Daft Punk - Peter Yang

Conheça os segredos do Daft Punk (um deles: o pai de Thomas Bangalter mora no Brasil)

Como o duo francês se tornou o senhor indiscutível das raves e por que agora, com a música eletrônica maior do que nunca, decidiu deixar o estilo para trás

Jonah Weiner/ Tradução: Ligia Fonseca Publicado em 21/05/2013, às 16h22 - Atualizado em 22/05/2013, às 16h01

O estúdio do Daft Punk em Paris fica em uma via pública feia e movimentada na zona sul da cidade, perto de uma estação de trem e de um hospital, atrás de um portão de garagem verde. Para entrar, você aperta a campainha e mostra o rosto para uma câmera de segurança; então, o portão abre para cima, revelando um belo pátio de paralelepípedos e um conjunto de edifícios beges cobertos por heras. No começo de uma tarde de primavera, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter – parisienses amigos de longa data e os músicos compulsivamente reservados por trás das máscaras de robô do Daft Punk – estão no pátio, piscando à luz do sol como se tivessem saído de uma caverna profunda. O que, praticamente, foi o que aconteceu. “É o primeiro dia bonito que temos em semanas”, diz Homem-Christo. Apontando para uma sala sem janelas onde ele e Bangalter passaram inúmeras horas debruçados sobre sintetizadores, buscando novos sons, dá de ombros de um jeito francês resignado: "Sempre estamos no escuro mesmo”.

Bangalter tira uma chave do bolso e abre a sala – foi aqui, em 2008, depois de uma turnê mundial, que o Daft Punk se recolheu para começar a fazer demos para seu quarto álbum, Random Access Memories. Na estrada, a dupla transformava anfiteatros, campos de beisebol e estádios lotados em raves eufóricas, comandando um arsenal de supercomputadores sob medida de dentro de uma pirâmide de alumínio de mais de 7 m de altura coberta por telas e centralizada dentro de uma colmeia com canhões de LED. O Daft Punk começou a fazer sucesso durante a explosão da música eletrônica nos anos 90, mas a turnê – um espetáculo alucinatório de teatralidade pop sem precedentes – tornou a dupla imensamente mais popular do que antes, transformando-a de sobreviventes de uma moda passageira em pioneiros involuntários de uma loucura por música dance que engoliu todo o mundo pop. Outro artista em posição semelhante poderia ter entrado em piloto automático – fazendo shows em lugares cada vez maiores e despejando as mesmas batidas pulsantes –, mas o Daft Punk saiu da estrada depois de 48 shows e, quando começou o novo material, foi com um desejo inquieto de se reinventar. “A música eletrônica agora está em sua zona de conforto e não se move um milímetro”, diz Bangalter. “Não é isso o que artistas devem fazer.”

Alto e magro, Bangalter, de 38 anos, usa um suéter cinza e jeans justos com um buraco enorme no joelho. Tem um rosto alongado e barbudo e cabelo cacheado que está virando quase afro (o pai dele, um artista e produtor da era disco nos anos 70 que gravou como Daniel Vangarde, é judeu, mas a família não é praticante).

Quando ele se sente relaxado, seus olhos piscam e sua linguagem corporal fica cada vez mais acolhedora – ele se aproxima, toca em você para enfatizar um ponto. Outras vezes, no entanto, enquanto outra pessoa está falando, torce o nariz em um desdém aparente, como se tivesse notado um cheiro ruim. O diretor Michel Gondry, que conhece o Daft Punk desde que a dupla o contratou para fazer o clipe de sucesso estrondoso “Around the World”, de 1997, diz que Bangalter tem uma capacidade crítica áspera que pode ser desconcertante. “Estávamos em um café em Paris uma vez e ele me contou que odiou meu primeiro filme”, Gondry relembra rindo. “Disse que faltava vida, que era forçado! Bem ríspido, não? Algumas pessoas simplesmente falam o que pensam.”

Homem-Christo, de 39 anos, tem um rosto largo, traços delicados, bochechas com barba rala e cabelo castanho comprido. Na adolescência, a cabeleira era oleosa e lisa e, frequentemente, ele era visto usando um casaco de pele e levando seus pertences em uma sacola de plástico. O guitarrista do Phoenix, Laurent Brancowitz, que conheceu a dupla em 1992, diz que Homem-Christo parecia “uma menina” e “um viciado em crack”, mas hoje a aparência dele é mais higienicamente desleixada: jaqueta de couro marrom, botas surradas de motociclista, um pingente prateado sobre um moletom preto aveludado. Não gosta muito de contato visual e é calado, enquanto Bangalter é extrovertido. “Guy-Man não fala muito”, conta Daniel Dauxerre, que trabalhava na New Rose, uma loja de discos em Paris onde a dupla procurava vinis de Augustus Pablo e Beach Boys na adolescência. “Quando fala, tem um senso de humor bem seco – pode estar zombando da sua cara sem que você perceba.”

