Para artistas que cantam abertamente sobre fragilidade e instabilidade psicológica, a situação pela qual o mundo passa hoje pode ser uma fonte perigosa de criatividade
Igor Brunaldi Publicado em 02/06/2020, às 06h00
É absolutamente incoerente, e até mesmo imprudente, negar que o mundo externo tem impacto direto no universo interno que cada um de nós carrega dentro de si. Em tempos de pandemia, isolamento e provas escancaradas (além de fatais) de que o racismo está e sempre esteve sim enraizado no sistema sociopolítico mundial, esse impacto tem se mostrado especialmente brutal.
A música como um todo, por ser uma expressão artística autêntica (e na maioria das vezes pessoal), nunca tarda em refletir as principais características da época na qual foi produzida. E não vai ser diferente agora.
Apesar de tanta indignação e revolta poderem ser usadas como gasolina criativa para compositores de todos os gêneros musicais, as consequências no psicológico podem vir como combustível indesejado para incêndios internos nos quais angústia, ansiedade e depressão já queimam como lenha empilhada.
Claro que todo artista, em maior ou menor escala (assim como qualquer pessoa minimamente ciente da situação do mundo), vai sentir esses efeitos na complexidade da própria mente.
Com isso em mente, me peguei pensando especificamente sobre como tanto caos externo pode influenciar o cenário do trap emo, devido a todo o caráter psicologicamente íntimo, exposicional e emocional dessa vertente relativamente nova do hip-hop.
Mas para isso, é necessário entender os pilares que sustentam esse gênero, assim como conhecer os principais representantes.
Apesar de parecer ter menos força e marcar menos presença nos dias de hoje, o emo nunca morreu. Ou, caso tenha morrido, foi enterrado e serviu de adubo para o florescer de inúmeras novas plantas híbridas.
Para manter as metáforas biológicas, esse gênero, que atingiu o ápice da popularidade no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, basicamente imitou uma ameba e realizou um processo parecido com o da mitose, diferente apenas no fato de que as multiplicações consequentes não saíram idênticas ao material original.
E foi dessa difusão, mitose musical ou adubagem criativa, que nasceu o trap emo. Da necessidade de inovar e diversificar a sonoridade que acompanha letras extremamente sentimentais. Da necessidade de abrir a porta para rappers também demonstrarem fragilidade ao som de beats de trap.
Pessoalmente, como alguém que nunca conseguiu cultivar aquela almejada franja escorrida e oleosa, e era contido demais para extravasar no visual, com correntes e acessórios brutos repletos de tarrachinha, o emo sempre foi algo com uma representatividade muito significante no interior.
Muito mais presente como uma tristeza intrínseca no estado de espírito do que na ausência constante de um sorriso estampado no rosto, sinal externo esperado por quem não entende nada sobre o assunto. Sorrir nem sempre expressa alegria, sabia?
É aqui que mora a parcela emo do trap emo.
No conceito. Na temática sombria, no descontentamento, na inquietude interna desesperadora, no cansaço físico e mental de sentir demais, até a chegada no ponto de exaustão de não sentir mais nada. Na presença do vazio que desafia as leis da física e exerce um peso esmagador na alma humana.
Ao mesmo tempo que nessa intersecção sonora dois gêneros distintos se fundem para criar algo inédito, esse ponto de encontro temático entre o trap e o emo é também onde mora o perigo.
Estar disposto a cantar abertamente sobre pensamentos suicídas, sobre uso irresponsável de drogas e uma vida de excessos é se jogar à sociedade na forma de um livro aberto. É não ter medo de demonstrar sensibilidade, fragilidade e rupturas.
Para quem tem coragem e se dedica a escrever letras sobre assuntos pessoais delicados, vivemos em uma época que pode ser vista como um prato cheio. Uma pandemia, isolamento social, assassinatos com motivações racistas, revolta e indignação.
Psicológicos são diariamente bombardeados por estímulos externos, que então podem ser transformados em reflexões pessoais de cunho até medidativo. Por fim, podem virar versos terapêuticos, rimas carregadas de dor que serão ouvidas por milhares de pessoas que, por sua vez, se identificarão e compartilharão dessa dor.
Por outro lado o peso insuportável de problemas psicológicos já existentes se acentua nesses tempos de isolamento social, assassinatos com motivações racistas, revolta e indignação. E quando o peso ultrapassa o estado de ser insuportável, uma vida corre risco.
Apesar de estar ainda nos primeiros dez anos de existência, desde o surgimento no SoundCloud no começo da década de 2010, o trap emo já carrega na história do gênero a morte de artistas muito jovens, bem mais jovens do que o infame "Clube dos 27" do rock.
O rapper Juice WRLD é o caso mais recente. Nascido Jarad Anthony Higgins, morreu em 2019, seis dias depois de ter completado 21 anos, devido a uma overdose de codeína.
Ele foi responsável pelo hit "Lucid Dreams", lançado em 2018 e hoje com mais de quinhentas e dez mil visualizações no YouTube, música na qual cantou sobre tomar remédios para se sentir bem.
