“Preta” e “bicha”, cantora questiona padrões de maneira plena e confiante; disco Remonta sai em setembro
Aline Oliveira Publicado em 30/08/2016, às 19h23 - Atualizado às 19h41
Liniker está atrasada. antes de sentar-se à mesa de um pequeno café no bairro de Pinheiros, em São Paulo, pede desculpas. “O metrô parou por um tempão”, diz enquanto tira a mochila das costas e ajusta o casaco alaranjado, vestido sobre uma camiseta longline branca e uma calça jeans escura. “O lado bom foi que encontrei o Rafa [Barone, baixista da banda que acompanha Liniker, Os Caramelows] e viemos combinando as músicas do show.”
A apresentação em questão está marcada para aquela mesma noite de maio. Por causa dela e de um show feito no dia anterior, Liniker de Barros Ferreira Campos adiou uma viagem a Araraquara, cidade onde nasceu e onde mora sua família. Tem sido assim desde outubro de 2015, quando a canção “Zero”, do EP Cru, foi postada no YouTube e alcançou mais de 1 milhão de visualizações em menos de uma semana. “Foi uma loucura! Do dia pra noite recebi um monte de ligação de jornalista, de parente que nunca tinha visto.”
Ela adoça o chocolate quente e conta a estratégia de divulgação das três canções já lançadas (“Zero”, “Caeu” e “Louise du Brésil”) e do álbum futuro, previsto para os próximos meses. “Publicamos aquelas músicas para sentir a repercussão mesmo, mas elas fazem parte de um trabalho maior, feito de forma conjunta entre os Caramelows e eu”, explica. “Já tinha as letras, mas procurei os meninos porque queria esse trabalho coletivo. Toco violão desde os 15 anos e escrevo desde os 16, e a maioria das canções do novo CD é como um filho. Só as três do EP são mais novas.”
A concepção do que é velho ou novo mostra-se relativa quando proferida por uma artista que acaba de completar 21 anos, em 3 de julho. Afinal, o que pode ser considerado recente – ou antigo – na vida de alguém cuja existência é, de fato, muito jovem?
A resposta para essa indagação pode estar na intensidade dos acontecimentos da trajetória de Liniker, sobretudo após janeiro de 2014, quando a artista saiu de Araraquara e foi morar em Santo André para estudar teatro e “se descobrir”. “Cheguei para fazer o teste na Escola Livre de Teatro com um violão na mão, sem conhecer ninguém”, relembra. Nesses poucos mais de dois anos, estudou, escreveu canções, tomou mais conhecimento do próprio corpo, trocou a calça comprida pela saia, colocou brincos, passou batom. Questionou padrões. “Foi um processo de reconstrução.”
Liniker mantém o mesmo tom sereno na voz quando fala sobre tais padrões e preconceitos. Ou melhor, sobre como é viver fora desses lugares. Sua figura está à margem dos princípios da heteronormatividade e Liniker, que em entrevistas passadas se autodenominou como “preta e bicha”, tem consciência disso. “Entender-me como uma pessoa fora do padrão foi uma construção dessa vivência em Santo André. Mais do ponto de vista da homossexualidade [do que de ser negro], porque venho de uma família de músicos negros na qual sempre foi discutida a questão da raça, e de que somos negros e maravilhosos. Por isso, a autoestima negra já estava construída e resolvida para mim”, discorre. Além de os tios tocarem samba, sua mãe, Angela, teve uma banda de samba-rock.
Liniker reveza-se entre pronomes masculinos e femininos ao falar sobre si. Quando pergunto como ele prefere que o uso seja feito neste texto, opta pelo feminino (“Acho mais amplo. Dizer ‘ele’ me deixa muito na caixinha do masculino”). “Todo dia eu acordo e trabalho isso, que sou biologicamente um homem masculino e vou usar meu batom, sim, porque é assim que me sinto linda. Acho que é isso que a gente tem que fazer, se sentir maravilhosa, passar três mãos de batom para ele fixar bem.”
É fim de maio e, desta vez, liniker está no horário. No carro, a caminho da Funarte, em São Paulo, ela combina com Barone o setlist do show que será feito no local. “O que a gente toca? Acho que poderíamos abrir com ‘Remonta’.”
Remonta é o título do primeiro disco cheio de Liniker e a definição do atual momento de sua vida. “Depois da desconstrução, de me mostrar crua, chegou a hora de me remontar”, afirma. Assim como a canção-título, muitas das faixas do álbum estão sendo tocadas nos shows. Todas de alguma forma falam de amor e entrega, quase sempre revelando um sofrimento. “Essas músicas são cartas que eu escrevi e não tive coragem de entregar. Eu nunca tive muita sorte com os boys com os quais me relacionei. Então, as letras têm, sim, uma mágoa, uma ferida aberta.” Black music e soul regem o trabalho. “Já era uma preferência mesmo. Gosto dessa malemolência, mas também amo uma música rasgada. Cresci ouvindo Whitney Houston, então, imagina, meu sonho era cantar ‘I Will Always Love You’ toda maravilhosa.”
