O filme com Millie Bobby Brown, Henry Cavill e Helena Bonhan Carter estreou na Netflix na última semana
Yolanda Reis | @ysreis Publicado em 27/09/2020, às 18h03
Alterar a história de um romance na adaptação para os cinemas é um movimento arriscado. Ainda mais se for uma história adolescente cheia de mistérios (que, invarialvelmente, tentam transformar em algo "cool"). É só lembrar dos desastrosos Percy Jackson e o Ladrão de Raios, Eragon, e os últimos Harry Potter. Se ater à história original, muitas vezes, parece o ideal, como mostrou O Senhor dos Anéis ou Crônicas de Nárnia. Mais pontualmente, uma equipe resolve arriscar uma história diferente e acerta em todos os aspectos. Enola Holmes é um daqueles raros filmes que superam o livro.
Enola Holmes, lançamento da última semana na Netflix, é um filme adaptado de um livro de 2006, O Caso do Marquês Desaparecido (lançado no Brasil pela Verus Editora, do grupo Record) A obra, a primeira de seis da autora Nancy Springer, é uma fanfic do clássico inglês Sherlock Holmes. No universo alternativo, Sherlock e Mycroft Holmes têm uma irmã mais nova, Enola (ou Alone, de trás para frente), ainda adolescente.
Conhecemos a personagem no aniversário de 14 anos dela. A mãe, excêntrica, deixou alguns presentes com os criados para ela abrir durante a tarde. E nunca mais voltou. Um desses presentes é um livro de criptografia que a ajuda a achar dinheiro escondido pela casa - uma maneira dela conseguir viver sozinha. A menina, então, foge de casa para descobrir o paradeiro da mãe - sob ameaça de ir parar num colégio interno - e acaba trombando no caso de um marquês de 12 anos desaparecido - e, claro, ajuda o menino a fugir.
Em 2020, porém, a história ganhou uma cara totalmente nova pela Netflix. E muito, muito mais saborosa: a mãe (Helena Bonham Carter) também some, e deixa um livrinho criptografado para Enola (Millie Bobby Brown). Esse, porém, quase não é usado: ela tem muito mais a acrescentar do que a versão do livro.
A nova Enola é uma verdadeira transgressora (ao contrário da “versão original", que embora use calções em 1890, ainda tem lá suas muitas ressalvas típicas das mulheres da época, como evitar falar "anáguas" na frente de homens). A nova Enola atira de arco e flecha, escala árvores, joga tênis dentro de casa, decorou uma biblioteca de conteúdo, e luta jiu-jitsu maravilhosamente bem. Criada pela mãe, nunca teve muitos ensinamentos de etiquetas - mas é uma verdadeira selvagem com seus cabelos soltos e comportamento agressivo.
Por si só, as habilidades da personagem principal já dão um toque especial na obra. Mas Jack Thorne, ao criar o roteiro, decidiu incrementar e arriscar. Enquanto Sra. Holmes parece fugir sem propósito na obra original, a personagem de Helena Bonham-Carter mostra-se o verdadeiro exemplo feminino da época. É uma sufragista, e luta pelo direito do voto da mulher.
As mudanças no filme podem ser o primeiro passo para explicar sua recepção calorosa tanto da crítica, quanto do público. Enola ajuda a agradar aos mais novos - com seu jeitinho piadista, irreverente e brincalhão. A temática do sufrágio e a história muito bem desenvolvida chamam atenção daqueles mais velhos, principalmente em uma época que esperamos que um filme possa ser tão divertido quanto inteligente.
Inteligente, aliás, é uma palavra que define bastante vários aspectos de Enola Holmes. Principalmente a garota. Se nas páginas ela é esperta, nas telas ela é bastante enérgica e sagaz - honrando o nome da família. Sherlock, como escrito por Conan Doyle e replicado por grandes astros como Benedict Cumberbatch (na série da BBC) e Robert Downey Jr ( no filme de 2009) - ambas as produções disponíveis na Netflix - tem agora a face de Henry Cavill e uma detetive à altura para competir. Ele, o exímio detetive, é tapeado duas vezes pela irmã - enquanto ela, quase por instinto, usa os famosos métodos do irmão (como a atenção a detalhes e disfarces inteligentes) para resolver mistérios e… Bom, fazer o que bem entende.
