Elza Soares e Leticia Novas (Letrux) no Festival Guaiamum Treloso Rural - Tsuey Lan Bizzochi/Divulgação

Guaiamum Treloso 2018: Elza Soares canta Chico Science e Letrux se entrega no festival “rural”

Realizado no bairro de Aldeia, em Camaragibe, na região metropolitana do Recife, o evento casou a frenesi com música atual brasileira e a calmaria da mata

Igor Brunaldi, de Camaragibe Publicado em 22/01/2018, às 18h10 - Atualizado em 24/01/2018, às 16h53

No último sábado, 20, o festival Guaiamum Treloso Rural (idealizado por Felipe Cabral) e os seres da mata (como são chamados todos os envolvidos, desde o pessoal da produção até os que foram para curtir) ocuparam em peso a Fazenda Bem-Te-Vi, lugar que no passado foi considerado território sagrado, e se localiza no bairro de Aldeia, em Camaragibe, antiga morada dos índios Camará, na região metropolitana do Recife. O evento, que evoluiu de um bloco de carnaval de rua, reuniu cerca de seis mil pessoas na fazenda e exaltou o folclore nordestino tanto quanto a natureza e a produção artística da região.

A riqueza cultural começa pelo nome, um quebra-cabeça de referências: guaiamum é uma espécie de caranguejo enorme, azul e imponente que habita áreas em que o mangue se encontra com a mata; treloso é sinônimo de travesso e também, como muitos gostam de lembrar, nome de uma bolacha recheada que marcou a infância de várias pessoas. A palavra “rural”, apesar de não precisar de explicação, diz muito sobre o evento, que trata com paixão todo o ambiente que, com o mesmo carinho, recebeu as estruturas vívidas e coloridas do festival.

A chuva que precedeu o dia do GTR, apesar de assustadora, não foi suficiente para intimidar os seres da mata. Como milhares de guaiamuns, os espectadores caminhavam de um palco para o outro, entre a grama e os vestígios de lama deixados pelo temporal do dia anterior, mas já levemente secos graças ao calor do sol pernambucano. Estruturas de bambu espalhadas pelo enorme campo formavam os quiosques que vendiam garrafas de água por R$ 2 e latinhas de cerveja por R$ 6. Latas de lixo por todos os cantos reforçavam a preocupação com o bem estar do ambiente. Equipes de bombeiros espalhadas pela multidão e áreas com cabanas voltadas para o descanso, reforçavam a preocupação com o bem estar do público.

Shows

As atrações foram divididas em três palcos, chamados “Bem-Te-Vi”, “Skol” e “Selvagem”, além de haver um espaço nomeado “Silent Disco”, no qual as pessoas colocavam fones de ouvido e curtiam “silenciosamente” o som de vários DJs.

Os dois primeiros palcos, estruturas de grande porte, receberam artistas maiores ainda, como Elza Soares, Nação Zumbi, Cidadão Instigado, Metá Metá, e nomes mais recentes que vêm ganhando cada vez mais destaque, como Letrux, Baco Exú do Blues e Francisco, El Hombre. O palco Selvagem, que se encontrava tímido na metade do caminho entre o Bem-Te-Vi e o Skol, por sua vez, projetou o som de bandas menores em seguidores, mas tão potentes quanto as que se apresentaram nos palcos principais. Entre as atrações estavam Igor de Carvalho, Frabin e Musa Híbrida.

Uma grande surpresa do último palco mencionado, o Selvagem, foi o quinteto potiguar de punk chamado Demonia. As cinco integrantes transformaram o pequeno espaço em que tocaram em um megafone para gritar sobre o machismo na música (e na sociedade em geral), emoções cruas e também sobre a misteriosa e temida raça dos reptilianos. Como tapas na cara sonoros, os instrumentos e a voz judiavam dos amplificadores, como uma boa banda punk deve fazer (sem mencionar a atitude da baterista, que tocou com um dos pés enfaixado, depois de ter pisado em um pedaço de vidro que abriu um belo corte na sola do pé na semana anterior à do show). A banda promete lançar seu primeiro single e clipe, “Reptilianos Malditos”, este ano.

O palco Bem-Te-Vi, por sua vez, recebeu o show de comemoração dos 20 anos da banda cearense Cidadão Instigado. A apresentação, muito aplaudida e instantaneamente elogiada pelos fãs, contou com uma produção cautelosa, envolvendo muita iluminação, figurinos excêntricos e as transições inesperadas e quebras de ritmo repentinas características do som intenso do grupo.