Exaltar cantores negros é uma postura política para Liniker nos shows. Não demora muito para os fãs serem surpreendidos com um mashup das letras dela com as de artistas como Itamar Assumpção, Stevie Wonder e Naná Vasconcelos. “O negro ainda é inviabilizado na música. A MPB é toda branca. Sei que tem o [Gilberto] Gil, mas quando a gente fala de MPB só fala de artista branco”, analisa. Ela diz nunca ter tido dúvida sobre a profissão a ser seguida. “Sempre soube que trabalharia com música. Minha vontade de fazer teatro veio para explorar meu corpo, fazendo dele uma forma de expressão. Quando escrevo uma música, sei se ela será uma performance e como vou dançá-la. E acho que meu corpo tem espaço para viver essa liberdade de expressar o que vem, o que ‘bate’.”
Do ponto de vista pessoal, a negritude nunca foi motivo de questionamento para Liniker, mas ela faz questão de debater o tema. “Sempre tem aquela coisa de ‘ah, o negro dança bem, canta bem’. E a gente não é só entretenimento, a gente é potência política. Então, me inspiro muito em músicos que resistiram em sua época, como a Nina Simone, por exemplo. Ela não era só uma cantora, era uma pensadora do seu tempo. Coloco esse discurso nos shows para combater o padrão que está aí.”
Ao adentrar o pátio da Funarte, Liniker conversa com todos que a abordam. É fácil perdê-la em meio às centenas de pessoas presentes. Não há uma comoção em seu entorno e ela não adota uma atitude de artista-palestrante. É mais uma naquela pequena multidão. “Acho importante que o artista não tenha uma postura distante, que esteja com o povo e lute pelos direitos. Estamos aí para andar de metrô, andar na rua e reivindicar como todo mundo.” Antes do show, integra uma roda de conversa sobre branquitude e privilégios. Em sua fala, as palavras empoderamento, resistência e transformação são ditas algumas vezes. “Quando as crianças vinham falar que eu era um macaco, minha mãe vinha e me dizia o quanto eu era maravilhosa”, declara para uma plateia entusiasmada e atenta. Plateia, aliás, que se espreme para assistir à apresentação realizada dentro do teatro. O espaço está lotado. Quem chega depois tem de se contentar em ouvir a voz da cantora do lado de fora.
Liniker está adiantada. está à frente de uma sociedade cada vez mais retrógrada e dada a padrões, normas e preconceitos. Ela mostra total compreensão de seu papel social, seguindo no caminho da representatividade e da resistência. No mês de junho passou a integrar a Salada das Frutas, um coletivo de artistas que preza pela auto-aceitação e pela quebra de paradigmas relacionados ao gênero, composto por ela, os Caramelows, a cantora Tássia Reis e a banda As Bahias e a Cozinha Mineira.
No palco, Liniker é visceral. Quase como em um culto, ela faz valer a mensagem de autoafirmação. “Fico muito feliz quando mães mandam vídeos de seus filhos usando turbante, cantando as músicas”, conta. Para ela, o fato de usar turbante “é um processo de libertação para todo mundo, não é só coisa de menina”. “A gente está conseguindo mostrar para as pessoas que as diferenças também têm potência, têm força. E é bonito ver que muita gente se encontra no que escrevo.”
Um ritual feito no palco é a chamada “Benção do Lacre” (a gíria “lacrou” pode ser interpretada como “arrasou”). Nesse momento, ela e a banda se articulam a exemplo de um ato religioso, e pedem à plateia que levante as mãos e repita palavras de amor. De amor-próprio. “A gente fala para as pessoas repetirem para si mesmas que são lacradoras e maravilhosas. Para elas aceitarem o estado do lacre em sua vida, que esse estado de ‘maravilhosidade’ é onde devemos estar.”
A primeira benção ocorreu em fevereiro, no festival Rec-Beat, em Recife (PE), e é realizada em todos os shows desde então. “Empoderar-se é um exercício diário. Acho que a partir do momento em que nos empoderamos, a gente se fortalece de uma força que a gente já tem”, argumenta. “E isso é para não deixar essa sociedade achar que pode fazer qualquer coisa com a gente, falar que nosso cabelo é feio, que somos feias porque somos pretas, bichas ou gordas. Então, a benção do lacre é para empoderar as pessoas coletivamente.” Liniker agradece e se despede do público na Funarte. As pessoas se dispersam. Ressoam as palavras de resistência.
O atraso de Liniker está só no relógio.
Abaixo, assista ao making of do ensaio da Rolling Stone Brasil com Liniker.
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