<b>Séria</b> <br> Quando o assunto é trabalho, Leandra mantém os pés no chão. - Foto: Daryan Dornelles

Diante do Mundo

Na televisão há mais de duas décadas, Leandra Leal cresceu aos olhos do público se mantendo fiel aos planos pessoais – e sem se deixar levar pelos dissabores da profissão “celebridade”

Guilherme Guedes Publicado em 05/09/2014, às 17h42 - Atualizado às 17h46

Leandra Leal segura a porta do elevador com uma mão, enquanto a outra mantém uma mala de viagens pequena próxima ao corpo. Passam-se ainda poucos minutos do horário combinado para a entrevista, mas a atriz faz questão de pedir desculpas pelo breve atraso como quem pede perdão por uma falta grave. “Estou na maior correria. E meio gripada também”, ela explica, apressada e com a fisionomia levemente abatida, dentro do elevador do prédio onde mora, no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro.

Vivendo Cristina, protagonista de Império, a nova novela das 21h da Rede Globo, Leandra tem pouco tempo entre as gravações para qualquer outro compromisso não relacionado ao folhetim. Por isso, a conversa ocorre no carro, com ela ao volante, no trajeto para o Aeroporto Santos Dumont. De lá, ela pegaria a ponte aérea para passar o dia seguinte na gravação de um comercial em São Paulo. Com roupa em excesso para o brando inverno carioca, Leandra divide-se com dificuldade entre ser cordial e encaixar a bagagem no porta-malas do robusto jipe 4x4 com placa da capital paulista. Rejeita ajuda e joga a mala no banco traseiro. Após manobrar o carro na garagem apertada, se despede do marido, o produtor cultural e apresentador Alê Youssef, que a encontra com o carregador de celular que ela havia esquecido e um beijo de “boa viagem”.

“Quando eu era mais nova, tinha menos paciência com isso”, confessa diante da evidência da falta de tempo hábil para gerenciar o que acontece à própria volta, além do assédio constante da imprensa, maior a cada conquista profissional. A voz marcante, amaciada pelo sotaque carioca, alterna momentos de ímpeto e tranquilidade, enquanto o rosto é emoldurado por cachos rebeldes, presos à revelia. “Só que o tempo passa e você percebe o quanto isso também traz de coisas boas, o quanto é importante ter uma boa relação com a imprensa para divulgar os seus trabalhos, as suas ideias. Faz parte do lugar que eu ocupo nesse cenário.”

Além de atriz, Leandra hoje é produtora, diretora e agitadora cultural. É apaixonada e dedicada ao Carnaval, festejado em blocos cariocas como o Sem Rival, fundado por ela e amigos, e o Cordão da Bola Preta, do qual é porta-estandarte, além do paulistano Acadêmicos do Baixo Augusta, idealizado por Youssef. Comanda ao lado de Carolina Benjamin e Rita Toledo a Daza Cultural, produtora audiovisual responsável por projetos como o documentário Divinas Divas, dirigido por Leandra, ainda em fase de produção. Também ajuda a mãe, a atriz Ângela Leal, a tocar a programação do teatro Rival, marco histórico do teatro e da MPB no Rio de Janeiro, herdado por Ângela do pai, Américo Leal, em 1990. No meio de tudo isso, acredite: há espaço para ser atriz, a maior entre as tantas paixões de Leandra, e parte intrínseca à existência dela.

A menina de temperamento forte estreou informalmente no teatro aos 2 meses de idade, no colo da mãe, e fez a primeira participação na TV aos 8 anos, na novela Pantanal. Com papéis de maior destaque no seriado Confissões de Adolescente e em novelas como Explode Coração e A Indomada, abriu caminho para a carreira cinematográfica, que inaugurou aos 15 anos no drama A Ostra e O Vento. Aos 31, Leandra acumula vivência incompatível com o semblante jovial e desperto. Em um amálgama delicado de seriedade e simpatia, ela leva um tanto de si mesma para as personagens que interpreta: o idealismo de Zélia Vilar, de Saramandaia; a poesia intensa e furiosa de Camila, de Nome Próprio; o sorriso largo de Maria do Rosário, a “empreguete” de Cheias de Charme; ou a o jeito sonhador de Carmem, médica do premiado Estamos Juntos, longa de Toni Venturi. Leandra é um pouco de todas elas, mas garante ter sempre os pés no chão – em cena ou na vida pessoal – para em momento algum deixar o ego invadir a autonomia das personagens; é sempre todas elas, que nunca são, ao todo, Leandra. Exemplos complementares e opostos são Rosa e Cristina, respectivamente as protagonistas de O Lobo Atrás da Porta, filme de Fernando Coimbra que chegou ao circuito comercial em maio deste ano, e Império, novela escrita por Aguinaldo Silva.

