Apesar de haver decretos que pretendem assegurar os direitos das pessoas LGBTQ+, o Brasil enfrenta um Legislativo conservador e recorrentes tentativas de retrocessos
Camilla Millan Publicado em 30/06/2021, às 10h00
A trajetória do movimento LGBTQIA+ no Brasil não é recente, mas as conquistas aconteceram há pouco tempo. Em 2013, por exemplo, o casamento homoafetivo foi finalmente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo o G1, o Brasil foi o 12º país a autorizar pessoas do mesmo sexo a se casarem no civil - mas a cada decreto progressivo, contudo, há diversas tentativas de regressão.
O preconceito e violência, enraizados na sociedade brasileira, são responsáveis por números alarmantes: o Brasil é o país que mais mata transsexuais no mundo, conforme dados do Trans Murder Monitoring ("Observatório de Assassinatos Trans", em português). A nação não é um lugar seguro para os LGBTQIA+, muito pelo contrário.
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A cada decreto e ação de representatividade, também há um movimento contrário e conversador que pretende regredir direitos básicos, como acesso à cultura e educação. Desde agosto de 2020, uma proposta circulava na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para proibir veiculação de propagandas com pessoas LGBTQIA+, e é apenas uma ação que representa a tentativa de retrocesso. Apenas em abril de 2021, após ser aprovada por comissões, foi vetada em votação.
O texto da deputada Marta Costa (PSB), autora do projeto de lei, expõe o desejo de acabar com propagandas que geram "desconforto emocional a inúmeras famílias, além de estabelecer prática não adequada a crianças".
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Esse “desconforto” injustificável faz parte da estrutura preconceituosa da sociedade brasileira, e reafirma que o Brasil tem uma trajetória tortuosa em relação aos direitos LGBTQIA+.
A primeira conquista do movimento foi um avanço para a época, apesar de atualmente parecer absurdo. Em 1985, após mais de 100 anos, o Brasil retirou o que era chamado de “homossexualismo” da lista de doenças após o Grupo Gay da Bahia iniciar uma campanha nacional. Confira algumas importantes conquistas do movimento LGBTQ+ no país:
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Ainda na década de 1980, o termo “opção sexual” era utilizado para falar da comunidade LGBTQIA+. Segundo o Nexo, na época, alguns grupos defendiam a inclusão do termo “orientação sexual” na Constituinte de 1987 para o artigo que veta discriminação por “origem, raça, sexo, cor e idade” e o que proíbe diferenças salariais motivadas por “sexo, idade, cor ou estado civil”.
Apesar de não ter sido incluída na Constituição na década de 1980, o movimento levou a mudanças em constituições estaduais. Décadas depois, em 2019, a homofobia seria criminalizada após o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero fosse considerada crime.
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Foi apenas em 2011 que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união civil estável homoafetiva. Dois anos depois, o casamento civil foi permitido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Sabemos, contudo, que o escrito em papel, em sua maioria, não é respeitado. Mesmo permitido, ainda há diversas pessoas contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. No dia 13 de junho de 2012, por exemplo, o padre Paulo Antônio Müller xingou o repórter da Globo Pedro Figueiredo devido a um vídeo no qual o marido o deseja um feliz Dia dos Namorados. Durante pastoral, o padre criticou a união homoafetiva, que estaria em “desacordo” aos dogmas religiosos.
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Conforme publicado pelo Nexo, em 2002, o processo de redesignação sexual do fenótipo masculino para o feminino foi autorizado pelo Conselho Federal de Medicina, e oferecido no SUS (Sistema Único de Saúde) desde 2008. Apenas em 2010, o processo do fenótipo feminino para o masculino também foi aprovado.
Apesar de autorizados e oferecidos pela rede pública, ambos os processos têm enormes filas de espera que chegam a superar os 20 anos.
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Outra vitória legislativa na luta da comunidade LGBTQIA+ está no nome social, usado principalmente por transgêneros, e travestis cujo nome de registro não reflete sua identidade de gênero. Em 2018, o STF autorizou a mudança de nome e sexo em cartório.
Desde 2019, homofobia e a transfobia no Brasil constituem crime hediondo e inafiançável, com sentenças que variam de 3 a 5 anos de prisão e multa. Em junho daquele ano, o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor da criminalização, equiparando-as juridicamente ao racismo até o Congresso aprovar uma lei específica para a comunidade LGTBQIA+.
Também em 2019, antes da criminalização, a transexualidade deixou de ser classificada como doença pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Pode soar como um avanço brasileiro em relação aos direitos da comunidade, mas não é bem assim. A Rolling Stone Brasil conversou com Renan Quinalha, advogado, professor de direito da Unifesp, ativista gay e um dos organizadores do livro História do Movimento LGBT no Brasil.