Os membros do Daft Punk são dois dos superastros mais enigmáticos do pop. Além de esconder o rosto quando se apresentam, nos clipes e em fotos, trabalham na maior parte do tempo em segredo e mantêm controle firme sobre detalhes biográficos nos raros casos em que dão entrevistas. Então, é com olhos arregalados que um forasteiro entra no espaço de trabalho deles, onde até objetos comuns pulsam com significado aparentemente sagrado. Na sala de sintetizadores, há uma cópia surrada em vinil de Blondes Have More Fun, de Rod Stewart, em um canto e um pequeno aparelho de som portátil JVC para ouvir mixagens brutas perto dele, com uma pirâmide preta de plástico em cima. Cópias em Blu-Ray de Tron: O Legado (para o qual o Daft Punk compôs a trilha sonora) e Star Wars: A Saga Completa ocupam uma prateleira perto de um livro de design de Saul Bass, um Walker’s Rhyming Dictionary e um volume antigo da enciclopédia Life Science Library chamado The Mind. Grudada na parede, há uma foto dos robôs do Daft Punk junto com R2-D2 e C3PO em uma propaganda da adidas. “Este foi o momento em que senti que realmente tínhamos entrado na cultura pop”, afirma Bangalter.

Ele vai até a peça principal da sala: um imenso sintetizador modular com aproximadamente 1,2 m de altura por 1,8 m de largura. “É um sistema sob medida, novo e feito à mão para nós por um cara no Canadá”, conta. Parafusados a quatro cases de madeira do tamanho de uma máquina lava-louças, há dezenas de osciladores, geradores de ruído e envelopes; acima, filtros Borg, filtros Boogie, sequenciadores de passos e um osciloscópio antigo. Luzes que piscam, controles prateados e 933 botões diferentes brotam da fachada dentro de um emaranhado de cabos vermelhos, cinzas e amarelos. “Com um sintetizador como este, há muitos elementos afetando o som, da temperatura ambiente aos capacitores – milhares de pequenos parâmetros caóticos”, diz Bangalter, com orgulho. “É o oposto do ambiente estéril de um computador.” Ouviu falar que o produtor canadense deadmau5 ficou sabendo da configuração, contatou o fabricante e “encomendou exatamente a mesma”.

Na última década, a influência do Daft Punk ficou colossal – é difícil citar outro artista que tenha atingido tantas bandas, sons e tendências. Dá para ouvir a dupla no punk dance cheio de referências do LCD Soundsystem, que escancarou sua admiração em “Daft Punk Is Playing at My House”; no pop estridente e cheio de Auto-Tune de T-Pain e seus imitadores (o Daft Punk descobriu o efeito antes que todo mundo – exceto pela Cher – achasse legal); nos loops nebulosos de bandas de chillwave como Toro y Moi e Washed Out; no easy-listening reabilitado de Phoenix e Chromeo; na nova fusão audaciosa entre hip-hop e música eletrônica que Kanye West realizou quando transformou a voz distorcida por vocoder de Homem-Christo em um gancho de sucesso em “Stronger”. Em 2011, nos bastidores do Madison Square Garden depois de um show da turnê Watch the Throne, Jay-Z disse a Homem-Christo que a pirâmide do Daft Punk tinha sido “uma influência enorme”. Até Disco Stu usou o capacete cromado do robô de Bangalter em um episódio de Os Simpsons.

Só que quando Bangalter menciona a esterilidade do computador com uma careta, tem em mente os descendentes musicais mais diretos da dupla: os heróis da invasão dance das paradas, todos malucos pelo Daft Punk. David Guetta toca suas faixas em Ibiza e chama a estreia da dupla, Homework (1997), de “uma revolução”. Avicii descreveu sua entrada na música eletrônica como “ouvindo muito Daft Punk, bem antes de saber o que era house music”. deadmaus5 deve seus capacetes a eles. Skrillex comentou que ver a pirâmide do Daft Punk “mudou” a vida dele. Os membros do Swedish House Mafia proclamam que “o Daft Punk são nossos heróis de todas as formas possíveis”.