Laureado pela crítica, mas recebido friamente pelo público, O Lobo Atrás da Porta é um thriller sufocante e repleto de reviravoltas, no qual Rosa leva ao limite o relacionamento com Bernardo, interpretado por Milhem Cortaz. O roteiro sagaz borra a linha entre heróis, mocinhas e vilões, e a realidade tangível da narrativa é enriquecida pela excelente performance de Leandra, que transmite claramente o universo intrincado de Rosa. “Ela é de uma fragilidade… Não tem ambição profissional, é bem perdida. Mas é uma mulher comum, que se entrega a uma relação e faz dela o seu mundo, o que eu acho que é o primeiro passo pra qualquer relação falir”, avalia, com a mão direita ao volante e os olhos fixos à frente. “E esse é um dos grandes méritos do filme: escolher o caminho mais difícil, o da complexidade humana.”

Ao mesmo tempo que Rosa se ocupa de uma série de vazios, Cristina coleciona responsabilidades enquanto tenta se equilibrar com as rasteiras que leva da vida. “Ela é muito batalhadora e muito feminina. É uma mulher comum, contemporânea, que faz mil coisas ao mesmo tempo.” Nessa hora, Leandra ri de si mesma ao notar as similaridades entre a personagem e a porta-voz. “Ela é uma heroína muito forte, é esperta, não é aquela mocinha que você fica: ‘Ah, como é que ela não viu isso?’, sabe?”, detalha, em referência sutil a mocinhas de folhetins recentes, criticadas pela notória passividade. E por mais que o cinema tenha rendido prêmios, dado credibilidade e liberdade criativa ao ofício de Leandra, a paixão dela parece ser mesmo a televisão. “Eu gosto muito de fazer TV, gosto de como é um estúdio, de gravar vinte cenas por dia, de fazer um personagem por um ano”, se declara. “Eu gosto desse acelerador de processo.”

Reconhecida pela entrega às personagens e às obras a que se dedica, Leandra é objetiva, quase pragmática. “Eu batalho muito pelas coisas que quero. Não sou esse estereótipo do artista mais ‘doidão’, sou bem trabalhadora. Bem mesmo”, reforça, na divisa confusa entre as ruas Humaitá e Voluntários da Pátria, a artéria principal do tráfego urbano de Botafogo. Hoje, o vasto currículo como atriz se espalha entre o alcance popular das produções televisivas, o prestígio do teatro e o reconhecimento no cinema, frentes distintas abraçadas por audiências nem sempre iguais, mas vistas por Leandra como pilares diferentes de uma única obra.

“Eu acho essa divisão tão antiga! É a minha vida, a minha carreira, não existe essa separação”, rebate, pouco depois de acender o primeiro dos dois cigarros fumados durante o trajeto. Por mais que outros atores façam questão de deixar claras as fronteiras entre trabalhos nesses três círculos, Leandra não apenas evita fazer o mesmo como tenta ao máximo agregar essas áreas sob o mesmo guarda-chuva. “No Brasil há possibilidades de desenvolver plenamente a minha profissão por esses três caminhos”, avalia. “Eu tenho colegas que vivem bem fazendo teatro a vida inteira, por exemplo, mas desde cedo fui cotada para o cinema e para a televisão, e consegui equilibrar tudo isso muito bem.” A pluralidade é explicada pela determinação metódica com que gere a carreira. “Eu sou muito formiga; acho que tudo na vida exige dedicação, não dá pra fazer 40 milhões de coisas ao mesmo tempo. Você tem que ter foco no momento em que você está”, diz, alternando o olhar entre o retrovisor esquerdo e o para-brisa. No entanto, Leandra admite que o sucesso na televisão facilita o trabalho no cinema e no teatro. O fracasso comercial de O Lobo Atrás da Porta (“Não foi muito bem lançado. É difícil furar o bloqueio de quem investe no cinema brasileiro, que não acredita no gosto do público e privilegia as comédias”) é inversamente proporcional à recepção maciça dos trabalhos televisivos, que ela usa a favor dos projetos que encabeça fora das telinhas. “Se eu não estivesse na TV, seria muito mais difícil”, admite.

