Apesar das tentativas alheias, o mais verborrágico jogador de futebol em atividade não se deixa reprimir: seja qual for a circunstância, ele continua a expor suas verdades
Gustavo Silva | Produção: Tamara Emy Publicado em 15/01/2015, às 16h32 - Atualizado às 17h17
Emerson Sheik não gosta de entrevistas. “Não tenho mais saco”, ele diz, pouco depois de sentar-se à mesa do bistrô do qual é sócio, no Rio de Janeiro. Os óculos espelhados já não vestem mais o rosto jovial que, naquele instante, aparenta cansaço – fruto de um domingo de diversão e cerveja na mansão que o jogador mantém na região de Angra dos Reis, litoral fluminense. Minutos depois, quase como prova de sua sinceridade, Sheik mal escuta a proposta de seu assessor, um convite para participar de um programa de uma grande emissora de esportes, recusando-a de imediato.
O problema não está em lidar com jornalistas, mas sim no meio como um todo, tão monótono quanto engessado, segundo ele. “São sempre as mesmas perguntas e sempre as mesmas respostas”, Sheik comenta enquanto espera pelo suco natural que acompanhará o almoço. Em geral, a cartilha do jogador de futebol brasileiro é cheia de frases prontas que são disparadas de maneira automática – “Agora é levantar a cabeça e trabalhar”, “Vamos fazer o melhor para buscar os três pontos”, “Mérito da equipe e do professor” – e ativadas por questionamentos de complexidade quase infantil. “Por isso que quando eu digo algo que fuja dessa linha, já falam que o Emerson é polêmico.”
Em um universo cada vez menos politizado e mais policiado, Sheik não tem medo de dizer o que pensa de fato. “Falo a minha verdade”, ele repete algumas vezes ao longo do dia. A verdade do jogador, contudo, às vezes é inconveniente para quem está no caminho. Gritar diante das câmeras de televisão contra a CBF, chamando a instituição que cuida do futebol brasileiro de “uma vergonha” ao vivo em rede nacional, é apenas um dos exemplos. Sustentado por uma carreira vitoriosa, Emerson Sheik é parte de um clube em extinção no futebol brasileiro, cujas polêmicas, confusões dentro e fora do campo e frases de efeito geraram material para a sabedoria popular apelidar seus integrantes de “bad boys”.
A conversa é interrompida para o almoço. O restaurante é conhecido por pratos que levam nomes de famosos. Sheik está no cardápio, mas o atleta faz um pedido anônimo – palmito e salmão salpicado com gergelim. Vou de Giovanna Ewbank (atum com batatas) e, de sobremesa, a doçura exagerada de Paloma Bernardi (bolo de chocolate com sorvete, morangos e leite condensado). “Pra mim, um picolé”, pede Sheik. O momento é trivial, mas o gelato tem sua graça oportuna: a marca havia recentemente sido acusada de vender como verdade uma trama de marketing baseada em episódios fantasiosos – algo conhecido na história do jogador.
“Papai do céu olhou aqui pra baixo e reservou algo especial pra mim”, diz Emerson Sheik enquanto dirige um Range Rover preto blindado pelas avenidas beirando o litoral da capital fluminense. A afirmação, a despeito das crenças religiosas, está materializada não só em bens – o contexto da conversa é de como outros conhecidos boleiros perderam tudo em farras, roubos de empresários (golpe do qual ele também foi vítima no começo da carreira) e maus investimentos –, mas também na trajetória profissional e na vida. O jogador é o único que ganhou três títulos brasileiros consecutivos por três clubes diferentes – Flamengo, Fluminense e Corinthians. Pelo time paulista, ele protagonizou a conquista dos campeonatos mais importantes da história da equipe, entre eles a Libertadores da América e o Mundial de Clubes da Fifa, no Japão.