Dado esse exemplo do Juice WRLD, é essencial exaltar o impacto que outros artistas do trap emo tiveram e têm exercido em toda a indústria fonográfica, além de evidenciar o futuro brilhante e promissor que apresentam pela frente.
Para ilustrar a variedade e criatividade abundantes presente no gênero, aqui vão quatro indicações de rappers que ilustram muito bem todos os rumos que o trap emo pode tomar.
O rapper sueco Jonatan Leandoer Håstad, mais conhecido por Yung Lean, é o precurso do tão conhecido termo "sad boy", além de ser responsável pela popularização de uma estética muito presente em gêneros como dream pop e indie.
Leandoer ganhou destaque em 2013, com a música "Ginseng Strip 2002". Na época, nem a canção nem o intérprete foram levados muito a sério, e ele virou um tipo de meme. Com o tempo, porém, ele usou isso a seu favor, virou o jogo e mostrou ter talento e visão para sonoridades que viriam a ser usadas por artistas mainstream.
Hoje, "Ginseng Strip 2002" é vista como uma das primeiras músicas da história do trap, e sem ele, os músicos citados em abaixo ou não existiriam, ou teriam seguido um rumo bem diferente na música.
Com 23 anos, Yung Lean tem uma carreira aclamada e surpreendente prolífica, composta por quatro álbuns: Unknown Memory (2014), Warlord (2016), Stranger (2017) e Starz (2020); etrês mixtapes: Unknown Death 2002 (2013), Frost God (2016) e Poison Ivy (2018).
Durante as gravações de Warlord, enfrentou vício em cocaína, xanax e lean, e sofreu uma overdose que o obrigou a se internar.
Em 2019, Yung Lean recebeu a medalha Bram Stoker de conquista cultural, concedida pelo grupo de estudos filosóficos da universidade Trinity College, em Dublin.
Com certeza o artista mais popular de todos os mencionados aqui. Aos 25 anos, é um dos principais nomes do trap mundial, com apenas dois discos lançados. Luv Is Rage 2 (2017), álbum de estreia de Lil Uzi Vert, chegou à primeira posição do top 200 da Billboard, e tem na tracklist o single "XO Tour Llif3", responsável pela ascensão do rapper ao mainstream.
Ele também participou de "Bad and Boujee", hit do trio Migos, lançado em 2016, e fez uma participação especial e inusitada na música "Igor's Theme", faixa de abertura do disco IGOR (2019), do Tyler, The Creator.
Em março deste ano, lançou o aguardado segundo álbum, Eternal Atake, com nada menos que 18 faixas. Como se não fosse o suficiente, lançou pouco depois a versão deluxe do disco, chamada LUV vs The World 2, com mais 14 faixas inéditas além das 18 anteriores.
Outra fatalidade que mancha a história do trap emo. Gustav Elijah Åhr morreu em 2017, duas semanas depois de completar 21 anos, após uma overdose acidental do opióide fentanil e bem no começo de uma ascensão de proporções e velocidade inesperadas.
Apesar da vida e carreira curtas, Lil Peep deixou um extenso legado musical, que tem sido lançado com uma certa constância, com a aprovação e permissão da mãe dele, Liza Womack. Em vida, lançou a aclamada mixtape Hellboy (2016), e o disco de estreia Come Over When You're Sober Pt. I (2017). A segunda parte do projeto, que já havia sido gravada, foi lançada no ano seguinte, depois da morte dele.
Em 2019 chegou às plataformas de streaming uma coletânea de músicas inéditas, intitulada Everybody's Everything, nome dado também ao documentário sobre a carreira dele, lançado em dezembro do mesmo ano, disponível na Netflix.
Estética e sonoramente, ele é o que mais se aproxima do "emo tradicional" entre os artistas destacados aqui. Além dos temas nas letras, como depressão, término de relacionamento e uso de drogas, Gus mixava os próprios vocais de uma forma bem específica, para deixá-los próximos à sonoridade clássica de vozes do pop-punk, como de Joel Madden, do Good Charlotte.
Além desse destaque para o vocal, muitas músicas dele contam com a presença de riffs ou solinhos de guitarra que despertam a nostalgia em qualquer um que tenha passado minimamente por uma fase emo.
Por último, mas não menos importante, nosso próprio representante nacional. Yung Buda se destaca por acrescentar à mistura de angústias e tristezas, das dificuldades de crescer um menino negro em um mundo racista e opressor, a nostalgia de uma época passada, porém não muito longínqua, na qual o controle de um Nintendo 64 ou PlayStation 1 serviu de melhor amigo para muitas crianças.
Adicione no meio disso incontáveis referências a animes e drift, e beats sombrios como pano de fundo (por vezes até macabros, mas que se tornam surpreendentemente animados), e você tem como resultado uma discografia com várias camadas a serem exploradas, de um músico plural que se permite falar abertamente sobre problemas enfrentados por millenials, assim como paixões estéticas e afinidades culturais dessa geração.
No fim de 2019, lançou True Religion, disco que compila faixas precisas para concretizar bem toda a visão que Yung Buda criou como artista até agora, e deixa a porta aberta para um futuro promissor.
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