Com seu caráter agregador, político e mobilizador de massas, a música é uma poderosa aliada como ferramenta de transformação social
Luciana Rabassallo Publicado em 29/10/2015, às 18h30 - Atualizado em 30/10/2015, às 20h49
Uma questão da prova de Ciências Humanas do Enem 2015 (Exame Nacional do Ensino Médio) reacendeu na mídia e nas redes sociais inúmeros debates sobre o machismo e as questões de gênero. O exercício, que envolveu a célebre frase da escritora francesa Simone de Beauvoir ("Não se nasce mulher, torna-se mulher"), foi citada em uma pergunta sobre as lutas feministas da metade do século XX.
Imediatamente, políticos conhecidos por discursos conservadores como os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marcos Feliciano (PSC-SP), também utilizaram as redes sociais para condenar a referência à obra O Segundo Sexo, de 1949, em uma prova nacional aplicada para aproximadamente seis milhões de pessoas. A coisa ficou ainda pior quando, na segunda etapa do Enem, o tema da redação foi "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira".
Segundo a visão dos deputados, fomentar o debate acerca das questões de gênero e fazer com que os jovens que participaram do exame reflitam sobre a violência e o machismo incrustado na sociedade brasileira é uma “doutrinação ideológica da esquerda”. Enquanto o país se divide entre os que pensam como Bolsonaro e os ativistas que trabalham de forma incansável para garantir a igualdade de gênero, a luta chega à diversas formas de expressões artísticas. Entre elas, óbvio, está a música. Com seu caráter agregador, político e mobilizador de massas, a técnica de combinar os sons de forma melodiosa é uma poderosa aliada como ferramenta de transformação social.
Nos últimos meses, inúmeros artistas, que englobam novatos como As Bahias e a Cozinha Mineira até a diva Elza Soares, têm questionado em canções, discursos e projetos visuais as relações de poder configuradas por meio de uma concepção de masculinidade hegemônica, reconhecida e legitimada socialmente. Esses artistas questionam os padrões, as normas estéticas e os códigos de masculinidade que, ao serem chancelados pela sociedade, se tornam corriqueiros. A banalização da violência e da intolerância, que muitas vezes são confundidas com a virilidade masculina, são alguns dos pontos abordados por eles. Afinal os gêneros estão muito além da questão homem-mulher.
Elza Soares e o grito libertário de A Mulher do Fim do Mundo
A cantora Elza Soares, de 78 anos, cujo tempo de estrada ultrapassa a marca de meio século, lançou no começo de outubro o primeiro álbum da carreira dela formado integralmente por canções inéditas. A Mulher do Fim do Mundo, fruto do encontro entre a artista carioca e a estética musical contemporânea de São Paulo, faz uma ode às mulheres brasileiras.
“É um disco feminista”, afirma Elza, que é a personificação de várias minorias - nasceu mulher, negra e pobre. “As letras são fortes e contundentes. Um reflexo da força emanada pelas mulheres que enfrentam um difícil cotidiano”, explica a intérprete, antes de sentenciar: “Ser mulher no Brasil é uma coisa muito difícil”. A biografia da artista ilustra de forma contundente sua própria afirmação: casou-se com 12 anos de idade, obrigada pelo pai; aos 13, foi mãe e, aos 21, viúva, e com quatro filhos para criar.
Entre os temas abordados no álbum está a violência doméstica. “Você vai se arrepender de levantar a mão para mim”, canta Elza no single “Maria da Vila Matilde”. Responsável pela letra, o compositor Douglas Germano conta que sofreu com o problema na infância. “Sou filho de uma Maria. Eu vi essa Maria, minha mãe, apanhar em casa. Era garoto e a única coisa que conseguia fazer era sentir medo de meu pai e dó de minha mãe.”
Segundo Germano, Elza foi a primeira mulher que ele viu, ainda garoto, “falar sobre esse assunto”. A história de “Maria da Vila Matilde” se passa nos anos 1970 – “quando não havia lei Maria da Penha”, apesar de haver uma citação a um celular na letra –, e faz menção ao telefone 180, número de um serviço de denúncia da violência contra a mulher.