Apesar de todo esse amor, Bangalter e Homem-Christo são profundamente ambivalentes sobre esses herdeiros, com suas construções espancadoras e baixos pesados e cronometrados. “A música eletrônica hoje é como uma bebida energética em áudio”, afirma Bangalter. “Os artistas estão supercompensando com esta música agressiva, enérgica, hiperestimulante – é como alguém te sacudindo. Só que ela não consegue tocar as pessoas no nível emocional. É um jeito de se sentir vivo, mas...”

“Não é profundo, é superficial”, completa Homem-Christo.

“Talvez seja a diferença entre amor e sexo, ou erotismo e pornografia”, diz Bangalter.

Enquanto o Daft Punk se aprofundava na gravação do novo álbum, a dupla estava sedenta por se livrar de velhos hábitos e operar “do zero”, segundo Bangalter. A antiga técnica de samplear vinis de funk, disco e rock suave de repente lhes pareceu superfamiliar, fácil demais. As baterias que usavam para impulsionar as faixas soavam rotineiras – “piloto automático”, compara Bangalter. Os dois criaram um novo plano de ataque que levaria o Daft Punk mais longe da música eletrônica do que a dupla jamais havia ido: “Queríamos fazer o que fazíamos com máquinas e sampleadores”, diz Bangalter, “mas com pessoas”.

A ideia era mudar o som, mas mantendo o DNA intacto, e superar seus sucessores no processo. “Na música eletrônica hoje, há uma crise de identidade”, afirma Bangalter. “Você escuta uma faixa: de quem é? Não há nada característico. Todos que fazem música eletrônica têm os mesmos kits de ferramentas e modelos. Você ouve e sente que aquilo pode ser feito em um iPad.” Franze a sobrancelha. “Se todo mundo conhece todos os truques, deixa de ser mágico.”

Bangalter me mostra um pequeno truque de mágica. Mexe em um oscilador no sintetizador imenso e um zumbido agudo soa. Ajoelha, conecta um cabo de saída em uma entrada, gira um botão um milímetro. Distorção. Ele mexe um pouco mais e o zumbido se transforma em um soluço hipnótico, depois em uma potente batida de house music. Ele sorri como uma criança com um kit de química. O sintetizador está “um pouco em todo lugar” no novo álbum, controlado manualmente toda vez, diz Bangalter. “Com isso, você nunca mais consegue o que conseguiu – não há ‘salvar como’. É um playground para construir um som desde o começo.”

Homem-Christo vê a hora no celular. O plano é sair para tomar algo e jantar do outro lado da cidade, mas ainda temos tempo.

“O que você quer fazer?” Bangalter pergunta a Homem-Christo. “Un café? Un thé? Chocolat?”

“Boate de strip tease”, dispara Homem-Christo.

Ninguém atinge o mesmo equilíbrio entre seriedade e patetice como o Daft Punk. Por um lado, a dupla fala muito sobre evolução artística e da música ser “um convite a uma viagem sônica"; por outro, usa capacetes bregas saídos diretamente das capas dos livros de Isaac Asimov nos anos 80. Bangalter descreve a aparência dos robôs como um estratagema filosófico altamente conceitual – “estamos interessados na linha entre ficção e realidade, criando essas pessoas fictícias que existem na vida real” – e uma maneira de embalar a música do Daft Punk dentro de uma tradição de teatralidade pop exuberante que inclui “Kraftwerk e Ziggy Stardust e Kiss; as pessoas achavam que os capacetes eram marketing ou algo assim, mas, para nós, era glamour de ficção científica”.

Os robôs também permitem que Bangalter e Homem-Christo, nerds da tecnologia com visual comum, exerçam uma atração gravitacional sobre as plateias que seus rostos descobertos – bonitos de um jeito áspero, mas nada notável – nunca poderiam igualar. “Não somos performers, não somos modelos; não seria agradável para a humanidade ver nossos traços”, Homem-Christo diz, seco, “mas os robôs são empolgantes para as pessoas.”

Nos anos 90, a dupla enfiava a cabeça em sacos pretos durante aparições promocionais e comprava máscaras de Halloween assustadoras para usar em sessões de fotos. Os capacetes de robô, desenhados por amigos artistas franceses, originalmente tinham perucas marrons ridículas – cacheada para Bangalter, esvoaçante para Homem-Christo.


