A imagem mostra Cássia Eller, o filho Chicão, e a companheira dela, Maria Eugenia - Divulgação

Documentário reitera importância de Cássia Eller na luta pelos direitos homossexuais no país

Cássia, que chega aos cinemas nesta quinta, 29, registra um dos maiores avanços na questão dos direitos civis para famílias brasileiras formadas por casais do mesmo sexo

Luciana Rabassallo Publicado em 28/01/2015, às 19h46 - Atualizado em 30/01/2015, às 13h27

Com os olhos marejados e perceptivelmente nervosa, Cássia Eller olha para a câmera, faz sinal de positivo e sorri. Conhecida por uma postura explosiva no palco, a cantora, naquele momento, aguardava para dar à luz Francisco Eller, o Chicão, único filho dela.

A cena, íntima e tocante, faz parte do documentário Cássia, do diretor Paulo Henrique Fontenelle, que chega aos cinemas nesta quinta, 29. Intercalando fotos, vídeos inéditos e entrevistas com artistas, amigos e familiares, a obra é uma viagem profunda ao universo da cantora, morta em 2001, aos 39 anos.

“A Cássia é uma figura emblemática para a música brasileira, mas o público só conheceu o lado explosivo dela. Fora dos palcos, ela era uma pessoa doce, tímida e simples”, conta Fontenelle, experiente em obras biográficas após dirigir Loki: Arnaldo Baptista (2008) e Dossiê Jango (2013).

O relato sobre o integrante d’Os Mutantes foi o passaporte do cineasta para conseguir o apoio da família da cantora na realização do filme. “Quando enviei o projeto à Maria Eugênia, ela me disse que o Chicão havia visto o documentário sobre o Arnaldo e gostado muito”, conta. “Por isso, eles se interessaram pela minha proposta.”

Fontenelle também faz questão de ressaltar que a viúva de Cássia pediu que a intérprete fosse retratada de maneira fiel: “Uma mulher de temperamento forte, mas com uma alma doce”, esclarece o diretor antes de acrescentar: “Combinamos que não deixaríamos nenhum tema polêmico de fora”. Entre eles estão: a identidade do pai de Chicão, a sexualidade de Cássia, o relacionamento amoroso que ela mantinha com a percussionista Lan Lan e o vício dela em drogas.

O assunto de maior importância, contudo, é a disputa judicial que envolveu a guarda de Chicão. Mesmo que sem intenção, o documentário registra um dos maiores avanços na questão dos direitos civis para famílias brasileiras formadas por casais do mesmo sexo. Após a morte da filha e à revelia do resto da família, o pai de Cássia, Altair Eller, tentou obter a guarda do neto na Justiça.

Ao pé da letra da lei, Altair seria, à época, o tutor legal do garoto. Pelo Código Civil e mesmo pelo Estatuto da Criança e do Adolescente a guarda de órfãos (o pai de Chicão, o músico Tavinho Fialho morreu antes de o menino nascer) costuma ser repassada aos avós maternos. Aos olhos da Justiça, portanto, o avô teria preferência na decisão.

Contrariando todas as expectativas e contornando os pontos desfavoráveis - como, por exemplo, a união homossexual não ser reconhecida em lei - o juiz Leonardo Castro Gomes, da 1ª Vara da Infância e Juventude, do Rio de Janeiro, decidiu que Chicão deveria ser criado por Eugênia. Essa foi a primeira vez na história da Justiça brasileira em que a tutela de uma criança foi entregue à companheira da mãe.

Apesar de não carregar bandeiras ou fazer discursos sobre homofobia, Cássia Eller, à maneira dela, teve um papel fundamental no avanço das questões que envolvem os homossexuais no país. A decisão da Justiça em deixar a guarda de Chicão com a mulher que esteve ao lado dela durante 14 anos não foi importante apenas do ponto de vista jurídico, mas também despertou debates sobre o tema no Brasil. Não foram os discursos, mas as práticas que a tornaram personagem fundamental. O conceito da "família tradicional", formada por um homem, uma mulher e os filhos biológicos, passou a ser questionado.

“Ela provocou muitos pensamentos, muitos discursos e muitas reflexões. É uma utilidade que vai além da música. De repente aquela mulher, que era chamada de ‘macho’, que coçava o saco e mostrava os peitos, aparece grávida. Isso mexeu com a cabeça das pessoas e induziu reflexões”, relembra Zélia Duncan, em um trecho do documentário.

Infelizmente, ainda hoje, Cássia Eller é normalmente lembrada pelos boatos acerca da morte dela. “Uma revista de grande circulação nacional divulgar uma capa como aquela é um crime”, afirma Eugênia no vídeo. A publicação em questão é da revista Veja que, mesmo antes de ter um laudo pericial do Instituto Médico Legal, estampou a seguinte manchete: “Drogas, mais uma vítima”.

O documentário Cássia esclarece a causa da morte: quatro paradas cardiorrespiratórias em razão de um enfarto do miocárdio. “Ela estava em abstinência de drogas e bebida”, relembra Lan Lan, uma das últimas pessoas a ver a cantora com vida. “Cássia me ligou naquele dia e estava chorando muito. Nós [Lan Lan e Thamyma Brasil, que também fazia parte da banda de Cássia] a levamos para tomar água de coco e fomos acalmando-a. Como ela sentia dor de cabeça e enjoo, paramos em uma clínica perto de casa. Fui fazer a ficha dela e quando voltei, ela já tinha sido levada”, conta.

Além de relembrar fatos de extrema importância, o filme contempla os fãs com um rico material, recuperando imagens da infância de Cássia e cenas das primeiras apresentações, em Brasília (cidade na qual ela foi morar aos 18 anos), e registros caseiros, que mostram a cantora ao lado do filho e da mulher, Maria Eugênia.

Cássia faz jus ao legado da cantora. É fascinante ver cenas cotidianas, registros pessoais e depoimentos de amigos. Constatar o quanto a timidez de Cássia sempre fez um contraponto com a presença furiosa dela nos palcos. Quando o filme acaba, fica a triste sensação de que Cássia Eller faz uma grande falta – não só para a música brasileira, mas também para todos os fãs que acompanharam de perto a carreira meteórica dela. Fica um grande vazio.

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