“Eu sou Flamengo, mas tenho um carinho muito grande pelo Corinthians”, ele confessa com franqueza genuína. “As pessoas confundem. Foram cinco títulos importantes em três anos. Bacana. Mas eu estava sendo pago pra isso. Eu não fiz nada de especial. E também não fiz sozinho. Mas meu relacionamento com o Corinthians hoje é mais do que as pessoas pensam. A identificação com o torcedor foi uma coisa absurda. Acho que os caras me olham lá da arquibancada e falam: ‘Porra, esse cara aí parece que tava aqui no nosso meio’. E é exatamente isso. Tem esse lance do maloqueiro – não estou generalizando, e é no bom sentido, obviamente –, o cara que vende tudo pra ir ver o time. Alguns anos atrás, eu estava na mesma condição deles, de ir pro Maracanã, pular a linha do trem pra ver jogo e por aí vai.”
Aos 19 anos, o jovem Emerson, hoje com 34, deixou o São Paulo – clube que faz questão de sacanear sempre que possível, fazendo referência aos “bambis” – por questões financeiras para ir jogar no Japão, país onde passou cinco anos.
Criado pela mãe ao lado dos irmãos, ele cresceu sem posses – a casa onde viveu em Nova Iguaçu sequer tinha piso no chão. O contraste do passado simples com o que viria a seguir acabou sendo marcante. Do Japão ele seguiu para a França, e da Europa para o Qatar, onde fez fortuna, sucesso e um legado em forma de codinome: Sheik.
Os tempos de Qatar também deram a Emerson uma nacionalidade extra. “Era muito amigo do príncipe e ele me pediu que eu virasse cidadão do país”, relembra. Arrependimentos? “Não. Hoje, claro, minha cabeça é muito diferente, mas na época eu tinha muito...”, ele para e pensa com cuidado no termo que procura. “Eu tinha um problema com o Brasil. Porra, eu era muito pobre, e isso era muito triste, ver um país tão desorganizado, que fazia aquilo com seus próprios cidadãos.” As coisas, Sheik reflete, melhoraram – muito para ele, e em menor escala também para o país como um todo. Isso não significa, porém, que o jogador esteja 100% contente com os rumos da nação. “Um dos candidatos pediu que eu gravasse um vídeo de apoio, mas eu não fiz isso. Não votei em nenhum dos dois. Não acho que nenhum deles me represente.”
Emerson Sheik não tem condições de defender o Brasil nos campos, tampouco o Qatar. O jogador chegou a atuar pela seleção brasileira sub-20 e, tempos depois, representou por uma única vez a nação árabe, que será sede da Copa do Mundo de 2022. A seleção do Iraque entrou com uma reclamação na Fifa alegando que a convocação de Sheik ia contra as regras da instituição, e foi ouvida.
Na internet, virou figurinha cativa nas editorias de fofoca por causa de seus relacionamentos-relâmpago com subcelebridades. “Nos últimos tempos, me relacionaram com umas cinco, sete mulheres”, comenta. Ele nomeia uma a uma, ignora os boatos com outras e desmente uma delas, dizendo que nunca a viu e que está em vias de processá-la pelas declarações alegando um suposto caso dos dois. “Porra, se em três anos eu não conseguir comer sete mulheres... aí eu tô fodido mesmo, né?”
Se a palavra “gato” é muitas vezes usada em respeito à beleza de um personagem, no caso de Emerson há outro significado, histórico. No jargão esportivo, o termo é empregado para atletas que falsificam a documentação para obter vantagens. Em 1996, Emerson adulterou a data de nascimento, rejuvenescendo quatro anos no papel, além de ter mudado o próprio nome. Emerson, na verdade, foi registrado pela mãe como Marcio Passos de Albuquerque.
