fazenda escravista do sul, pouco tempo antes da explosão da Guerra de Secessão.
Entre idas e vidas para passado e presente, a protagonista percebe que a fazenda abriga os dois antepassados dela, a escrava Alice e o dono das terras Rufus. Dana entende que não deve apenas sobreviver em uma sociedade que a rejeita, como também garantir que seus bisavós, os filhos do estupro de Alice por Rufus, nasçam, para que ela mesma possa existir, no futuro.
“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”, é com essa frase brutalmente honesta que Kindred começa e, no mesmo tom franco, A Grande Dama encara de frente as horríveis verdades da escravidão e os sentimentos conflitantes que vivem até hoje com os afro-americanos.
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“Está vendo como as pessoas são escravizadas com facilidade?”, indaga a narradora-protagonista, ao perceber que se dobrou perante a crueldade escravagista. Em outro momento, Dana vê um grupo de crianças negras brincando de imitar um leilão de escravos. “Até as brincadeiras que elas fazem as preparam para o futuro… E esse futuro virá, se elas entenderem ou não.”
Foi nesse sentimento duradouro de pensar os desdobramentos da história e conquistar a liberdade intelectual e criativa que Octavia E. Butler escreveu 14 romances, classificados pelo New York Times como "evocativos, de grande alcance aos problemas de sexo, etnia e poder."
Apesar de morrer aos 58 anos, a obra da autora tem uma impressionante produção e um legado inestimável para a literatura. "Eu escrevia por estar tão entediada com o mundo que vivia e então queria ir para mundos melhores, onde coisas animadoras acontecessem". A Grande Dama da Ficção Científica nunca respondeu se de fato chegou a outros mundos, mas, felizmente, a nossa realidade é um pouco melhor animadora por causa dela.
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