Só que, a caminho da sessão de fotos para uma revista na qual mostraram os capacetes pela primeira vez, em 2001, o Daft Punk arrancou as perucas, decidindo que os robôs ficariam melhor carecas. “Mais elegantes”, conta Bangalter. Hoje, os dois têm várias versões diferentes dos capacetes – algumas com ar-condicionado e sistemas de comunicação embutidos, para shows ao vivo; outras, feitas de material que fotografa melhor, para sessões de fotos e projetos como Electroma, o viajante filme sem diálogos que o Daft Punk dirigiu em 2006. Seus modelos mais recentes foram feitos por uma empresa de fabricação de figurinos de Hollywood “que trabalhou no último Homem-Aranha”, conta Bangalter, acrescentando que ela assinou um acordo de confidencialidade com relação às especificações dos capacetes. Ele compara o Daft Punk a “Warhol, misturando produção em massa e arte”, mas a dupla também pode se parecer com a Walt Disney Company ou a Coca-Cola – uma multinacional rica protegendo sua propriedade intelectual. Capacetes de robôs feitos em casa proliferam na internet, exibidos em sites de fãs e vendidos no eBay, “mas as proporções são muito difíceis de acertar só olhando as fotos, então todos parecem um pouco estranhos”, afirma Bangalter.

Com o sol prestes a se por, a dupla do Daft Punk sai do estúdio, pega um espresso para viagem em um café na mesma rua e entra no metrô. O trem está quase cheio e ninguém presta atenção neles. É impossível imaginar andar no metrô de Nova York com músicos americanos comparavelmente famosos – você deixa de usar seu passe de metrô no dia em que começa a agendar shows em estádios – e isso representa a posição paradoxal e invejável que o Daft Punk ocupa: são ícones anônimos. “Uma coisa de que gosto nas máscaras é que ninguém fica constantemente me abordando e me lembrando do que faço”, comenta Bangalter. “É bom conseguir esquecer” (só que existem alguns pontos negativos: há vários anos, em Ibiza, conta Bangalter, um belga fez gastos astronômicos nas boates alegando ser ele).

Descemos na sofisticada Second Arrondissement. Homem-Christo mora a 15 minutos daqui, na região que inclui o belo bairro parisiense de Montmartre. Bangalter divide seu tempo entre uma casa no moderno Marais e outra, com paredes de vidro, em Hollywood Hills, que comprou em 2004 de um dos produtores de Assassinos por Nautreza. Os dois têm filhos pequenos, mas não gostam de falar publicamente sobre suas famílias (embora Bangalter comente que seu filho atualmente está gostando de uma biografia de Jim Morrison).

A caminho de um famoso bar antigo chamado Harry’s New York, passamos pela imponente casa de shows Olympia. “Quando éramos garotos, Guy-Manuel e eu fomos ver o My Bloody Valentine ali”, conta Bangalter. “Foi incrível. Guy-Manuel sem camisa, de cabelo comprido, nas rodas de pogo!”

“Pogo louco!”, grita Homem-Christo, sorrindo com a lembrança.

“Encontrei um conhecido dias depois e ele perguntou: ‘Era a sua namorada no show, pulando sem camisa?’”, continua Bangalter. “Respondi: ‘Não, era meu amigo Guy-Man!’ Íamos a shows e dançávamos, ficávamos no meio da galera.”

Eles sentam a uma mesa de madeira polida no Harry’s e pedem coquetéis. Bangalter começa a comer as nozes no potinho e descreve as origens da dupla. “Conheci o Guy-Man na oitava série”, conta. “No final do ano, a escola fez uma excursão para Pompeia e, no trajeto, começamos a inventar músicas. Quando voltamos, gravamos com um pequeno teclado Casio.”

“Era música disco italiana feita por moleques de 12 anos”, diz Homem-Christo. Pergunto se as fitas ainda existem, mas ele balança a cabeça. “Só nosso primeiro videoclipe. Meu pai ainda tem. É o Thomas cantando e eu rindo dele enquanto seguro a câmera.”