Ainda que fale o que pense, Emerson Sheik sabe quando deve ser contido e em quais contextos deve falar menos e dosar o tom e o teor da mensagem. Os palavrões disparados em campo com urgência frenética são substituídos em entrevista por sentenças curtas e bem pensadas, com longas pausas, encapadas por um sotaque carioca que, apesar de reconhecível em todo o Brasil, traz pequenos traços da vida em São Paulo, com alguns “manos” perdidos como interjeições.
“Tem comentaristas que numa mesa de jantar fazem críticas pesadas sobre um atleta, mas, na hora da transmissão, dizem que o atleta tem qualidade”, ele observa. “Pra isso certamente eu não tenho estômago. As pessoas precisam ser mais verdadeiras, não ficar em cima do muro. Acho que tem que ser político, sim, porque o mercado exige isso em qualquer que seja a profissão. Mas a verdade precisa prevalecer sempre.”
A verdade de Emerson vem das próprias experiências, da extensa vivência, mas também é ligeiramente amparada por uma ampla rede de contatos em vários meios, compostos tanto de anônimos quanto de famosos. “Eu conheço muita gente”, ele diz em mais de uma situação. Um dos exemplos vem do campo. Em um jogo contra o Palmeiras, Sheik se envolveu em uma polêmica com o zagueiro Lucio e, na saída do gramado, disse a repórteres que o palmeirense era um “mau caráter”. “Acho que eu não tinha o direito de falar aquilo naquele momento”, ele reflete. “Em um momento de cabeça quente lembrei de várias coisas que eu ouvi e acabei soltando na saída de campo. Realmente eu ouvi muita coisa feia [sobre Lucio].”
Ainda sobre o futebol, mas a respeito da política que revolve o esporte, Sheik também sabe demais, mas não se envolve. “Não tenho provas, por isso não posso falar muito nem dar nomes. Mas já ouvi tantas histórias a respeito da CBF, que se parte delas fosse provada, isso deixaria enojado e decepcionaria muita gente que tem o futebol como paixão”, ele afirma de maneira ponderada, muito pelo conteúdo da mensagem mas também pela atenção dada ao caótico trânsito do Rio de Janeiro.
Omitir nomes é um recurso usado à exaustão por Sheik – mesmo quando fica explícito a quem ele se refere, como no caso de Mano Menezes, ex-técnico do Corinthians, a quem ele culpa por sua saída da equipe. “Eu jogaria no Corinthians até os 100 anos, porque amo aquilo de paixão, mas já deixei claro algumas coisas, principalmente em relação ao treinador atual”, afirma. “Com ele, eu só jogo obrigado por contrato, senão não jogo. Nunca briguei com ele, acho que ele tem o direito de escolher os jogadores. Eu não concordo é com a maneira como ele conduziu. Foi, no meu ponto de vista, desonesta – e eu falo por mim, mas sei que um monte de gente concorda. As pessoas me conhecem porque eu falo a verdade e foda-se. Não gosto dele e não quero trabalhar com ele nunca mais na vida.”
Sheik se apresentou ao Corinthians novamente em 2015, para poder, enfim, definir os próximos passos e passes da carreira. “Fiz um acordo comigo mesmo: no dia em que um menino estiver me atropelando nos treinamentos, aí eu acho que é hora de parar”, ele reflete sem preocupações, o que não o impede de pensar no futuro. “Eu sempre coloquei na cabeça que assim que parar de jogar, vou morar nos Estados Unidos seis meses para poder aperfeiçoar o inglês. Talvez isso eu consiga fazer. De voltar a estudar, que era uma possibilidade, eu estou aos poucos desistindo.”
Ao explicar o porquê da ideia de não iniciar o ensino superior, Sheik faz um comentário que pode ser lido como uma reflexão sobre a própria vida. “Eu não tenho muita paciência, cara. Faria uma faculdade de educação física. Acho que não iria me enjoar muito. Você sai da sala, participa, faz outras coisas. Muda a rotina”, ele tenta explicar. “A rotina não me pega. A rotina me cansa. Eu gosto de fazer coisas diferentes.”
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