- Pôster de 'Yesterday', com Himesh Patel (Foto: Divulgação)

Filme Yesterday mostra que, ainda bem, os Beatles não existem mais [ANÁLISE]

Produção dirigida por Danny Boyle, Yesterday é uma carta de amor ao Quarteto de Liverpool sem a presença de John, Paul, Ringo e George

Pedro Antunes Publicado em 01/09/2019, às 12h00 - Atualizado em 21/12/2022, às 11h19

Yesterday (2019) é uma carta explícita de amor aos Beatles. Derrama doçuras a cada minuto, a cada referência, a cada música apresentada. Danny Boyle (Trainspotting), o diretor, faz um trabalho artesanal de dedicar cada ângulo, figurino, escolha de palavras à Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr.

Yesterday, o filme dos Beatles sem os Beatles, é feito para adultos chorarem. E também nos ajuda a festejar que os Beatles não existem nos dias de hoje. E, calma lá, isso não quer dizer que a obra do grupo de Liverpool deveria ser esquecida ou completamente apagada da existência, tal qual na mirabolante história contada por Boyle no filme que chegou recentemente aos cinemas brasileiros. Longe disso.

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Mas, antes, é importante entender do que trata Yesterday. O filme apresenta Jack Malik (divertidamente vivido por Himesh Patel), um músico frustrado que, depois de mais um show para meia dúzia de gatos pingados, decide abandonar a carreira artística. Até que ocorre um apagão em escala global (sem qualquer explicação sobre o seu motivo), ele é atropelado por um ônibus e, quando retoma a consciência, percebe que vive em um mundo no qual os Beatles realmente não existiram.

Boyle é inteligente e ágil a mostrar como Malik, aos poucos, descobre que uma busca no Google pelo nome da banda resulta somente em artigos científicos sobre besouros e percebe como a sociedade tem ligeiras diferenças da qual vivia até pouco tempo antes - talvez a melhor notícia do desaparecimento dos Beatles sejam também a inexistência do Oasis, mas isso é motivo para outro texto.

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Malik decide, não tão benevolente quanto ele se engana a ser, gravar canções dos Beatles como se fossem dele. Em pleno 2019, ele canta músicas como "Back To U.S.S.R.", criada quando ainda existia uma União Soviética, curiosamente. Também quebrou rachou o coco para lembrar todos os versos  da melancólica "Eleanor Rigby", e viajou até Liverpool para se "inspirar" nos lugares reais retratados em canções dos Beatles, como a avenida Penny Lane e os Strawberry Fields e tal.

As músicas dos Beatles são apetitosas em qualquer momento do espaço e do tempo, por isso eles são considerados a maior banda de todos os tempos (guardem seus chiliques para depois, fãs de Led Zeppelin, Rolling Stones ou de qualquer outra banda gigante que também transformou o rock). Difícil, mesmo, é vê-las construídas e consumidas pelo tempo no qual vivemos.

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Sim, estou falando do estado da música - e, ei, esse não é um tratado virginal sobre como era o mercado nos anos 1960 ou coisa do tipo. Os Beatles só se tornaram os Beatles porque eles entraram no jogo, na máquina de fazer dinheiro, adotaram o pop antes de romperem com tudo na segunda metade da década. Fizeram toneladas de dinheiro (gastaram boa parte dele, também, é verdade, em péssimas decisões financeiras) e deram um novo tamanho para o fanatismo com a Beatlemania. Mas havia algo mais verdadeiro ali, de certa forma.

Em dado momento, mostrado no trailer e, portanto, não pode ser considerado spoiler, Ed Sheeran se intromete no processo de composição de Malik de "Hey Jude". Por pressão do astro pop, da empresária toda-poderosa e da indústria, a canção se transforma em "Hey Dude". Risos nervosos, eu sei.

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Acontece que o mercado fonográfico passou por intensas transformações, principalmente na chegada da era digital, e nenhum (nenhum mesmo!) passo é dado dentro dessa indústria mainstream sem o apoio de time enorme de marketing, redes sociais, branding, entre outros termos pavorosos.

São cenas angustiantes nas quais Malik é questionado sobre suas opções de figurino (sempre inspirado nas roupas usadas pelos Beatles) ou tem as ideias dele para capa do álbum de estreia dilaceradas (também inspiradas em imagens icônicas, como dos discos Abbey Road, White Album, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band e por aí vai).

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Para quem perdeu a fé na honestidade da música pop, ver os Beatles dilacerados por essa indústria é aterrorizante, de fato. Possivelmente, se fossem lançados hoje, os Beatles certamente não teriam alcançado o patamar atingido quando a banda chegou ao fim, em 1970. Provavelmente jamais teriam saído da fase inicial, de hits fáceis e de refrãos cantaroláveis sobre segurar a mão da pessoa amada.

O certo é que não existe - dentro dessa música pop mainstream, é bom sempre lembrar - a espontaneidade musical e artística, embora há quem acredite nela, tal qual acredita em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e no choro dos integrantes do BTS a cada novo show para estádios lotados.

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O que Yesterday mostra é que os Beatles foram gestados por um momento muito específico da história, quando o rebelde e artisticamente arisco John Lennon montou sua primeira banda, formou uma parceria de vida com Paul McCartney e viu as chegadas do novinho George Harrison e do bom baterista Ringo Starr.

Os Beatles tomaram o mundo porque, explique como quiser, era o momento perfeito para a sua existência. O mundo (e os Estados Unidos) estava de braços abertos para a euforia inicial, abertos às experimentações, entregues às pirações estética-sonoras do fim.

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É claro que há buracos em Yesterday na forma como o mundo é hoje sem a existência do Quarteto de Liverpool, porque a indústria não seria como a conhecemos se Paul, John, Ringo e George não tivessem passado aqueles anos 1960 juntos, fazendo música e brigando muito por elas também. Mas isso é fácil deixar passar, tudo bem.

Yesterday é uma emocionante viagem por um universo interessante no qual conhecemos parte dele, mas não completamente. Nele, não existe Coca-Cola, nem cigarros!, mas a vida segue praticamente igual à nossa. Cada nova música dos Beatles apresentada por Malik é um convite à descoberta de novos sabores para as mesmas. 

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E a verdade é que a vida seria imensamente menos fascinante se os Beatles não tivessem existido e, suas canções, viessem de um cantor solo, amparado por um time de especialistas de comportamento de consumidores da música por streaming, cujo único disco solo une cronologicamente músicas "I Want Hold Your Hand" e "She Loves You" a "Nowhere Man" e "The Long & Winding Road", como se fossem todas da mesma safra. O mundo seria realmente terrível, mesmo, se os estádios cantassem, a plenos pulmões, "hey, duuuuude".  

*Pedro Antunes é editor-chefe da Rolling Stone Brasil, chorou duas vezes ao assistir Yesterday e depois disso voltou a ouvir os discos dos Beatles copiosamente

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