Conforme explicou o pesquisador, não há leis no Brasil de proteção específica à comunidade LGBTQ+: "O que nós temos são decisões judiciais paradigmáticas, tomadas pela Suprema Corte, o STF. Então a decisão da união homoafetiva em 2011, a decisão do direito a adoção em 2015, o direito à identidade de gênero de 2018, em 2019 decisão da criminalização da LGBTfobia, em 2020 a decisão da autorização à doação de sangue por LGBTs. Todas são decisões importantíssimas, mas a violência ainda segue grande."
De fato, a liberdade de ir e vir, talvez uma das reivindicações mais importantes, não é cumprida, uma vez que o Brasil é um dos países mais perigosos para ser LGBTQ+. Homossexuais, transgêneros, travestis e outros integrantes do movimento têm medo de circular na rua - e o motivo é a criminalidade que atinge, especificamente, à comunidade.
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Segundo Quinalha, tais direitos reconhecidos pelo STF não refletem a realidade do movimento no Brasil: "Essas decisões não foram traduzidas em realidade, estão muito distantes das necessidades da comunidade. Falta ainda garantir acesso à justiça plena pra população LGBT, pra que essas decisões se tornem mais concretas."
Tal violência citada pelo pesquisador faz com que a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil seja de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Segundo Renan Quinalha, as pessoas trans sofrem o maior nível de discriminação e preconceito na comunidade:
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"Penso que tem várias razões para essa violência e passa por uma razão também de classe, de desigualdade social no Brasil. Em geral, são pessoas que estão na prostituição, empregos precários, não conseguem ter estudos, são expulsas de casa pela família, tem um ciclo de violência mais presente. Sem dúvida nenhuma, é uma fronteira onde temos que avançar muito," afirmou.
Para o pesquisador, além de assegurar que pessoas trans exerçam os direitos garantidos nas decisões de STF, é preciso pensar em outros reivindicações básicas: "Terem acesso a emprego, a renda e educação, que são direitos que são sonegados, hoje, dessa população."
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Apesar dos direitos adquiridos ao longo dos anos, não são poucos os projetos de lei e ações que funcionam como retrocesso. O Projeto de Lei 504/2020, proposto pela deputada Marta Costa (PSD) foi apresentado em agosto de 2020 para proibir a veiculação de peças publicitárias com menção à diversidade sexual. Após ser aprovado em 14 de abril de 2021 por três comissões, a Assembleia de SP derrubou o projeto dias depois.
Em 2019, o então prefeito do Rio Marcelo Crivella determinou que o livro Vingadores, A cruzada das crianças fosse recolhido da Bienal do Livro. A obra narra a história do casal Wiccano e Hulkling - e em uma das páginas, os dois se beijam. Após o ato de censura, o STF barrou a apreensão.
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Também em 2019, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo considerou inconstitucional uma lei municipal de Sorocaba. O documento proibía pessoas trans de usarem banheiros e vestiários em escolas públicas e particulares conforme a identidade de gênero.
A comunidade LGBTQIA+ luta para não ter seus poucos (e recentes) direitos tomados.
Em números absolutos, o Brasil é líder mundial no ranking de assassinatos de transexuais e travestis, por exemplo. A violência contra a comunidade é muito grande - e a justiça ainda não aplica plenamente o decreto de criminalização da LGBTQIA+fobia.
Um exemplo é uma pesquisa publicada em junho de 2021 pelo G1. Nela, aponta-se que, de 391 denúncias de violência contra LGBTs no DF, apenas 39 foram investigadas como homo e transfobia em 2020. A dificuldade de aplicação dos direitos também é um reflexo do Poder Legislativo, que nunca legislou para as pessoas da comunidade.
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Ao serem votadas medidas favoráveis ao movimento LGBTQIA+, a omissão de congressistas é grande - isso quando há alguma votação. O Congresso brasileiro, que deveria aprovar as leis, é conversador. Até 2019, o órgão não havia votado nenhuma lei sobre a homofobia, por exemplo. Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal, do poder Judiciário, assume a frente na proteção dos direitos da comunidade, conforme explicado anteriormente.
Segundo o pesquisador e ativista Renan Quinalha, o Legislativo é um ambiente "muito hostil" para o movimento: "Não temos aprovada nenhuma legislação específica, protetiva, para as pessoas LGBTs, o que é muito grave."
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O pesquisador concluiu: "Há o domínio de uma bancada fundamentalista religiosa, que vem crescendo desde 1988, sobretudo, e que tem o poder de veto muito significativo, impedindo que projetos em favor dos direitos sexuais e reprodutivos dos grupos minoritários possam ter sucesso no legislativo brasileiro."
A comunidade LGBTQ+ não luta apenas pelo direito de amar, mas pela existência, representatividade, acesso à educação, cultura e aos mesmos locais que toda a população. Apesar da trajetória tortuosa, as diversas reivindicações continuam - e são essenciais para asseguramos os plenos (e necessários) direitos desse grupo.
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