O Daft Punk cresceu confortavelmente. A escola onde a dupla se conheceu era o Lycée Carnot, cujos ex-alunos incluem Jacques Chirac, Dominique Strauss-Kahn e o chefe da OMC Pascal Lamy. Bangalter e Homem-Christo alugavam filmes de terror como O Massacre da Serra Elétrica e A Profecia em VHS, assistindo juntos no apartamento do pai de Bangalter em Montmartre, que Dauxerre, o ex-balconista de loja de discos, lembra de visitar no início dos anos 90: “Era lindo – um apartamento grande com dois andares, uma sala com piano e outra para equipamentos de estúdio. Não entrei em todos os cômodos” (o pai de Bangalter se aposentou e mora no Brasil, em uma cidadezinha praiana tão remota que só passou a ter luz elétrica recentemente). A primeira coisa que Laurent Brancowitz, do Phoenix, se lembra de saber sobre o adolescente Bangalter, antes de conhecê-lo, era que ele comprava um disco novo todo dia. “Isso era muito importante quando éramos moleques”, diz Brancowitz. “Significava que você tinha de ser muito rico.”

Os pais de Homem-Christo comandavam uma agência publicitária, e ele vem de um clã de origem paneuropeia dubiamente distinta: seu bisavô, Francisco-Manuel de Homem-Cristo Filho, era um escritor, descrito por historiadores atuais como “o primeiro fascista português” e amigo íntimo de Benito Mussolini. “Só o conheço de fotos, claro”, conta Homem-Christo. Na cidade portuguesa de Aveiro, há uma rua Homem-Cristo e uma escola Homem-Cristo, ambas homenageando seus ancestrais.


No final da adolescência, Bangalter e Homem-Christo formaram um trio de rock desleixado chamado Darlin’, com Brancowitz, que se juntou à banda por meio de um anúncio procurando guitarristas. O Darlin’ tinha um exagero que contrasta notavelmente com o modus operandi mais recatado do Daft Punk: no palco, o grupo fazia um cover de “Love Theme from Kiss”; Homem-Christo usava seu casaco de pele, com purpurina nas mãos e uma estrela na bochecha. Eles eram “talentosos”, conta Dauxerre, que ajudou o Darlin’ a agendar os dois únicos shows que a banda fez, “mas muita gente os achava malucos” (em um show, em Versalhes, o Darlin’ dividiu o palco com uma banda local chamada Loveboat, que contava com Thomas Mars, Deck D’Arcy e Christian Mazzalai, que mais tarde formariam o Phoenix com Brancowitz). “Algumas pessoas pensavam que talvez eles fossem pretensiosos, porque diziam ‘Queremos ser astros’ e coisas assim”, continua Dauxerre. “Eles sabiam exatamente o que queriam.”

A divisão de trabalho do Daft Punk sempre foi obscura para forasteiros, e a dupla prefere assim. Bangalter diz que é mais “mão na massa” quando se trata de “tecnologia”, mas que ele e Homem-Christo tipicamente sentem que têm uma conexão especial, “como irmãos siameses”. Gondry diz: “Para mim, Guy-Manuel é um pouco como a Meg do White Stripes – ela era quieta, mas ancorava o Jack White”. Dauxerre lembra que ficou impressionado com a facilidade que Homem-Christo tinha para melodias: “Ele ouvia algo, dizia ‘está ótimo, só mude um acorde’ e ficava obviamente melhor.” O gigante da house music Todd Edwards, que colaborou várias vezes com o Daft Punk, diz: “Thomas é mais o líder, o que configura tudo, comandando todas as decisões executivas – para o trabalho ser feito, daí chega Guy-Man e dá sua opinião, que é crucial”. Para o novo álbum do Daft Punk, Giorgio Moroder, o poderoso chefão da música disco, falou em três microfones de três décadas diferentes. “Thomas tem superouvidos”, afirma Moroder. “Perguntei ao engenheiro ‘Quem vai ouvir a diferença entre esses microfones?’ Ele respondeu: ‘Ninguém, mas os rapazes ouvirão’.”

No começo dos anos 90, Bangalter e Homem-Christo perderam o interesse pelo rock e começaram a ir a raves underground em Paris. “A história que ouvi é que as garotas não eram muito bonitas e sexy na cena rock”, conta Dauxerre, “mas eles foram à rave, viram muitas meninas lindas e disseram: ‘Essa é a música que devemos fazer!’” Em 1993, depois de terminar o ensino médio, Bangalter – que passou várias férias de verão na infância em um acampamento no Maine – partiu sozinho para uma viagem de três semanas para Manhattan, fez check-in em “um hotel na Madison Avenue” e badalou sem parar: “Saía toda noite, chegava às quatro da manhã no NASA, vi o Junior Vasquez no Sound Factory”, conta. “Lembro a energia das drag queens – queria me mudar para Nova York.” Com os US$ 1.500 que ganhou quando completou 18 anos, comprou alguns sintetizadores e samplers e começou a fazer experimentos musicais em seu quarto em Paris com Homem-Christo. Ambos abandonaram a faculdade, nomeando sua nova banda dance em homenagem a uma crítica nada impressionada feita ao Darlin’ no Reino Unido, que se referia ao único single da banda como “lixo punk ridículo”.

