Como a edição do programa e a tentativa de maquiar os fatos sedimentam a irrelevância atual de Roberto Carlos
Paulo Cavalcanti Publicado em 07/01/2015, às 20h59 - Atualizado às 20h59
A recente exibição do especial Tim Maia – Vale o que Vier, na Rede Globo, trouxe à tona uma triste faceta de Roberto Carlos, antigo Rei da juventude, atual censurador de biografias. O programa, uma versão reduzida do filme Tim Maia, de Mauro Lima, maquiou de forma descarada uma antiga rusga entre Roberto e Tim – e ainda que não se saiba de quem partiu a ideia de alterar a história, é impossível não lembrar de episódios marcantes da vida de RC, como a negativa à reedição do disco Louco Por Você (1961), o primeiro da carreira dele, e a infame proibição da biografia Roberto Carlos em Detalhes, do pesquisador Paulo Cesar Araújo. Mas, para tentar compreender o Roberto de hoje, é preciso olhar para o Roberto de meio século atrás.
Discografia comentada: Tim Maia, o groove do síndico.
Roberto Carlos está na televisão há quase 50 anos. Em agosto de 1965, ele estreou em Jovem Guarda, revolucionário programa semanal musical da TV Record que comandou ao lado de Wanderléa e Erasmo Carlos. Por um tempo, o cantor foi artista exclusivo da emissora paulista. No começo da década de 1970, Roberto foi liberado do contrato com a Record e pôde se apresentar em outros canais. Tudo mudou em 1974, quando ele assinou exclusividade com a Globo, para basicamente gravar programas especiais a serem exibidos no final de cada ano. Se atualmente estes programas são recebidos com desdém e bocejos, por serem considerados previsíveis e “chapa branca”, por muito tempo, mantiveram um nível de excelência. Nos anos 1970, ainda em plena forma, o cantor levou a esses shows nomes lendários do panorama artístico brasileiro. Na década de 1980, até tentou se atualizar, trazendo astros que surgiram naquela época, como a Blitz e o Ultraje a Rigor.
Hoje, depois de todo esse tempo, Roberto ainda preserva o acordo de exclusividade com a Globo. Qualquer aparição dele em outra emissora precisa ser negociada previamente, como aconteceu em 1995, quando ele apareceu no talk show de Jô Soares, que ainda estava no SBT. Quando Roberto dá entrevistas espontâneas a amigos como Amaury Jr., a Globo geralmente não vê com bons olhos.
O ano de 1985 marcou talvez o último momento em que Roberto conseguiu lançar algo realmente relevante, quando ele emplacou o hit “Caminhoneiro”. Eram dias em que RC ainda conseguia dialogar com os artistas do rock brasileiro que faziam sucesso. Mas ele logo seria suplantado em termos de vendagem e popularidade pela nova safra de artistas sertanejos românticos, como Leandro e Leonardo e Chitãozinho e Xororó.
Justamente no especial daquele ano, que foi ao ar no dia 27 de dezembro, Roberto recebeu Tim Maia, que a esta altura tinha se tornado amigo distante e desafeto constante. Juntos, cantaram “Pede a Ela”, canção romântica e exagerada de Carlos Colla e Ed Wilson. Os caminhos de Roberto e Tim não se cruzaram mais depois disto.
Roberto, como sempre, seguiu com seu padrão de memória seletiva, incluindo nesse modus operandi amizades e colaborações musicais. Já Tim, até morrer, em 1998, eventualmente alfinetava o ex-amigo roqueiro da Tijuca, com quem tocou na banda The Sputniks no final dos anos 1950. Vale lembrar, no entanto, que Tim sempre brigou com todo mundo, se debatendo com inimigos reais e imaginários.
Tim se foi, enquanto Roberto levou em frente uma carreira de pouca inventividade, pontuada por um estranhamento com a imprensa e os meios de comunicação em geral. Ele quase se queimou até mesmo com a Globo. Em 2001, estava descontente com a emissora e ameaçou debandar ao negociar um Acústico para a MTV. Roberto gravou para o canal paulistano, mas logo depois disso acertou as diferenças com a Vênus Platinada. A MTV ficou a ver navios e não conseguiu levar o especial ao ar, tendo como consequência um enorme prejuízo juntos aos patrocinadores. Quando o Acústico finalmente foi lançado em DVD, se revelou morno e sem direção. Não era, nem de longe, o renascimento artístico que todos esperavam.
Se a parte musical manteve uma linha capenga, as relações institucionais do antigo Rei não tiveram constância – apenas pioraram. A proibição da venda, em 2007, do livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar Araújo, já foi comentada à exaustão e jogou Roberto no hall da fama de artistas que perderam a credibilidade. O artista se incomodou com muita coisa na obra do pesquisador: o acidente do qual foi vítima quando criança e que lhe custou uma perna, os casos amorosos que ele teria tido com artistas como Maysa e Sonia Braga. Outro ocorrido relatado na obra, que foi o reencontro dele com Tim Maia, reaparece agora como um fantasma para assombrá-lo novamente.
