Musa de Serge Gainsbourg, sim, e muito mais: Jane Birkin se apresenta com Caetano Veloso e Orquestra Imperial e fala à Rolling Stone Brasil sobre o "fantasma" do ícone francês
Por Anna Virginia Balloussier Publicado em 03/09/2009, às 18h21
Jane Birkin sabe bem por que está aqui. "Por ser mulher de Serge, oras."
Correção: ex-mulher. Mas quem dá bola para a teoria? A prática é muito mais pop. E há anos dá indícios de que o fantasma daquele a quem abandonou em 1981, grávida de outro homem, nunca deixa de lhe fazer companhia. "A associação é eterna. Sou a viúva, ainda que tenha tido outro marido", diz a mais francesa das inglesas, em um saguão do Sesc Pinheiros.
A noite de quarta, 2, é uma das mais quentes da estação. O ar-condicionado, no entanto, incomoda. Com frio, Birkin escapole para dentro do auditório. Sentada no chão mesmo, uma xícara de café apoiada nas pernas, ela conversa com a reportagem do site da Rolling Stone Brasil. Está de blusa verde e calça jeans, lenço embrulhado no pescoço e All-Star preto, cano médio. Esbanjando a elegância das britânicas, somada ao charme inerente às conterrâneas de Catherine Deneuve (ao menos é o que décadas de cinema francês nos contam).
Em 24 horas, "por ser a mulher de Serge, oras", a juvenil senhora de 62 anos se juntará a Caetano Veloso e Orquestra Imperial para apresentar o repertório justamente desse penetra que, há 18 anos, nunca falta a um evento público em sua vida.
Serge Gainsbourg está a serviço da música francesa assim como os queijos e vinhos estão para a culinária do país. Item de exportação da "cultura do biquinho", o compositor, poeta e diretor de cinema morreu em 1991. Ainda hoje, contudo, pegar um táxi e uma máquina do tempo dá no mesmo para Birkin. "Sempre que entro em um, o motorista vem me dizer o quanto sente falta dele."
As revelações saem desinibidas; o ressentimento, se existe, é bem mais tímido. Toda vez que toca no nome do artista, com quem teve a filha Charlotte (vencedora em Cannes por Anticristo e aprontando álbum com Beck), o faz de forma terna - seja para falar "das joias femininas e sapatilhas que comprava para ele, que tinha pés chatos", seja para condená-lo por fazer a barba e, por "achar seu rosto feio, querer ser Robert Taylor e outras pessoas entediantes".
Não há ressentimento simplesmente por Birkin estar bem ciente de que sua carreira como atriz e cantora vai bem, obrigada, com ou sem Gainsbourg. "Não acho que alguém no mundo profissional questionaria isso; é coisa do público mesmo".
É de 1966 - pré-Serge, portanto - um de seus filmes mais famosos, Blow-Up - Depois Daquele Beijo, do italiano Michelangelo Antonioni (prateleiras cinéfilas exibem a obra com o tipo de orgulho que abarrota de troféus a estante do esportista). Da estadia no Brasil, parte direto para o Festival de Veneza, onde defenderá 36 Vues do Pic Saint-Loup (2009), de Jacques Rivette, parceiro de François Truffaut e Jean-Luc Godard na nouvelle vague. A sombra do ex-companheiro pode ser grande, mas não a ponto de lhe tirar o mérito próprio em suas realizações.
Mas os shows de quinta, 3, e sexta, 4, não se chamam Gainsbourg Imperial à toa. Sob batutas de um maestro (Jean-Claude Vannier, arranjador de Histoire de Melody Nelson, clássico de Serge) pela primeira vez, apesar do nome, a Orquestra Imperial está comportada. Para receber a musa do homenageado, no evento que se encaixa como uma luva de cabaré francês no Ano da França no Brasil, a superbanda perdeu os ares anarquistas - nos ensaios, os músicos aparecem sentados, passando longe daquela impressão de que levaram a agitação de uma rave para cima de um pula-pula.
No ensaio, Caetano Veloso - quem tem algo de Serge, por ser "lindo sem o ser" - faz dueto com Birkin em "Je Suis Venu Te Dire Que Je M'en Vais". Os dois se apoiam um no outro, de costas, posição que arranca risadas do baiano. "Era assim que eu e Bethânia ficávamos!", ele diz, batendo bundinha (!) com a inglesa, perceptíveis centímetros mais alta do que o cantor de quem já gravou "Leãozinho", em Rendez-Vous (2004).
Os brasileiros retribuem a paixão. Além dos músicos da Orquestra, tomados pelo vocal suave da convidada especial, Ana Cañas enviou dois álbuns seus, amarrados por um cordão e com uma orelha de borracha ("de Van Gogh", explicou o irmão, que estava lá como fotógrafo e fez as vezes de mensageiro) pendurada.
Balada de Serge e Jane
Quem der um pulo na exposição dedicada a Serge Gainsbourg, no Sesc Paulista, que se estende até segunda, 7, vai sacar de cara o donjuanismo do artista. Entre os vários vídeos em alusão à sua carreira, destacam-se duas mulheres, bonitas demais para garantir sono tranquilo às outras representantes do gênero. Se a voluptuosidade de Brigitte Bardot lhe encaixava no tipo "mulherão", Birkin sempre foi mais delicada. Como Carla Bruni, outra estrangeira (sua origem é italiana) com ares franceses. Da atual primeira-dama da França, no entanto, Birkin se recusa a falar - não quer cutucar a colmeia política e manda a única resposta seca da entrevista ("nada a declarar") quando questionada sobre Nicolas Sarkozy e sua mulher.
A mais famosa balada de Serge e Jane, "Je T'Aime... Moi Non Plus", foi na verdade composta para a "rival" Bardot - que, reza a lenda, não quis gravar a música, temerosa da ogiva nuclear que sua letra representaria para o moralismo da época. Estava certa: os versos eróticos, sussurrados por Birkin, tingiram de vermelho as bochechas do Vaticano - de rubor e de raiva.
Essa "canção estranhamente histórica", como define a artista, recebeu pito do Papa e ficou de fora da rede britânica BBC. "Até hoje, ninguém fez nada tão escandaloso. Politicamente, foi um gosto de liberdade."
"Quando eu morrer", pontua Birkin, de forma sublime e ao mesmo tempo ponderada, "tocarão 'Je T'Aime... Moi Non Plus' no meu funeral. Esta será a canção do meu fim - e é muito bom saber disso."
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