A Mulher do Fim do Mundo passeia por fragmentos de uma cidade narrada à luz do núcleo criativo composto por Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos, com direção artística de Celso Sim e Romulo Fróes, e produção de Guilherme Kastrup. As 11 composições são assinadas tanto por integrantes do grupo – formado especialmente para a concepção do disco – quanto por outros artistas paulistas, como Cacá Machado, Clima e José Miguel Wisnik.
Em “Pra Fuder”, Elza narra a libido feminina de forma lírica, direta e libertária: “Olho pro meu corpo sinto a lava escorrer/ Vejo o próprio fogo não há força pra deter/ Me derreto tonta, toda pele vai arder /O meu peito em chamas solta a fera pra correr”. O disco segue com “Benedita”, que conta a história de uma travesti que “leva o cartucho na teta, abre a navalha na boca e tem uma dupla caceta”. Há ainda uma homenagem as mães: “Levo minha mãe comigo /pois deu-me seu próprio ser”, diz a letra de “Comigo”.
Todas as mulheres são representadas pela sabedoria de Elza Soares em A Mulher do Fim do Mundo.
Mulher, de As Bahias e a Cozinha Mineira
Formada em 2011 pelos artistas Assussena Assussena, Rafael Acerbi e Raquel Virgínia, que à época eram estudantes do curso de História na Universidade de São Paulo, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira se prepara para lançar no próximo dia 7 de novembro, no Grazie a Dio, em São Paulo, o disco Mulher, quem tem produção de Deivid Santos - saiba mais aqui.
As Bahias e a Cozinha Mineira - Josefa Maria - TEASERTeaser de Lançamento do primeiro disco d'As Bahias e a Cozinha Mineira - Mulher - Novembro de 2015Aproveitamos pra convidar a tod@s para os últimos shows de Pré Lançamento dias 27 e 28 de agosto no Espaço Companhia da Revista em São Paulo. #asbahiaseacozinhamineira #discoMulher #novembro
Posted by As Bahias e a Cozinha Mineira on Sábado, 22 de agosto de 2015
Com influências de nomes como Gal Costa, Novos Baianos, Amy Winehouse e Ney Matogrosso, o grupo propõe uma discussão acerca do machismo, da misoginia e de qualquer tipo de intolerância, seja ela de cunho religioso, étnico, social ou sexual. No single “Apologia às Virgens Mães”, as poderosas vozes de Assussena e Raquel contrapõem o sagrado e o profano ao reiterar a santidade de todas as mulheres – castas ou não.
Veja o clipe de “Apologia às Virgens Mães”:
“Quantos tempos teceram teus vestidos de lã?
Quantas tranças os tempos fizeram traçar teus cabelos?
Quantos beiços beberam do teu peito o afã?
E dos seios sugaram o sulco sem dor, dos teus zelos
Senhora de saia, de ventre predestino,
Quantos tempos cruzaram num ponto de cruz teu destino?
Oh mães de Jesus, oh virgens, todas virgens
Já choraram teu choro, prantos correm na História
Feito rio que erode do espaço às margens: trajetória
E de um traje contido, de branco e grinalda na média,
Abusaram o desejo do corpo e teu sonho trajou de tragédia
Menina de saia de gozo pré-extinto
Quantos tempos bordaram o calado bordel de teu instinto?
Oh mães de Jesus, oh virgens, todas virgens
Na sacola da feira, tem de besteira feijão
Tem também muitas eras de carga alçada em tua mão
Pudera ter tempo, senhora, tanto tempo pudera e tem
Do fruto da feira, vambora, tempos colheitas de tempo têm
Deles, tantos puseram, oh dona, de peso no saco da feira
Se de Madalena o filho, Madona
Pesa mais: não tem eira nem beira
Não tem eira nem beira, nem eira nem beira.”