Muitos anos depois da parceria no The Sputniks, Roberto e Tim se reencontraram, no final da década de 1960. Roberto já estava consagrado e era o nome de maior sucesso do Brasil. Já Tim tinha passado anos nos Estados Unidos. Lá, não ganhou nenhum dinheiro, e o pior, passou um tempo na prisão. Mas voltou cheio de malandragem e havia se tornado uma verdadeira enciclopédia da soul music, prestes a mudar a música que era feita por aqui.
Foi nesse período de vacas magras que Tim buscou o amigo de juventude. Conta-se que Roberto recebeu o futuro soulman com indiferença e bastante soberba nos bastidores de um show. Depois de fazer Tim esperar durante um bom tempo, mandou um de seus empregados “dar um dinheiro para o Tião” – o lacaio, então, teria amassado uma nota e jogado para o cantor. Tim, naturalmente, se sentiu humilhado. A retomada do contato entre os dois, no entanto, não acabou aí, e não foi tão trágica como poderia ter sido. Por intervenção de Nice, na época mulher de Roberto, Tim conseguiu um contrato com a gravadora CBS, a mesma do marido. Tim Maia lançou dois compactos que não venderam muito, mas que o levaram para a Polydor, onde finalmente começou a construir a carreira pela qual é conhecido hoje. E Tim deu a Roberto “Não Vou Ficar”, canção de enorme sucesso que foi a joia da coroa da chamada “fase soul” do Rei.
A cena do “dinheiro amassado” foi retratada no filme Tim Maia, de Mauro Lima, que estreou no segundo semestre de 2014. Na produção, um Roberto caricato, interpretado por George Sauma (na foto acima, à esquerda, ao lado de Robson Nunes, um dos atores que dão vida a Tim), é visto como um duende ranheta e convencido. O filme foi adquirido pela Rede Globo e exibido em duas partes nos primeiros dias de janeiro. A parte de Tim sendo esnobado por Roberto simplesmente foi limada. Em vez disso, o Roberto de carne e osso aparece elogiando Tim e realçando o quanto ele, o Rei, foi importante para o êxito do soulman. Nelson Motta, cujo livro Tim Maia – Vale Tudo serviu em parte como base para o filme, também deu as caras para defender Roberto. Até agora ninguém sabe ao certo como tudo isso aconteceu – se a Globo resolveu limpar a barra de seu contratado a pedido dele ou decidiu fazer a estranha “revisão” da relação RC/Tim de forma espontânea. Todo a situação ficou parecendo um exercício de relações públicas às avessas. A Globo parece ter subestimado a capacidade crítica do telespectador ao esperar que tal reformulação não fosse notada – mas, pelo jeito, depois de toda a repercussão negativa, também se envergonhou com a situação e até retirou o programa de sua grade de programação online.
O que se concretiza com mais esta confusão, é que, nestes últimos anos, Roberto Carlos não consegue mais ficar longe das polêmicas negativas, mesmo que involuntariamente. Depois de proibir Roberto Carlos em Detalhes, o cantor ainda fez parte do grupo Procure Saber, que defendia restrições a biografias não autorizadas. O autor censurado Paulo Cesar Araújo lançou um novo livro no ano passado. Em O Réu e o Rei, Araújo detalha como funcionam as bem guardadas engrenagens internas que movem as organizações que sustentam Roberto Carlos. A lição é: “Não mexa com ele”. Pelo menos desta vez, Roberto optou por não se impor à venda da obra nas livrarias.
É deprimente, porém, atestar que as tentativas de RC apagar fatos veem de muito antes do livro ...Em Detalhes. Ele até hoje barra a reedição de Louco Por Você, seu primeiro LP, lançado em 1961. O álbum foi concebido e produzido pelo até então mentor Carlos Imperial, de quem Roberto mais tarde também se afastaria de forma definitiva. Na contracapa original, está escrito que Roberto teria nascido no Rio de Janeiro (ele é do Espírito Santo). E o cantor ainda implica com a canção “Não é Por Mim”, onde ele contesta a existência de Deus, o que contraria os fortes preceitos religiosos que adquiriu ao longo dos anos. Por mais de 50 anos Louco por Você segue na terra dos mortos-vivos discográficos, e assim deve permanecer.
Roberto acabou de lançar mais um conjunto de DVD e CD reciclados, com duetos retirados dos seus especiais de TV. Ninguém deu bola, e esse é apenas mais um produto que marca a atual irrelevância dele. Quem tem menos de 35 anos e não presenciou o apogeu de Roberto Carlos não sabe o quanto ele foi vital e indispensável em seu auge. Mas, graças à forma como ele agora conduz sua imagem pública, as novas gerações o consideram apenas um artista cansado e cansativo, que só lança discos chatos enquanto fora dos palcos mete os pés pelas mãos.
Daqui a alguns meses, os 50 anos da Jovem Guarda serão celebrados. É impossível prever se a percepção sobre a obra e a presença de Roberto na vida cultural brasileira vai mudar aos serem relembradas as “jovens tardes de domingo”. Há dez anos, quando o movimento celebrou 40 anos, ele fez questão de não se manifestar sobre o assunto. Se Roberto mantiver silêncio novamente, vai perder outra chance de reabilitar sua imagem artística, mesmo que minimamente.
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