No mesmo palco, se apresentou aquela que é uma das maiores lendas vivas da música nacional. Elza Soares abençoou os ouvidos de todos que compareceram. Com uma voz icônica, presença marcante e um figurino brilhante e futurista, ela apresentou seu show A Voz e a Máquina, abrindo propositalmente com o hino imortalizado pela voz de Chico Science, e acompanhado pela voz de todos: “Computadores fazem arte/ Artistas fazem dinheiro”, enquanto, ironicamente, sintetizadores e drum machines preenchiam o campo aberto. Durante toda a apresentação, nos intervalos entre as músicas, Elza fazia questão de sempre pedir barulho, perguntar onde estavam as mulheres e disseminar mensagens de força para uma juventude que só tem a aprender com ela. Todas as músicas, guiadas por batidas eletrônicas e solos de guitarra, fizeram os seres da mata gritar e, acima de tudo, dançar, quase que como em uma balada conceitual regida pela mulher do fim do mundo em seu trono.

A cantora, que se prepara para lançar uma biografia, e que também será homenageada com um filme, um musical e uma exposição, falou em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil sobre o lugar de onde tira forças pra cantar e a origem de tanto empenho à arte. “A gente está passando por um momento muito difícil no país. Tá na hora de todo mundo gritar e falar. O que me incomoda muito é o silêncio. Eu vejo o povo muito calmo. Se o povo quiser, ele muda isso.” Ela ainda completa dizendo: “Eu não estou muda ainda, graças a Deus. Eu estou viva, e enquanto eu estiver viva e tiver voz, ela continua. A música faz parte da vida, pra mim, ela é a medicina da alma”. Nos resta apenas absorver essas palavras, digerir o show, e esperar pelo próximo álbum, Deus é Mulher, previsto ainda para esse ano.

Outra atração que levou uma multidão ao palco Bem-Te-Vi foi o rapper Baco Exú do Blues, que vem colhendo o sucesso do álbum Esú, lançado no ano passado. Infelizmente, por motivos ainda não muito claros, ele ficou sem voz logo no começo, e não conseguiu cantar. Para compensar, os companheiros de palco comandaram o show, tomando o lugar do rapper nas rimas e, junto às batidas de trap, animaram todo mundo que fez questão de ficar até o último minuto da apresentação. Antes de subir ao palco, o rapper conversou com a Rolling Stone Brasil sobre a expectativa e a pressão colocada nos artistas, dizendo com força que “tudo que eu faço é padrão Baco. Não me imponha padrão”. Quando questionado sobre planos para o ano que começou, o baiano conta acreditar que “o disco [Esú] não foi completamente entendido ainda. O meu trabalho em 2018 vai ser explicar o disco.” No domingo, 21, Baco publicou uma foto do show no Instagram, e na legenda pediu desculpas aos fãs pela "falta de voz".

Duas apresentações que prometiam muito, e com certeza não decepcionaram, foram os shows das bandas Francisco, El Hombre e Letrux. Cada uma se apresentou em um dos palcos principais, e, inicialmente, estavam agendadas para tocar em horários diferentes, mas infelizmente, por causa de atrasos no palco Bem-Te-Vi, acabaram tocando simultaneamente, deixando o público dividido.

De um lado da fazenda, no Bem-Te-Vi, Francisco, El Hombre fez uma já esperada apresentação frenética, regada a ritmos latinos, requebrados e muito suor. Do outro lado, no palco Skol, logo após um número clássico do Nação Zumbi, Letícia Novaes fez uma apresentação surpreendente com seu novo projeto, Letrux, que lançou o aclamado álbum Em Noite de Climão em 2017. No palco, Letícia deixou claro que não está no mundo da música pra ser mais uma. “Tatua na tua pele que eu não vou passar batida na festinha”, ela canta na música “Vai Render”, que gerou uma tempestade de aplausos. O instrumental intrigante do álbum parece ainda mais vivo e interessante ao vivo, abusando de sons sintéticos e de timbres psicodélicos e fortes de guitarra. Mas o que realmente se destacou foi a presença de palco da carioca: movimentação corporal teatral, performática, sedutora e sincera. Letícia caía ao chão, levantava e caminhava pelo palco com confiança e paixão. O show não foi sensual. Foi sexual.

O festival inaugurou a temporada de eventos pré-carnaval, no sábado, 21. No domingo, 22, a cidade já respirava folia, glitter e cultura.

O jornalista viajou a convite da produção

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