Leia a segunda parte da nossa comemoração de 40 anos do principal disco do músico
Henrique Inglez de Souza Publicado em 05/10/2018, às 11h24
A projeção do Zé Ramalho artista popular já havia se manifestado em registros anteriores. Por exemplo, na trilha sonora do filme Nordeste: Cordel, Repente e Canção (1975), de Tânia Quaresma, e num obscuro álbum em parceria com Lula Côrtes, o antológico Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol (1975). Este, aliás, ilustra bem diversos aspectos da bagagem do cantor e compositor – tem rock, jazz, folk, ritmos nordestinos e, claro, seu quê indivisível de psicodelia.
Boa parte da tiragem de Paêbirú e a respectiva fita máster foram perdidas em uma enchente no mesmo ano de seu lançamento. A tragédia tornaria as raras cópias remanescentes em itens hoje caríssimos, especialmente se em bom estado.
Ainda que sua carreira estivesse gerando frutos maduros, nada se comparou à homônima estreia solo de 1978. A suculência das músicas perfurou uma já estabelecida e um tanto padronizada MPB. Se realmente foi porque seus gametas se agruparam no som, não se sabe. O certo é que Zé Ramalho caiu de vez no gosto popular país afora.
Não foi fácil. Como tudo o que é novo, no início causou algum espanto e até repulsa. Porém, o triunfo alçou mais que um ou dois hits radiofônicos. Transformou o álbum homônimo em sua própria imagem e um totem da música brasileira.
Leia abaixo a parte final desta entrevista especial com o artista paraibano.
A quantas andava sua cabeça na segunda metade dos anos 1970?
Andava na velocidade da luz! Experiências psicodélicas, experiências orientais, experiências de ondas e viagens que minha geração fazia nesse tempo, desde que houvesse interesse. Não só na cabeça, mas também no aprendizado, tipo: macrobiótica, leituras cosmológicas, esclarecimentos espirituais, sem ter nada a ver com religião, e o perigo de alguns abismos que naturalmente ocorreriam nesse tipo de empreitada.
Todas as experiências foram válidas e, com certeza, deixaram marcas profundas em algumas canções, como “Avôhai”. Sem essas experiências, “Avôhai” não existiria. É uma música que surge desses caminhos mentais e existenciais.
“Avôhai” ainda carrega um ar místico-misterioso. Você arrisca um palpite para a tamanha força que a canção tem?
A forma como essa música chegou a minha cabeça foi única e especial. Nunca mais aconteceu algo parecido quando compus. Ouvi vozes na minha cabeça que diziam essa palavra, clara e nitidamente: “Avôhai, avôhai, avôhai...”. Era como se fosse uma revelação.
A experiência que tive comendo cogumelos alucinógenos também está na letra: “Amanita matutina, que transparente cortina ao meu redor”. Essa profundidade espiritual foi alcançada com tais substâncias da natureza. Senti a presença alienígena nos céus e vi a natureza a meu redor, bela e cheia de vida!
A palavra hoje é usada para me saudar quando faço caminhadas, diariamente. As pessoas me saúdam com ela, de todas as classes sociais. E essa é a única musica que fiz nesse estado, meio que telepático, meio que dimensional e emocionalmente profundo da revelação que recebi, vinda de muito longe.
Qual foi o maior perrengue que enfrentou com seu primeiro disco solo?
Foi com a imprensa da época. Depois que o disco ficou pronto, saiu e foi fartamente distribuído para todos os canais da mídia, os tais “críticos”, que eram funcionários dos jornais travestidos de intelectualidade, criticaram de maneira agressiva. Rejeitaram minha forma de compor, cantar e vestir, demonstrando também um forte preconceito contra o simples fato de eu ser nordestino. Foi uma coisa que eu enfrentei mesmo! Peitando e não me acovardando diante desses boçais.
Como é tocar as músicas de Zé Ramalho depois de tantas e tantas vezes, em turnês extensas, noite após noite? Fica cansado de tocá-las?
Não tem nada disso! Cada música dessas, eu canto pelo menos 100 vezes por ano, dentro dos shows que minha agenda realiza por todo o Brasil, há 40 anos. Ao contrário do que você pensa, sinto é prazer quando toco cada uma! E procuro fazer cada vez melhor. Cada plateia me vê dar o melhor de mim. Enjoo e cansaço não fazem parte dos meus shows.
Zé Ramalho é um disco que traz bastante reflexão, algo pouco visto nos artistas novos. O que poderia dividir conosco após esses 40 anos?
Hoje tudo mudou. Não gosto de dar conselhos. Acho que cada um tem sua experiência, e ela é valida para quem a está vivendo. Me refiro à confecção de um disco nos anos 1970, quando o mercado ainda era o do vinil... E como era bom gravar nesse tempo! Os estúdios tinham fitas magnéticas que viravam, e o trabalho prolongava-se madrugadas adentro, devido à delongada prática de voltar a fita e recomeçar.
Apenas digo que tudo o que vivi nesse disco é profundamente real e verdadeiro. Não há enganações sentimentais nem propostas agressivas. Meu objetivo, desde esse álbum, é oferecer ao público algo diferente: letras incomuns, sonoridades viajantes, e que tudo isso faça com que o ouvinte se deleite e se sinta fora do mundo, um pouco. É o espírito da psicodelia e do relaxamento humano necessário para viver.
Leia a primeira parte aqui:
http://rollingstone.uol.com.br/noticia/ze-ramalho-parte-i-quando-o-brejo-cruzou-poeira/
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