O cineasta pode não ser uma figura popular, mas, definitivamente, deixou um legado histórico para a cultura pop
Julia Harumi Morita | @the_harumi
Publicado em 24/08/2020, às 07h00Um cineasta capaz de provocar ânsia e risada nos espectadores. O criador de filmes com personagens caricatas, histórias bizarras, elementos absurdos e uma estética extravagante. Com vocês, o papa do trash: John Waters.
Talvez o nome do diretor não soe familiar, afinal, ele é um verdadeiro ícone do cinema cult e produziu muitas obras que passaram longe da televisão e, até hoje, não estão disponíveis nas principais plataformas de streaming.
Mas, talvez, você já tenha visto nas redes sociais alguma foto do jovem Johnny Depp em Cry-Baby (1990), de topete e roupas no estilo rockabilly, ou da drag queen Divine em Pink Flamingos (1972), de cabelos loiros, maquiagem exagerada, vestido vermelho e uma arma nas mãos. Isso é John Waters.
O diretor pode não ser uma figura popular, mas, definitivamente, deixou um legado artístico lendário que inspirou diversas produções da cultura pop, desde musicais da Broadway até o reality show RuPaul’s Drag Race e a animação clássica da Disney A Pequena Sereia.
Para conhecer e entender a influência do cultuado diretor trash na cultura pop, a Rolling Stone Brasil revisitou a trajetória do cineasta por meio das principais características das obras dele. Confira:
Expulso do dormitório da Universidade de Nova York por fumar maconha e comparecer em uma única aula, Waters aprendeu sobre cinema com o dono de um laboratório de filmes da cidade natal, Baltimore, e um conhecido, que fornecida equipamentos de emissoras de televisão, segundo o site Collider.
Em 1964, o jovem aspirante a diretor lançou a primeira produção da carreira, o curta-metragem Hag in a Black Leather Jacket. Segundo o IMDb, filme foi feito com apenas US$ 30 e retrata um casamento entre um homem negro e uma mulher branca realizado por membros da Ku Klux Klan.
A partir desta obra, o cineasta começou a formar o Dreamland, um grupo de artistas e performers atípicos interessados em dar vida às narrativas nada convencionais do diretor. Entre as figuras do seleto elenco, estava Harris Glenn Milstead, mais conhecido como intérprete de Divine.
Waters e Milstead criaram juntos uma personagem que redefiniu o visual da drag queen. Sobrancelha arqueadas, delineados grossos e sombras coloridas que se estendem até o topo da cabeça quase careca. Cabelos loiros e compridos que preenchem a outra metade. Brincos brilhantes e um vestido vermelho ajustado ao corpo acima do peso considerado padrão pela sociedade.
É assim que Divine aparece em Pink Flamingos, uma das obras mais célebres do diretor. Este, claro, não era o único visual da drag queen, mas, com certeza, era o mais marcante. Por meio de uma figura exagerada, elegante e com mais de 130 quilos, Milstead e Waters confrontaram os padrões estéticos e morais da sociedade norte-americana.
Além disso, os artistas também trouxeram novas dimensões artísticas para as drag queens, que, na época, “eram quadradas”, “queriam ser a Miss America e a mãe delas”, de acordo com uma descrição do cineasta para a revista Baltimore.
Divine era literalmente a diva de Waters e esteve em praticamente todos os filmes do diretor até a década de 1980. Uma personagem tão multifacetada e marcante que, às vezes, era confundida com a identidade de Milstead.
O ator enfrentou muitos conflitos internos, sociais e financeiros ao longo da vida e morreu aos 42 anos em consequência de um ataque do coração, em 1988, logo após o lançamento de Hairspray.
A vida de Milstead foi curta, mas deixou marcas icônicas. No obituário da revista People, Divine foi descrita como “a drag queen do século”. E, de fato, a personagem foi e ainda é uma das maiores referências dessa expressão artística importantíssima para a comunidade LGBTQIA+.
Em 2015, o programa RuPaul's Drag Race dedicou um episódio inteiro à personagem. No nono capítulo da sétima temporada, os participantes do reality show tiveram que recriar cenas clássicas das obras de Waters e foram julgadas pelo próprio diretor.
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Essa não foi a primeira homenagem feita para Divine na cultura pop. Apesar de protagonizar narrativas polêmicas e inadequadas, a drag queen inspirou o visual da vilã de um dos contos infantis mais clássicos da Disney, A Pequena Sereia (1989), segundo o Independent UK.
Já reparou no visual da Úrsula? Uma bruxa gorda com tentáculos pretos e roxos, os quais formam um vestido elegante e justo, um sorriso largo, olhos pintados de sombra azul, unhas compridas e vermelhas.
Divine ainda foi homenageada no mundo das artes plásticas. De acordo com a NPR, o American Museum of Visionary Art, de Baltimore, colocou uma estátua de mais de três metros da drag queen no local e o Museum of Modern Art, de Nova York, integrou Pink Flamingos na coleção permanente do museu.
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Sexo, violência, as manchetes mais chocantes do dia, carros rápidos, gatinhos ainda mais rápidos, assassinos psicopatas e crianças à solta. Segundo a Rolling Stone EUA, estes são são os elementos necessários para fazer um filme de exploração, uma categoria cinematográfica que frequentemente se mistura com o trash e se aproxima do grindhouse.
E John Waters era um mestre neste tipo de produção. Em Hairspray (1988), Milstead dá vida à mãe da protagonista. Já em Multiple Maniacs (1970), Divine é abusada por uma lagosta gigante. E, em Pink Flamingos, a drag queen protagoniza uma das cenas mais infames do diretor, em que come cocô de cachorro.
“Eu fiz filmes de exploração para cinemas de arte [...] E, não importa o que vocês pensem deles, eu, definitivamente, fui a primeira pessoa que fez isso. Eles foram feitos cinemas de arte”, disse o diretor em entrevista à IndieWire.
As narrativas, personagens e estética do diretor são inspiradas no teatro do absurdo, uma vertente que usa a comédia e o nonsense para retratar a solidão do homem moderno, segundo o Enciclopédia Itaú Cultural.
“Bem, [Multiple Maniacs] é do teatro do absurdo. Ninguém fala sobre esse movimento, que veio antes deste movimento dos anos 1960 e foi uma grande influência para mim. É daí que veio. E também do surrealismo”, explicou o cineasta para a Collider.
Waters completou: “Eu acho que o teatro do absurdo, que depois se tornou o teatro do ridículo, era algo que tinha uma coisa que não fazia sentido no meio disso. Mas fazia sentido para mim”.
John Waters também criou musicais icônicos. Em 1988, o cineasta lançou a obra mais popular da carreira: Hairspray. O elenco contou com grandes nomes da música, como Sonny Bono e Debbie Harry, além de Divine, Jerry Stiller e o próprio Waters.
O longa-metragem conta a história de Tracy, uma jovem que sonha em se tornar dançarina e luta pelo fim da segregação racial. A produção foi bem recebida pelo público e pela crítica e, hoje, é considerada um dos clássicos da Broadway.
Cry-Baby é outro musical de destaque do diretor. Estrelado por Johnny Depp, o longa-metragem é a versão esdrúxula de Grease que explora intensa e autenticamente os arquétipos dos personagens.
Com musicais, narrativas bizarras e Divine, John Waters conseguiu criar obras únicas, as quais elevaram o conceito do trash e deram destaque para a figura da drag queen. O diretor pode não uma figura pop, mas, como disse à Vulture, foi o responsável por tornar o “mau gosto 1% mais respeitável”.
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