LAY e a Bucepower Gang
Como combater a onda de homens que compartilham, sem o consentimento da parceria, fotos íntimas de suas namoradas, esposas, colegas ou amantes nas redes sociais? Remover o véu pudico que encobre o nu feminino é uma boa estratégia. Foi com essa premissa que Lay Moretti criou o tumblr Bucepower Gang, no qual mulheres desconhecidas do Brasil todo podem publicar "selfies de ass" e “nudes” com o intuito de fomentar um debate acerca da liberdade sexual feminina.
Nesse contexto, a artista que mora em Osasco, cidade localizada na zona metropolitana de São Paulo, prepara sua estreia como rapper com o EP #129129, que tem produção de Léo Grijó e deve chegar às plataformas de streaming em 2016. As rimas de LAY pregam a sororidade em canções como “Ressalva”, na qual ela clama por “Mais peitos, menos tretas!”. As influências da artista vão de Dina Di a Lil' Kim, e a estética gira em torno da retomada dos timbres da década de 1990.
Selvática, de Karina Buhr
A cantora Karina Buhr foi dominada por uma urgência inquietante que a impulsionou a trabalhar de forma rápida no sucessor de Longe de Você (2011) assim que recebeu um exemplar de Desperdiçando Rima, livro lançado pela artista em março deste ano. “Tive uma vontade incontrolável de começar a fazer melodias para alguns poemas que estão na obra como, por exemplo, ‘Rimã’ e ‘Desperdiço-te-me’”, conta.
Gravado no Estúdio YB, em São Paulo, o disco Selvática, que chegou às plataformas de streaming em outubro, também tem canções inéditas, como a faixa-título, que é inspirada no livro Gênesis, o primeiro do Antigo Testamento. “Eu leio a bíblia sempre que posso por conta do caráter de fábula que as histórias carregam. Esses textos tiveram grande influência na canção que dá nome ao disco”, explica Karina.
“Fui inspirada pelos animais selváticos e pela maneira como as mulheres são descritas nas narrativas sagradas”. A letra faz uma ode às guerreiras Daomé - único exército formado exclusivamente por amazonas registrado na história recente -, que lutaram contra a colonização do continente africano no século 19.
A artista promove um necessário debate sobre a servidão feminina e os valores históricos que rebaixam a mulher na sociedade. “Hoje eu não quero falar de beleza /Ouvir você me chamar de princesa”, previne Karina na letra de “Eu Sou um Monstro”, faixa que convoca as mulheres para lutarem contra os padrões de beleza pré-estabelecidos. Selvática ainda conta com duas participações especiais: Denise Assunção, que integrou a lendária Isca de Polícia - banda paulistana que agitou a cena musical independente na década de 1980 -, e Elke Maravilha, modelo e atriz.
Ah! E ainda temos a foto do encarte, na qual Karina mostra os seios, que foi banida de redes sociais como Facebook e Instagram.
O feminino e o masculino de Liniker
O grupo Liniker, que recentemente se tornou um viral nas redes sociais com o lançamento do EP Cru, é formado por Guilherme Garboso (bateria), Márcio Bortoloti (trompete), Rafael Barone (baixo), Willian Zaharanszki (guitarra), Bárbara Rosa (backing vocal), Ekena Monteiro (backing vocal) e Renata Santos (backing vocal).
A banda de Araraquara, no interior de São Paulo, tem como característica canções que fazem um profundo mergulho no balanço da soul music. O destaque, contudo, é o vozeirão à Tim Maia do vocalista Liniker Barros, que imprime autenticidade e poder aos singles “Caeu”, “Louise du Brésil” e “Zero”. O visual adotado pelo cantor, que mescla bigode, batom, rímel, brincos, colar e vestido, desconstrói de forma enfática os códigos imputados ao gênero masculino.
As faixas “Louise du Brésil”, divulgada no dia 16 de outubro, e “Zero”, liberada no dia 22, já ultrapassaram as 30 mil visualizações no YouTube. No Facebook, apenas a canção “Zero” já bateu a marca de 800 mil acessos.
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