Um mês depois da morte de George Floyd, Black Lives Matter - ou Vidas Negras Importam é mais relevante que nunca; e, mais ainda, um sonho antigo
Yolanda Reis Publicado em 25/06/2020, às 07h00
“Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade.”
Essa frase poderia ser uma das muitas compartilhadas, no último mês, pelo movimento Black Lives Matter (ou Vidas Negras Importam, em português). Caberia perfeitamente nos protestos que pipocaram pelo mundo inteiro nos últimos 31 dias, logo após a morte de George Floyd em 25 de maio de 2020; homem preto, sufocado até a morte pelo joelho de um policial. Poderia… Mas não é.
Essa ideia tem, de fato, 57 anos, e faz parte do famoso “Eu Tenho um Sonho”, discurso de Martin Luther King Jr na Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade. Em meio à segregação dos EUA, o povo negro criou um dia histórico ao exigir igualdade. Naquela época, o ativista lembrou os 100 anos de luta pela pauta da igualdade. Hoje, soma-se mais de meio século à conta da injustiça social.
Em 1963, Martin Luther King Jr., durante pouco mais de 16 minutos, enfatizou a sua visão do futuro. Relembrou como “a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.” Esbravejou pelo fato de “o negro ainda adoece[r] nos cantos da sociedade [...] e se encontra exilado[r] em sua própria terra.” Clamou que a nota promissória da constituição, responsável por garantir direitos iguais para todas, deveria ser paga - mas receberam apenas um cheque sem fundo no lugar. Mais ainda, pediu força, presença, mudança.
No sonho dele, as pessoas seriam criadas igualmente. Os descendentes dos escravos poderiam sentar, junto dos brancos, nas mesas da fraternidade. Os filhos dele, desejava, poderiam segurar as mãos de todos, e não seriam julgados pelo tom da pele, “mas pelo conteúdo de seus caráteres.” Todo um sonho de liberdade.
A morte de Floyd, nos EUA, e de João Pedro e Miguel (duas crianças negras e brasileiras, que morreram em dias próximos), escancaram o fato de que isso ainda não aconteceu. Ainda há, no mundo, uma grande segregação racial. O poder ainda não pagou a nota promissória, e só coloca mais dívida em cima dela. A história se repete - as pessoas, de novo, contestam. O sonho ganha novo suspiro, agora, num movimento urbano. Uma nova cobrança da mesma pauta: igualdade.
Martin Luther King Jr, sabia, em partes, que o futuro veria uma nova revolução. Seu discurso dizia isso: "Temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, ‘Quando vocês estarão satisfeitos?’ [...] Os que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação voltar aos negócios de sempre.”
Com a nossa visão “do futuro”, sabemos como houve o retrocesso. Nos Estados Unidos, e em vários outros países de maioria não-negra, a desigualdade continuou. Nem na época houve, de fato, a paz, como explica Ketty Valencio, bibliotecária e pesquisadora - e proprietária da Livraria Africanidades, especializada em literatura negra e feminista, em entrevista para Rolling Stone Brasil:
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“O discurso do Martin Luther King é extremamente inspirador e eutópico. Ele criou uma redenção oral totalmente incrível. Talvez, no período, tenha sido algo para confortar as pessoas que estavam vivendo um período caótico, para as pessoas pretas… Para ele, também. Ao mesmo tempo, é um discurso que, se você analisar, percebe que não deu certo. Depois de 5 anos, ele foi assassinado. O ideal não foi realizado.”
O ideal, porém, nunca foi esquecido. Ficou entalado na garganta, um comichão a cada olhada torta na rua, risadinha na escola, ou enquadro da polícia. Tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Mas, aqui, o racismo tem uma cara bem diferente: é social. Como explica Juan Arias para El País (citando Eduardo Giannetti, autor livro Trópicos Utópicos, e um bate papo do escritor com O Globo), e Gabriela Albuquerque num relato pessoal para Brasileiras Pelo Mundo, os dois países diferem, e muito, na hora de discriminar. Nos EUA, pela segregação do passado, o racista vê-se como melhor do que o preto. Aqui, as pessoas enxergam o negro como pobre, alguém sem escolaridade, propenso ao crime. São visões bem perigosas - e extremamente estereotipadas.
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“Para a sociedade, todo negro é f*****. Você cria um julgamento, e coloca em alguma estante dentro da sua cabeça, montada de acordo com uma história pessoal, uma realidade,” exemplifica Valencio. “Pessoas que moram na periferia, ou na favela, são mais vulneráveis à violência, porque outras pessoas não verão a agressão delas. Nem ligam, Acham normal. Existem várias justificativas para a vulnerabilidade. Essas pessoas vão ter trabalho precarizado, chegam tarde em casa, e vai estar na rua de noite e serão abordados pela polícia. E eles não estão nem aí para antecedentes.”
