Em meio a um sucesso quase unânime, Criolo encontra as palavras para falar sobre a homenagem de Chico Buarque, entre outros assuntos: "A preocupação é fazer música com o coração"
Bruno Raphael Publicado em 11/01/2012, às 13h17 - Atualizado em 15/02/2012, às 21h06
“Quem diria, né? Um registro desse, que coisa louca”, reflete Criolo, ao dissertar sobre o sucesso do álbum Nó Na Orelha, lançado no ano passado e eleito o melhor disco nacional de 2011 pela Rolling Stone Brasil. Visitando pensamentos antigos, o rapper relembrou diversos momentos de sua trajetória recente, inclusive os que culminaram na criação de “Não Existe Amor em SP” e a singela (e rara) homenagem prestada por Chico Buarque em um de seus shows.
À época do lançamento de Ainda Há Tempo (2006), seu primeiro disco, quando ainda adotava o nome Criolo Doido, Kleber Gomes, 36 anos, cogitou diminuir o ritmo no rap pouco antes de começar a gravar Nó Na Orelha. “Quando eu imaginei sair dos palcos, e não protagonizá-los, foi mais no sentido de continuar compondo e fazendo minhas coisas, mas não seria o ponto principal estar cantando”, revela. “Eu sempre acreditei no ser humano: seja cantar no boteco para uma pessoa e ela ser surda, e você não ter condição nenhuma pra cantar... porque nós sabemos que, na grande maioria das situações, o músico é tratado como um lixo, né? Às vezes está ali só como se fosse um abajur, para ornamentar uma situação. Mas eu acredito no ser humano: onde tem gente, tem esperança e energia boa.”
Essa “energia boa”, como ele mesmo define com uma humildade desconcertante, foi a força vital para a disseminação do seu trabalho nos mais diversos nichos e esferas da sociedade. “O fato de outras camadas sociais e pessoas com histórias de vida diferentes estarem ouvindo o Nó Na Orelha significa que algum sentimento a gente tem e compartilhamos dele”, resume. “É como eu digo para as pessoas: amor não tem sebe. Sentimento não tem sebe. Só a arte quebra as barreiras e junta as pessoas, por um momento que seja. Um recorte que você faz ali no seu dia e, naquele momento, estamos em pé de igualdade. O povo é maravilhoso, cara”, exalta Criolo. “Nossa senhora, foi um grupo de iluminados que se formou ao redor desse momento - ninguém sabia o que ia dar e as pessoas foram e se identificaram. Esse conjunto de coisas, essa faísca...aqueceu um pouco nossos corações e deu no que deu.”
De discurso firme quando o assunto é sua trajetória no rap e na música em geral, Criolo demonstra alegria ao falar do reconhecimento alcançado após mais de 20 anos de carreira, sem se esquecer de onde veio. “Enquanto indivíduo com quase 24 anos de luta e caminhada, me acontece uma coisa que [suspira]... a gente canta esperança. Demora tanto que, quando acontece, a gente custa a acreditar, sabe? Ao mesmo tempo, também sei que não adianta estar bom só pra um. Foi como eu falei ontem no show [Criolo havia se apresentado um dia antes desta entrevista com Emicida, em show conjunto no SESC Pompeia]: ‘Tem coisas maravilhosas acontecendo em nossas vidas, mas não dá pra ficar sorrindo toda hora, porque em alguns lugares do meu bairro ainda falta saneamento básico [Criolo cresceu no Grajaú, zona sul de São Paulo]’. É saber dividir as coisas: não tirar o valor de uma grande conquista e não tirar o merecimento de quem está na luta todos os dias.”
Citando a vida como principal inspiração na hora de compor, Criolo relembrou os momentos em que “Não Existe Amor em SP” veio ao mundo. “Estava pensando em algumas coisas entre o trem Grajaú-Osasco e caminhando ali pelo Largo da Batata”, conta. “Daí aconteceu isso aí: tinha uma construção, alguns escombros por causa do metrô que estava sendo construído, os camelôs, os homens que trabalham como ‘homens-cartaz’ e uma série de coisas. Você vê o rosto de pessoas que estão ali pela sobrevivência, lutando para ter um pouco de dignidade na vida, sendo tratadas como lixo. É enxergar uma cidade que é um pedaço do Brasil sintetizado e tem tanto potencial. Pessoas que você vê que têm fibra, garra e não têm medo de trabalhar e construir sua história, mas são esmagados por algumas coisas. É mais ou menos isso: o quanto as pessoas são especiais, maravilhosas, e o quanto não são bem tratadas. É o que a cidade faz com você e o que você faz com a cidade.”
Questionado se a frase “Valeu, Criolo Doido! Evoé, jovem artista, palmas pro refrão do rapper paulista” (cantada por Chico Buarque em uma reinvenção – feita por Criolo – da música “Cálice”, em um show) o emociona, o rapper, pela primeira vez na entrevista, encontra dificuldades em achar as palavras certas para se expressar: “Sim [risos]. Muito.” Depois de uma pequena pausa, ele prossegue: “É emocionante poder [pausa]... nossa, é inimaginável, cara. É uma coisa que eu não consigo nem falar. Ainda mais vocês que estão no universo da música, sabem o quanto isso aí foi raro, né? Tocar com o Caetano [Veloso em “Não Existe Amor em SP”, durante o VMB do ano passado] já foi algo maravilhoso. Ele poderia convidar qualquer artista do mundo, né? Tudo que esse cara fez e ele ali, humildemente, dividindo o palco e nós cantamos ali, juntos. Éramos apenas dois caras que gostam de música cantando, cara. Quando acontecem essas coisas, é tão especial.”
“Diante de tantos problemas que você sabe que a gente enfrenta no dia a dia e eu não ter desistido, isso significa que nada é impossível”, continua. “A preocupação é fazer música com o coração, mesmo. Algumas pessoas conversam comigo: ‘Poxa, aquela sua música quis dizer isso’. E nem é música do Nó Na Orelha, mas de coisa que eu cantei há 10 anos. Faz diferença, cara. Nosso pagamento é outro. É totalmente diferente do vil metal. Que ele venha, para darmos conforto aos nossos familiares. São 23 anos mas ainda estou engatinhando e, se Deus me abençoar, ainda vou fazer muita coisa bonita e vocês vão ter muito o que falar de mim aí. Chega de sofrer.”
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