É importante notar, porém, que alguns aspectos do livro fizeram bastante falta. Os criptogramas, por exemplo, ajudam a mostrar a inteligência da menina - mas aparecem poucas vezes. Os planos e deduções, também, são bem mais elaborados - embora ela não tenha encarado Sherlock Holmes...
Enola Holmes, então, deve agradar adolescentes que amam um filme divertido; aos fãs de Sherlock Holmes que permitirem uma nova aventura extra-oficial; àqueles que preferem algo com um fundo histórico ou, basicamente, qualquer um que ame um filme divertido
Se Enola Holmes é um filme bom pela história, é um filme ainda melhor pela execução. Desde o diretor, passando pelos produtores, equipe de efeitos visuais, roteiristas, elenco, diretores de arte - tudo é harmonioso e divertido.
O maior destaque deve ser para Millie Bobby Brown. A atriz explodiu ao participar, como Eleven, de Stranger Things, durante três temporadads. Mas, talvez pelo teor não verbal da personagem da série, principalmente no começo, o potencial dela pareceu explodir só no longa metragem. Em Enola Holmes, a atriz entrega um espírito impressionante e presença incrível.
A personagem conversa muito com as câmeras. E as expressões de Brown transmitem todo o sentimento que precisava. É divertida, irônica, preocupada, irritada. Uma ótima heroína juvenil. E um ótimo exemplo de quem a atriz é por ela mesma.
E, embora o filme seja pela família Holmes, a Sherlock - e, consequentemente, Henry Cavill, sobram o papel secundário. Não vemos muito das peripécias geniais do detetive inglês, mas, nas poucas cenas que aparece, o ator demonstra o potencial de ser o detetive nos seus dias mais velhos - já mais sentimental, querendo criar Enola, gostando de uma menina sendo que não gosta de ninguém no geral.
Já que Brown ocupou-se brilhando, a grandíssimos atores sobraram papeis bem divertidos, mas não tão grandes. Muitas vezes, é um artifício para ter peso no elenco e dar mais nome ao um filme. Mas não aqui, pois cada personagem tem sua importância e personalidades bem marcadas, mesmo quase tem tempo de tela: Eudoria, a mãe esquisita dos Holmes (Helena Bonham Carter); Mycroft Holmes, o chato dos chatos (Sam Claflin); o detetive quase inútil Lestrade (Adeel Akhtar), a professora Harrison (Fiona Shaw)... Todos eles conhecidos de Hollywood - num filme cheio de surpresas para quem assiste e os reconhece imediatamente.
Completa o quadro, em harmonia completa, o diretor Harry Bradbeer. Com pouco mais de 25 anos de carreira, sempre focou nas telinhas, principalmente séries. Recentemente, chamou atenção ao dirigir alguns episódios de Killing Eve e Fleabag. Mas Enola Holmes é sua primeira vez em um filme feito com o objetivo de ir além da televisão. E ele mostrou que pode.
Desde a direção aos atores, até a escolha de divertidos ângulos de câmera - que conversam bem com a quebra da quarta parede constante de Enola, até a escolha dos efeitos visuais divertidos, tudo flui bem em Enola Holmes. Seu novo filme poderia ser o filho perdido da câmera de Tim Burton, humor de Wes Anderson, leveza de Kirk Jones, e uma versão infantil do Deadpool de Tim Miller: cheio de piadinhas, brincadeirinhas, e uns momentos violentos sem aviso nenhum.
Enola Holmes é um daqueles filmes divertidos para assistir num fim de tarde. E de novo, no mês seguinte, porque foi legal da primeira vez. E tantas outras vezes, nos anos seguintes - pois é tão dinâmico que não vai cansar.
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