É importante notar, porém, que a violência vai para fora da favela. Pessoas pretas, explicam Valencio e Gianetti, serão olhadas de cima em qualquer ambiente. À elas somam-se, com mais força, outros preconceitos sociais e estéticos, também: “Existem várias questões importantes para o corpo negro,” explica Ketty. “Existem para o corpo branco, também, mas no corpo negro é mais atropelado, mais analisado. Sou negra e magra, minha opressão é diferente da uma mulher negra e gorda… Mas nada disso é um cabo de guerra de quem sofre mais. É questão do que podemos fazer com isso, juntas. Minha dor é a mesma que a dela. Precisamos entender onde dói a dor do outro, entende isso?”, questiona, a voz trêmula.
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Muito da utopia de Martin Luther King Jr. não aconteceu. Embora a segregação dos EUA tenha, legalmente, terminado, a maioria do discurso de 1963 ainda é válida. Mas há algo importantíssimo nele: a implementação de um sonho - e esse, nunca se pode destruir:
“O movimento negro conseguiu algumas conquistas, sempre houve tentativas… Sementes foram colocadas, e começaram a florescer em pessoas como eu,” conta Valencio. “Isso também aconteceu com meu pai, porque o esforço de Martin Luther King atingiu a geração dele - foram impactados pelo discurso. Puderam agitar o movimento negro.”
Existe, sim, espaço para virar a sociedade, acredita Valencio. São vários passos de conscientização e “fichas caídas”. Prestar atenção ao nosso “cotidiano, escolhas, tudo o que se consome, compra, assiste, investe, as relações de amizade, amorosas… Tudo isso é político. Todas são escolhas.”
O modo mais direto de acabar com a ferida é expondo-a. O racismo existe dentro da sociedade brasileira, e escondê-lo não vale de nada. “Precisamos admitir,” evidencia Valencio. “É importante falar da ‘branquitude’ [palavra que designa os privilégios das pessoas brancas, como explicou Lia Vainer Schucman à FAPESP]. Precisamos colocar todas as nossas feiúras para fora. Enquanto não admitirmos isso, enquanto colocarmos embaixo do tapete, não vamos saber tratar. É doloroso admitir isso, mas é necessário.”
Um bom ponto de início de reversão desse preconceito social, explica Valencio, é a nova geração. Se um dia tiver uma filha, pretende trabalhar as questões com ela, para poder encarar o mundo. Sugere a importância de famílias brancas também fazerem isso - e ampliar a educação para além do vestibular:
“Afinal, educação também é conviver com pessoas diferentes. As crianças precisam saber disso. Elas não podem ver na televisão [um conteúdo racista], porque vai para escola e reproduz isso. Acha que a amiga dela, preta, é inferior e tem que ser a empregada, ou que o amigo homossexual é inferior, ou tudo isso é feito. Enfim, achar ruim tudo do núcleo diferenciado dele, se achar o soberano.”
Além de sempre perceber e celebrar as diferenças, outro passo para a evolução social é entender como a pessoa negra é inserida na sociedade. “Quantas pessoas pretas tem aí com você, na sua empresa?” questiona ela. “Porque muita gente fica do nosso lado, mas nossos alianos não são iguais à gente? Tem algo estranho, aí. Onde as pessoas pretas estão? Atrás do balcão, ou são os gerentes, os donos? Precisamos colocar essas pessoas onde merecem estar,” conclui.
Percebemos as vozes. Vidas Negras Importam - e será difícil esquecer esse clamor. Tudo fervilha em mudança e discussões. Talvez, haja o passo esperado desde 1963 por Martin Luther King Jr.
“Espero que tudo avance,” anseia Valencio, “que possamos falar de outras coisas. Que eu não precise falar de racismo, por exemplo, vou poder falar de outros assuntos que eu seja abarcada. O racismo também é perverso por isso: não sei quem sou, por causa dele. Sempre acabo voltando a falar disso, entende? Tenho que estar sempre com o preto. É bem importante, mas eu queria ir além, poder me mostrar delicada ou vulnerável… [A sociedade] espera que sejamos sempre forte e resistente, mas, de vez em quando, queremos chorar. Muitas vezes, é adoecedor.”
“Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro [...] acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo.” Martin Luther King Jr, 1963.
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