Banda brasileira mais relevante hoje traz, no disco O Futuro Não Demora, referências que vão de Moa do Katendê, assassinado, ao escritor Eduardo Galeano
Pedro Antunes Publicado em 14/02/2019, às 20h10
Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, ri ao falar sobre como o contexto político se retrata em O Futuro Não Demora, o novo disco de uma das principais bandas da atualidade - e a mais relevante, sem dúvida -, a ser lançado nesta sexta-feira, 15. Está tudo ali, nos versos disparados por ele, às vezes ferozes, às vezes mansos. Ao longo de quase 40 minutos, o BaianaSystem transpira o contemporâneo e o político como nenhum outro grupo foi capaz de fazer neste 2019.
O mesmo se deu em 2016, ano conturbadíssimo politicamente. Ano do impeachment de Dilma Rousseff. O ano de transformações mil, responsável por desaguar neste agora. Também ano de Duas Cidades, o segundo disco do BaianaSystem. Ali, vestiam seu discurso sobre os êxodos (dos próprios, inclusive, ao deixar Salvador rumo a São Paulo) com a guitarra baiana e o dub encharcados de eletrônicos.
Era, em 2016, um álbum urbano, de relação com a(s) cidade(s), com o concreto que derrubou a mata, assassina a terra, o freia o vento, afunila as praias. Falavam de movimento, desde da formação do Brasil, com povos trazidos para o País, por vontade própria e acorrentados. Também citava as migrações, dentro do território nacional e fora dele também.
Tudo isso era levado para os palcos. Os gravem não davam trégua, enquanto a guitarra baiana vinha na linha de frente, cortando o que aparecia diante de si. Por fim, a energia de Russo, de voz e suor, estabelecia o show do BaianaSystem como um ritual. De discurso afiado, de saltos, de movimentação intensa ao sabor do som. Sair de uma apresentação deles gotejando era de praxe.
Vale lembrar, entre tantos exemplos, o show do BaianaSystem no palco montado no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no aniversário da cidade de 2018. A multidão, à frente do palco à espera de Anitta, principal atração da noite, foi atropelada pelo caminhão sonoro do Baiana. Caíram na dança, enquanto o pessoal do fundo, tomado por fãs do grupo, promovia a festança de sempre, com rodas de dança e tudo mais.
Duas Cidades, portanto, também foi responsável por levar mensagem do BaianaSystem para fora da sua bolha. Levou a trupe para Japão, China, Europa, Brasil adentro. De apresentação em apresentação, show a show, acumulavam suores, vibrações diferentes e vivências.
Numa outra dessas apresentações, em Ilha de Itaparica, na Bahia, dois anos atrás, Russo regeu seu ritual, como sempre. Disse, em certo momento: "nós trouxemos a antropofagia para vocês". Ele adota para o discurso do BaianaSystem o movimento tomado pela cultura na primeira metade do século passado, de deglutir as culturas estrangeiras para criar sua própria estética.
Ouviu, Russo, da plateia, um rapaz a lhe responder: "A antropofagia é aqui". "E aquilo me pegou. Eu senti o clique naquele momento, no palco", relembra o músico.
A partir desse momento, ergueu-se O Futuro Não Demora. Ao longo do ano de 2018, quando possível, lá iam Russo (voz), Roberto Barreto (guitarra baiana) e Seko Bass (baixo) atravessar o mar, de barquinho, deixando Salvador em direção a Itaparica.
"Foi um mergulho", recorda Russo, sobre os períodos de intenso aprendizado sobre a cultura local, sobre a oralidade, sobre a sabedoria adquirida, passada de uns para os outros. Crescia o que seria o conceito responsável por costurar O Futuro Não Demora. "Pegávamos um barco, íamos visitar terreiros, mestres de berimbau..."
"Foi, na verdade", interrompe Russo o próprio raciocínio, "a primeira vez que experimentamos o processo de fazer música sem pegar nos instrumentos. Fizemos esse método de ir, de estar, de mergulhar, de absorver. Não queríamos fazer uma fusão, fazer colagens. Queríamos imersão."
O Futuro Não Demora se distancia de Duas Cidades esteticamente. É mais orgânico que o antecessor, sem perder a quentura e o punch dessas canções. É como se pulsasse mais como um coração, não como disparos elétricos.
Isso, é claro, passa também pela produção precisa de Daniel Ganjaman, o mesmo do álbum passado. Versátil, ele se moldou à nova linguagem do grupo, como sempre faz, e colocou mais um candidato a disco do ano na sua coleção premiada por tantos anos. E se o BaianaSystem foi até Ganjaman, em São Paulo, da outra vez, agora é ele quem acompanhou a banda nas andanças para criar O Futuro Não Demora.
Ganjaman teve auxílio de João Meirelles em “Redoma” e “Certoh pelo Certoh”. Ainda sobre a produção do disco, Dudu Marote e Seko Bass foram os responsáveis por duas faixas, “Arapuca” e “Saci” - essa última, pelo termômetro das redes sociais, tem cheirinho de hit.