Mais ou menos nesta época, o Daft Punk experimentou drogas recreativas, por pouco tempo. “Tomei ecstasy por um ano, do começo de 1993 ao começo de 1994”, conta Bangalter. “O problema é que gostava de qualquer música que ouvia, qualquer porcaria – não tinha julgamento crítico. A última vez que tomei foi no dia em que Kurt Cobain morreu. Estávamos em uma festa em Glasgow quando soube da notícia. Depois, íamos para outra festa e quase fui atropelado por um caminhão.”

“Aquela foi a primeira noite que tomei ecstasy”, diz Homem-Christo, que evitou o atropelamento do amigo. “E também a última.”

Decidido a se tornar uma presença internacional, o Daft Punk assinou com a gravadora escocesa de dance Soma em vez de um selo francês. A dupla gravou o álbum de estreia, Homework, no quarto de Bangalter, usando sintetizadores, baterias e samplers associados ao início do techno e do hip-hop (“Quando fazíamos uma turnê, recriávamos tudo ao vivo”, comenta Homem-Christo). Homework é incansavelmente impulsor e decididamente comedido, com riffs de acid-house aqui, funk sincopado ali. “Na primeira vez que os ouvi, pensei: ‘Isto é simples demais ou é ótimo?’” conta Gondry. O disco tem um ar de pegadinha e um agnosticismo antecipado quanto ao gênero.

Boa parte da música dance murcha quando sai da pista de dança, mas a imaginação do Daft Punk ultrapassou as raves praticamente desde o começo. “A música foi um vetor em volta do qual queríamos construir um universo”, diz Bangalter. Como outros grandes artistas de música eletrônica dos anos 90, o Daft Punk se apresentava mais como uma banda do que como DJs: fazendo turnês de um álbum com músicas próprias, lançando singles em rádios de rock alternativo, fazendo videoclipes inventivos com diretores então inexperientes como Gondry e Spike Jonze. “A música dance não é legal”, diz o DJ A-Trak, que conhece a dupla desde 2007 e apresentou a música deles a Kanye West. “Eram as piores fontes, a pior arte – não nos esqueçamos de como era um cartaz de rave. Então chega o Daft Punk com esses vídeos malucos, arte linda no disco. Eles têm uma rapidez e uma elegância que outros artistas dance invejavam.”

O Daft Punk levou três anos para gravar o segundo álbum, Discovery (2001). Costurado de forma densa, era fortemente composto por disco obscura e samples de rock de músicas da juventude de Bangalter e Homem-Christo. O Daft Punk bombardeou esses samples com efeitos de filtro que os fez parecer brilhar e desmanchar como memórias que surgem e desaparecem; o disco, ao mesmo tempo ingênuo, audacioso e triste, estabeleceu a dupla como visionários pop. “Chamo o álbum de ‘Thriller da França’”, afirma Dave Macklovitch, do Chromeo, que diz que Discovery foi “o mapa” para sua banda. “Eles foram destemidos naquele álbum”, diz Pharrell Williams, que o Daft Punk chamou para remixar o single “Harder Better Faster Stronger”, em 2003. “Quando você ouve a música da dupla, sente que foi iluminado.”

Em março, cinco anos depois de o Daft Punk começar a trabalhar em Random Access Memories, um comercial foi ao ar durante o Saturday Night Live, dando um aviso enigmático de que a dupla estava de volta. O anúncio tinha oito barras de uma música chamada “Get Lucky” junto a um gráfico dos capacetes dos robôs se fundindo. A música – uma faixa disco animada tocada com precisão milimétrica em guitarra, baixo, bateria e teclado – expressou a mudança terrestre no som do duo. Acabou em 15 segundos.

Os fãs imediatamente fizeram upload do anúncio para o YouTube; alguém fez um loop repetido das barras e o transformou em uma maratona de 10 horas. Sites de música e quadros de mensagem entraram em modo alerta vermelho, transmitindo incansavelmente notícias, por exemplo, de que 13 faixas sem título atribuídas ao Daft Punk haviam aparecido no banco de dados de uma agência britânica de distribuição de royalties: “A duração delas varia de 3:40 a 9:04”, um escritor observou.