Na metade do caminho, o tráfego desafoga. O tempo passa mais rápido, táxis e ônibus ultrapassam o jipe em um balé veloz e perigoso, e Leandra se distrai – acaba escolhendo a opção errada no emaranhado de viadutos e vias expressas da Praia de Botafogo. No novo trajeto, nas cercanias do Flamengo, Leandra discorre sobre o quanto realmente planeja em relação à carreira, e confirma a falta de espaço para vislumbrar metas a longo prazo nos quebra-cabeças de tempo a serem solucionados diariamente, um a um. “Eu não acredito muito em planos a longo prazo, sabe? É um atalho pra você se frustrar. A vida é muito imprevisível!”, afirma. “Você tenta aprumar o barco para uma direção, mas você está no mar. E o mar é imprevisível.”

No instante em que a global termina a frase, o telefone apoiado entre as pernas dela toca. Leandra recusa a ligação. O telefone toca novamente, e ela atende com relutância e outro pedido de desculpas. Era uma representante da equipe de produção de Império informando que a atriz precisaria estar disponível para a gravação de uma cena no dia seguinte. “Cara, eu estou dirigindo, indo pro aeroporto, indo pra São Paulo.” Depois de alguns minutos de conversa, o rosto de feições amenas ganha uma expressão tensa, e Leandra fica monossilábica enquanto pensa em como resolver o impasse. Diante da proximidade do aeroporto, filosofa: “Tem que aprender a lidar com as grandes frustrações da vida, não tem o que fazer. Não é uma questão de levantar a cabeça e dar a volta por cima, é aprender sobre si e sobre os outros”.

Ainda assim, imprevistos como esse, com o qual ela teve de lidar ao telefone, não passam em branco. “[A mudança repentina de agenda] me deixa supernervosa. Eu sou boa de lidar com mudança, mas gosto de fazer tudo certinho”, explica. Enquanto atende outra ligação, manobra o carro com desenvoltura e solta o fôlego de uma vez quando o imbróglio profissional encontra uma solução. “Ufa, deu certo. Nossa, deixa eu arrumar esse cabelo!”, diz, como se a confusão de instantes antes nunca tivesse acontecido. “Adoro quando eu sou só atriz. Meus problemas envolvem o figurino, o penteado… Eu acho muito bom. Parece férias.”

As Musas do Rival

Divinas Divas narra a saga artística de travestis que fizeram história no teatro

Leandra Leal coordena, há oito anos, a produção do documentário Divinas Divas, que conta a história de Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloína dos Leopardos, Marquesa, Brigitte de Búzios e Fujika de Halliday, as primeiras artistas travestis do Brasil. Em cartaz desde os anos 1960, as performers ajudaram a construir a cena que alimentou o espírito contestador que circulava pelo centro do Rio de Janeiro na época da ditadura. “Não é apenas uma questão gay. É o registro da contribuição dessas artistas pelas liberdades individuais no país”, explica. O Teatro Rival sempre foi a base de tudo isso, e o interesse de Leandra pela história surgiu justamente pela conexão da família dela com o espaço. “Comecei o contato com elas redescobrindo a história do meu avô, e o palco é o lugar central da vida delas. Todas merecem muito reconhecimento pela coragem, pela entrega radical à profissão, e espero que o filme ajude nisso.” Agora, entre uma gravação e outra, ela edita as mais de 400 horas de material bruto. E essa não será a única incursão dela na direção no futuro próximo: Leandra vai codirigir o seriado Idade Perigosa, que deve estrear no GNT em 2015. A trama mostrará seis amigos que têm a amizade abalada por um crime misterioso.

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