Documentarista fez do cinema uma extensão de sua vida e de suas ideias
Christian Petermann Publicado em 03/02/2014, às 15h37 - Atualizado às 15h43
Quem conviveu com Eduardo Coutinho, tinha certeza que ele seria vitimado por seu consumo incessante de cigarros. Em um golpe digno de cinema barato, a jornada deste grande homem da Sétima Arte foi interrompida no dia de Iemanjá, 2 de fevereiro, como resultado de um provável surto psicótico do próprio filho, Daniel, 41 anos, que o matou a facadas e ainda feriu gravemente a mãe. Aos 80 anos, na ativa, lúcido e preparando um novo filme, Coutinho deixa um dos mais importantes legados da história do cinema brasileiro.
Cineastas lamentam a morte do documentarista Eduardo Coutinho.
Como autêntico homem que viveu principalmente de cinema e fez desta expressão uma extensão de sua vida e de suas ideias, Coutinho passou por todas as fases do audiovisual brasileiro contemporâneo, a começar na segunda metade dos anos 1960, ainda na ficção, em paralelo ao Cinema Novo. Ele assumiu de vez o documentário nos anos 1970, quando, entre outros feitos, participou da primeira e mais interessante fase do programa Globo Repórter, na TV Globo. Não são poucos os profissionais da área que tomaram gosto pelo documental assistindo ao programa.
Este primeiro fluxo factual culminou em Cabra Marcado para Morrer (1984), uma das obras-primas do gênero, um marco no cinema político. Por sua própria estrutura e histórico de filmagem, que começou como ficção militante em 1964, foi interrompida pelo golpe militar e em 1981 retomada com cenas de época e depoimentos contemporâneos. O filme acabou se tornando um dos estandartes culturais da reabertura política, uma urgente manifestação da liberdade reconquistada.
Como toda a comunidade cinematográfica, Coutinho também sofreu com o hiato criativo provocado pelos negros anos Collor, mas com a Retomada pós-1995, iniciou-se o momento mais intenso e influente do cineasta. Da virada dos anos 1999/2000, quando lançou dois documentários, Santo Forte e Babilônia 2000, para cá, ele realizou uma dezena de obras que figuram não só entre as mais importantes do gênero documentário no Brasil, mas também em âmbito global. A maestria de Coutinho é inegável, revelando um ser humano que sabia acima de tudo ouvir o próximo e descobrir nele, seja célebre ou anônimo, as melhores histórias para serem contadas.
Há muitas camadas a serem exploradas na filmografia e forma de filmar do diretor, mas de maneira sintética: ele derrubou várias das fronteiras criadas entre o documentário e a ficção (como, por exemplo, em Jogo de Cena, 2007), explorou um Brasil autêntico através do cidadão comum, seja em um grande centro urbano (Edifício Master, 2002) ou nos confins do país (O Fim e o Princípio, 2006), e transitou entre a política (Peões, 2004) e as artes (Moscou, 2009; As Canções, 2011).
Para se ter uma melhor imagem de quem ele foi, de como viveu e pensou, nada melhor que a leitura do livro Eduardo Coutinho, organizado por Milton Ohata e lançado em outubro último pela Cosac Naify e Edições SESC, com o apoio da Mostra SP. Ali está um resumo luminoso desse legado. De resto, resta-nos revisitar a filmografia de Coutinho toda e qualquer vez que se quiser assistir a um grande filme que ilumine o Brasil.
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