“Nossa produção é escassa”, afirma Bangalter, “e isso significa que as pessoas prestam mais atenção.” Algumas semanas depois, o Daft Punk lançou um segundo anúncio no SNL, que revelou o título do álbum. Cartazes e outdoors com a arte do disco foram colados em várias cidades, como parte de uma divulgação magistralmente cheia de suspense e deliberadamente da velha guarda. “Quando você dirige pela Sunset Strip e vê todos esses outdoors, é mais mágico do que um anúncio em um banner”, afirma Bangalter. Em questão de semanas, Random Access Memories havia passado de um segredo incrivelmente bem guardado para um dos lançamentos mais esperados da década.

O último álbum do Daft Punk, Human After All (2005), foi um exercício enxuto de rock-dance mecanizado, gravado em menos de dois meses. O disco soa revigorante hoje, mas ficou muito abaixo de seus antecessores, criticamente e comercialmente. Talvez em reação a isso, Random Access Memories é, em um contraste extremo, o álbum mais ambicioso, caro e demorado da carreira do Daft Punk: uma suíte opulenta de grooves disco banhados a ouro, letras rebuscadas e floreios operísticos progressivos, elaborados principalmente para impressionar. “Gastamos mais de US$ 1 milhão gravando, fácil”, afirma Bangalter. “Só que isso não é importante.”

Quando Pharrell, em uma visita a Paris, cantou pela primeira vez seu verso para “Get Lucky”, o Daft Punk lhe falou para “cantar repetidamente, várias vezes”, lembra Pharrell. “Então, fiz mais quatro ou cinco tomadas, eles pegaram o que gostaram, cantei cada uma dessas partes diversas vezes. Os robôs são perfeccionistas.” O Daft Punk contratou corais, seções de cordas, trompetistas e tocadores de pedal steel. A dupla gravou efeitos sonoros no estúdio da Warner Bros., tocou instrumentos em alguns trechos, depois pagou músicos de estúdio que haviam trabalhado em Thriller e Off the Wall para que os tocassem melhor. Os dois chamaram convidados como Panda Bear e Julian Casablancas para os vocais; Nile Rodgers, o mestre por trás do Chic, tocou guitarra em três faixas. Eles visitaram estúdios de gravação lendários em Nova York e Los Angeles, como Electric Lady e Henson, para capturar os sons e vibrações únicos de salas clássicas. Aonde iam, mantinham os microfones funcionando, capturando jams espontâneas – “Tínhamos rolos de Ampex em todo lugar”, conta Homem-Christo – que eles editaram depois usando Pro Tools, montando músicas a partir dos trechos “como se estivéssemos fazendo um filme”, compara Bangalter. “Há músicas que incluem dois anos e meio e cinco estúdios diferentes.”

Terminando uma segunda rodada de coquetéis, pegamos um táxi até o restaurante no Amour, um hotel butique em Pigale que tem como um dos donos Monsieur André, um grafiteiro amigo do Daft Punk que se transformou em rei da cena. Ele os cumprimenta calorosamente no lobby. A conversa sobre o novo álbum continua no jantar: “Os anos 70 e 80 são os mais apetitosos para nós”, afirma Homem-Christo, comendo uma salada com linguiça. “Não é que não possamos fazer coisas com som futurista louco, mas queríamos brincar com o passado.”

Só que o olhar deles não estava totalmente voltado para trás. Kanye West passou no estúdio de Paris a certa altura e eles fizeram uma pausa para trabalhar em músicas para o próximo disco dele. “Tínhamos uma combinação de baterias ao vivo e programadas acontecendo”, conta Bangalter. “E Kanye fazia rap em cima daquilo”, lembra Homem-Christo.

“Não exatamente rap, mais gritando de uma maneira muito primitiva”, diz Bangalter. Alguns meses atrás, West tocou demos brutas para A-Trak, que as descreve como “monstros futuristas, eletrônicos” sem melodia, só “percussão muito distorcida e Kanye gritando – eles são incríveis”. O Daft Punk claramente vê um espírito parecido no rapper de Chicago. “Kanye se sente confortável conosco, então se permite ser vulnerável”, afirma Bangalter. “Ele é radical nas escolhas que faz”, diz Homem-Christo. “Não está nem aí.”