Russo fala à Rolling Stone Brasil no início da tarde quarta-feira, 13, dois dias antes da chegada do álbum às plataformas. As primeiras entrevistas o obrigam a fazer novas sinapses sobre o trabalho. Um exercício de novas reflexões, ainda inéditas até para ele.
"Estamos vivendo um momento fantástico", conta o vocalista, "agora que estamos percebendo como esse disco se conecta com o anterior. Nos ensaios, estamos entendendo o que está acontecendo. É entender todo esse processo pelo qual passamos. E percebendo como algumas referências de conectam."
Ele, então, recita a letra de "Lucro (Descomprimindo)", do segundo álbum: “Tire as construções da minha praia / Não consigo respirar / As meninas de mini-saia / Não conseguem respirar". E isso se junta com a letra de "Salve", do terceiro álbum. "Quero respirar", diz um verso.
"Acabei de perceber isso. Durante essa entrevista", diz Russo, surpreso. "Foi um processo muito orgânico, mesmo."
O Futuro Não Demora não tem single ou música de trabalho. Para o grupo, não há uma canção no álbum capaz de funcionar como um cartão de visitas. Cada uma tem sua função e sua estética, com camadas sobrepostas por mais camadas de informação - percebê-las depende do fôlego do ouvinte para o mergulho.
O BaianaSystem quer resgatar o conceito de "obra" para O Futuro Não Demora (cuja a capa está abaixo). "O que difere o disco de uma obra?", pergunta, retoricamente, Russo, antes de responder, "as obras têm relações para fora dela, se comunica com um filme, com uma outra forma de arte. É algo que vai parar fora".
Por isso, o álbum tem começo, meio e fim. Embora chegue às plataformas de streaming dividido em faixas (13, no total), o trabalho é visto pela banda como dois blocos de canções. O lado A significa "água". O lado B, "fogo". No meio, está "Melô do Centro da Terra", um tema cantado por Lourimbau, lançada originalmente na trilha-sonora do filme Trampolim do Forte, de João Rodrigo Matos, lançado em 2010.
A primeira metade, o lado "água" tem relação com o olhar para dentro. "Somos feitos de água, certo? O que acontece quando mergulhamos no mar? Estou mergulhando em mim", diz Russo. Desta lado, estão as músicas "Água" (com participação da Orquestra Afrosinfônica e do duo Antonio Carlos e Jocafi), "Bola de Cristal", "Salve" (com BNegão e, de novo, o duo Antonio Carlos e Jocafi), "Sulamericano" (com Manu Chao) e Sonar (com Curumin e Edgar).
Depois de "Melô do Centro da Terra", chega o lado do "fogo", com: "Navio", "Redoma" (com Samba de Lata de Tijuaçú), "Saci", "Sambaqui", "Arapuca", "Certopelocertoh" (com Vandal) e "Fogo" (de novo com a Orquestra Afrosinfônica").
As referências encontradas ali se amontoam. O BaianaSystem fala sobre pertencimento latino, com a participação de Manu Chao na contagiante "Sulamericano", mesma faixa na qual cita o livro As Veias Abertas da América, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Também constrói "Sambaqui" em cima das bases da antropofagia cultural (com versos como "comendo com a boca, comendo com o olho").
“Sulamericano”, aliás, traz o grito político: "Vou seguir cantarolando para poder contra-atacar / Contra-atacar / Contra-atacar Vou traçando vários planos para poder contra-atacar".
Também traz a empatia no seu discurso - algo sempre bem-vindo em tempos de ódio. "Já aconteceu com você, aconteceu comigo / O fogo que queima em você, também queima comigo", ele recita em "Salve", canção com a qual o BaianaSystem presta homenagem a quem já fez da música um instrumento para sair das caixinhas, como Zulu Nation, Nação Zumbi, Ilê Ayê e Orquestra Rumpilezz.
"Queríamos homenagear aqueles que fizeram da música um instrumento de libertação", explica Russo. "Poderíamos citar milhares de outros exemplos. Poderia citar Gilberto Gil. Poderia citar Tom Zé. Mas esses foram os primeiros nomes que apareceram na nossa cabeça."
É o plano do BaianaSystem, quando, no começo do texto, Russo fala sobre a forma como o álbum reflete o estado do mundo atual. "O disco propõe um olhar para dentro", explica o vocalista, "mas também tem a explosão, o lado do fogo", completa.
Cheio de metáforas, Russo Passapusso chega à derradeira, aquela que define O Futuro Não Demora com a maior precisão até o momento. É como um processo de batismo, entende? Eu te mergulho para trás. Você sente o susto. Bluf!". Russo diz isso e fica em silêncio por instantes que parecem minutos. "E, quando você volta, vê o mundo de uma forma nova."
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