Retrato pessoal e sem filtros do líder do Nirvana pelas palavras dele mesmo surpreende o público
DAVID FEAR Publicado em 31/01/2015, às 13h03
“It's now my duty to completely drain you”. Já era esperado ouvir as músicas do Nirvana tocando no sistema de som do MARC Theater antes da estreia mundial de Kurt Cobain: Montage of Heck. Mas quando este verso de “Drain You”, de Nevermind, surgiu – poucos minutos antes de as luzes se apagarem –, não era possível prever o quão profética seria aquela sensação.
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Uma mistura multimídia de vídeos caseiros, escritos em diários, desenhos, rabiscos em cadernos e gravações em áudio do cantor e compositor, o documentário de Brett Morgen é mais do que apenas um filme obrigatório para os fãs do Nirvana. É um trabalho coletivo feito em oito anos que oferece uma espiada na mente do artista, do primeiro indício criativo até o espiral descendente.
E quando o filme se aproxima do fim, com Kurt agradecendo a plateia no show da banda no MTV Unplugged, a sensação não é de apenas ter conhecido melhor o cara, mas, sim, de completo esgotamento emocional.
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“Só queria dar à Frances algumas horas a mais com o pai dela”, disse Morgen (na foto abaixo, ao lado de Courtney e Frances). Ela estava na plateia, assim como a mãe de Kurt, a irmã (Kim), Krist Novoselic e Courtney Love, que recebeu profusos agradecimentos do diretor pela confiança dela. “Desafio você a encontrar outra pessoa que lhe daria as chaves do depósito”, disse. “E diga: ‘Vasculhe toda minha bagunça, faça um puta filme e vou assistir quando estiver pronto’.”
Dizer que Morgen teve acesso irrestrito aos pertences pessoais de Cobain seria insuficiente. Há gravações de uma Super 8 de Kurt criança com os cabelos loiros com corte estilo tigela, batendo em um piano de brinquedo e apagando velas de um bolo de aniversário. Há também fotos do músico como um adolescente calado, com a voz dele ao fundo descrevendo como as descobertas da maconha e do punk o ajudaram a lidar com um profundo senso de alienação.
20 anos atrás, um Kurt Cobain rouco e introspectivo comandava o último show do Nirvana.
Sempre quis ver a certidão de nascimento de Kurt? Ou ouvir uma conversa gravada entre Cobain e o vocalista do Melvins, Buzz Osborne, sobre como a cidade de Aberdeen era uma merda? Está tudo lá, de longas passagens com páginas de cadernos cheias de desenhos e com prováveis nomes de banda (The Reaganites, Hare Lips) até versões embrionárias das icônicas canções.
Declarações de integrantes da família, a ex-namorada Tracy Marander, Novoselic e Courtney ajudam a construir uma ponte entre as páginas e as parafernálias de Kurt. A ausência declarada de Dave Grohl foi explicada por Morgen na entrevista após a exibição: ele entrevistou o líder do Foo Fighters há algumas semanas, depois de o filme já estar pronto. Existe a possibilidade de ele reeditar o longa no futuro.
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Esta pode ser a única observação sobre Montage of Heck, cujo título foi tirado de uma das mixtapes de Cobain (ouça abaixo) cheias de vozes, barulhos, trechos de músicas e uma demo ocasional. Morgen utiliza-se do formato – de achar uma finalidade por meio das esquisitices – para chegar ter um resultado extremamente pessoal.
Partes chave da mitologia acerca do Nirvana – como Kurt encontrando inspiração em um grafite de Kathleen Hanna ou como e quando aconteceu a entrada de Grohl na banda – são quase que deixados de lado. O número de telefone de David Geffen aparece rapidamente em uma anotação. E até mesmo o vídeo de “Smells Like Teen Spirit” é encoberto por uma versão da música interpretada por um coral de crianças.
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Por isso, o espectador ganha uma experiência de Kurt Cobain sem filtros: todos os esboços perturbadores, poemas inacabados e listas de desejos. Ganha, também, uma visão desarticulada e desorientada da fama pelos olhos dele, com uma mistura confusa de shows, reportagens e questionários insípidos na TV.
Há também uma desconfortável e íntima abordagem da vida dele ao lado de Courtney, incluindo fotos deles se beijando (tiradas por eles mesmos) e imagens de Courtney grávida com os seios descobertos. Este é um casal perdidamente apaixonado e, de acordo com as matérias de tabloides que Morgen expõe, frequentemente drogado.
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Mas é esta parte que ganha destaque, especialmente quando Frances Bean Cobain entra em cena. “Frances me disse: ‘As pessoas agem como se meu pai fosse o Papai Noel’”, disse Morgen, depois da exibição do documentário. “‘E ele não era o Papai Noel’. Acho que ela percebeu isso depois de assistir ao filme.”
Kurt era um pai atencioso, mesmo quando pressões externas o colocavam em má situações ou os problemas de saúde o deixavam inativo. O amor dele pela filha sempre foi de conhecimento público, mas vê-lo rolando pelo chão com ela, enquanto Frances se diverte, muda o foco do astro. Aquela cena não é a representação do porta-voz de uma geração. É apenas um ser humano, um marido e um pai.
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Isso tudo deixa muito emocionante a exibição de Kurt se confessando por meio de violentas mensagens de voz ou as páginas do caderno dele que indicam um desespero por ajuda – um dos escritos é simplesmente a frase: “Vá se matar”, repetida diversas vezes.
O momento mais assombroso acontece quando o jornalista da Rolling Stone EUA, David Fricke, pode ser ouvido acima da trilha sonora questionando Cobain sobre “I Hate Myself and Want to Die” (“Eu me odeio e quero morrer”), de In Utero: “Você está sendo muito satírico ou atingido algo muito sombrio?”. A resposta de Kurt é uma risada arrepiante.
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Qualquer um poderia ter feito um documentário sobre uma banda. A abordagem experimental, uma viagem sem estrada, feita por Morgen, entretanto, fez algo muito mais profundo: deixa o espectador sentir-se como se tivesse estudado o diário de alguém. Deixa a sensação de que Kurt ficaria feliz por isso. Esteja preparado para encontrar o cara que você admira. Mas esse encontro é tanto para o bem quanto para o mal.
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