Em uma sexta-feira ensolarada no deserto de Mojave, um mês depois, Homem-Christo está tomando chá mate à beira da piscina de uma belíssima mansão antiga em Palm Springs, usando um short de natação Dior Homme que deixa o cofrinho à mostra. Bangalter está a poucos metros de distância, usando uma sunga Lacoste minúscula e um chapéu de palha Borsalino gasto, dizendo a Pharrell que ele precisa ver Oz: Mágico e Poderoso de qualquer maneira. “Verdade, cara?”, pergunta Pharrell. “Tudo bem. Tenho que ver.” Música disco toca em alto-falantes montados na parede: chefs contratados trabalham na churrasqueira; garrafas vazias de Veuve Clicquot enchem as mesas. Dois rapazes estão sentados na cozinha com um saco enorme de maconha, enrolando cigarros.

É o primeiro fim de semana do festival Coachella e o Daft Punk alugou a mansão, que pertenceu a Bing Crosby, para um fim de semana prolongado. Pharrell está só de passagem, mas outros dez amigos da dupla estão hospedados aqui – dividindo quartos, jogando pingue-pongue na sala de estar, preparando coquetéis com as bebidas do bar e se jogando na piscina (as famílias da dupla estão em outro lugar). O duo está aqui para fazer uma surpresa para o público esta noite, mas não diz o que será. Os capacetes de robô estão aqui? “Não”, responde Bangalter. “Não podemos dizer onde estão.” Todd Edwards, o DJ, está na sala de estar, bebendo tequila. “Nem eu sei o que eles estão fazendo”, diz. “Se não me contam, não fico perguntando”.


A casa tem um ar de excesso do passado da indústria musical que tem tudo a ver com a ostentação saudosista de Random Access Memories. Um Porsche Carrera está estacionado na frente, perto de um gongo imenso que os visitantes podem tocar para anunciar sua chegada. “Guy-Manuel está dormindo em um quarto onde JFK supostamente teve seu caso com Marilyn Monroe”, conta Bangalter. Homem-Christo dispara: “Isso coloca muita pressão para que eu faça algo interessante ali”.

O que eles não farão, insistem, é se apresentar. Bangalter diz que não há nem planos de fazer turnê do novo disco: "Queremos focar tudo no ato e na empolgação de ouvir o álbum. Não vemos uma turnê como um acessório para ele” (quando finalmente caírem na estrada, acrescenta, será com um setlist abrangendo toda a carreira, não excessivamente focada no novo material).

Por volta das 19h30, o Daft Punk e seus amigos – Edwards, DJ Falcon, Gildas Loaec, designer da Maison Kitsuné, e mais alguns outros – entram em uma van e vão para o festival. Pharrell e sua equipe seguem em uma Sprinter preta. Bangalter conecta o telefone no som, começa a tocar Quincy Jones e Led Zeppelin, vira-se e conversa baixinho com Paul Hahn, empresário do Daft Punk, sobre a surpresa iminente: um trailer estendido para o novo álbum, com um vídeo do Daft Punk tocando “Get Lucky” em smokings de paetês junto com Pharrell e Nile Rodgers, tocará nos telões em HD em cada palco do festival. “Já terá anoitecido nessa hora?”, pergunta Bangalter. “As pessoas conseguirão ver?” Hahn diz que tudo dará certo.

Os seguranças acenam para nós às margens do terreno do Coachella, onde dois carrinhos de golfe nos levam à área dos artistas. Homem-Christo corre para ir ao banheiro enquanto Bangalter desenha um plano de batalha: o vídeo será distribuído entre os vários telões e ele quer ver o máximo possível de transmissões. Com uma dezena de amigos a tiracolo, ele e Homem-Christo logo vão até uma grade na beirada da área VIP com visão para o palco principal. Se alguém os reconhece, não fica aparente.

Às 20h35, o Yeah Yeah Yeahs está prestes a subir ao palco principal, o sol se pôs e os telões de repente ganham vida. O logotipo do Daft Punk aparece e “Get Lucky” começa a tocar nos alto-falantes. As pessoas começam a dançar imediatamente, filmando com os celulares, gritando quando os robôs aparecem no vídeo. Em menos de dois minutos, tudo acaba e os telões se apagam novamente. O clima coletivo é de confusão extasiada: que diabos foi aquilo? A equipe do Daft Punk se parabeniza dando tapinhas nas costas. Pharrell dá um ‘toca aqui’ em Bangalter. Em poucos dias, imagens filmadas do trailer receberão mais de um milhão de visualizações no YouTube, ameaçando eclipsar o resto do festival. Agora, Bangalter abraça Homem-Christo e murmura em seu ouvido em francês. Eles saem da grade e vão embora juntos, mais dois rostos sorridentes na multidão.

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