O disco ao vivo Cartas de Amor foi gravado em duas apresentações no Vivo Rio, no Rio de Janeiro, nestes sábado e domingo, 13 e 14
Pedro Antunes, do Rio de Janeiro
Publicado em 15/04/2013, às 00h44 - Atualizado às 01h43Maria Bethânia entra de mansinho, pelo fundo do palco, arrastando os pés descalços pela serragem que cobre todo o piso. Chega de saia longa e a cabeleira solta. Braços abertos para receber o carinho do público carioca, presente na segunda noite da gravação do DVD Cartas de Amor, neste domingo, 14, no Vivo Rio, resultado de uma parceria entre a gravadora Biscoito Fino e o Canal Brasil. Tudo é simples, ainda que a mensagem seja grandiosa. O chegar silencioso, quase tímido, é um contraste ao poder da voz que sai pelas caixas de som, forte e hipnótica.
O show é fruto de um trabalho ousado, o disco Oásis de Bethânia, o 50º da carreira. A cantora decidiu explorar sonoridades distintas com músicos diferentes. Houve espaço para ideias de Lenine, Hamilton de Holanda, Djavan, Jorge Helder, entre outros. Um time de dez, completado pela centroavante e capitã da equipe Bethânia.
No show, contudo, coube ao mineiro Wagner Tiso unir toda a sonoridade mista à interpretação de Bethânia. E o faz magistralmente. Unindo fados a xotes, Gabriel Improta (violão e guitarra), Paulo Dafilin (violão e viola), Jorge Helder (baixo e grande usual companheiro musical de Bethânia), Pantico Rocha (bateria), Marcelo Costa (percussão) e Marcio Mallard (violoncelo). O maestro Tiso rege todos eles ao piano. No intervalo do show, entre os primeiro e segundo atos, eles executaram uma versão de “Maria, Maria”, fundamental para a estética criada pelo Clube da Esquina, de Minas Gerais, formado por Tiso, Milton Nascimento, Lô Borges, entre outros.
Não é por acaso que ela abre e encerra o show de quase uma hora e meia com uma composição de Milton e Fernando Brant, “Canções e Momentos”. Uma ode ao próprio ofício de cantar: “Há canções e há momentos / Em que a voz vem da raiz / Eu não sei se quando triste / Ou se quando sou feliz / Eu só sei que há momentos / Que se casa com canção / De fazer tal casamento / Vive a minha profissão”.
Bethânia percorre por algumas faixas do novo álbum, como “Salmo” (Rafael Rabelo e Paulo César Pinheiro), “Casablanca” e “Barulho” (ambas de Roque Ferreira), “Velho Francisco” (Chico Buarque), “Calúnia” (Marino Porto e Paulo Soledade) e “Carta de Amor” (Paulo César Pinheiro). Na última, ela ainda recita um texto próprio, forte e impactante.
A apresentação tem uma teatralidade criada por Bethânia e Bia Lessa, diretora do show. Os músicos se posicionam dos lados do palco. Não há cenário, apenas a serragem no solo, um tronco de árvore e lâmpadas vindas de cima, penduradas, que sobem e descem, dançando ao sabor das palavras cantadas ou faladas pela intérprete. A performance corporal de Bethânia também é combustível para a hipnose que capta o público.
Ela também trouxe canções inéditas, que casaram-se ao roteiro da apresentação, tanto por Tiso, responsável pelos arranjos, quanto pela intepretação dela. “A Casa é Sua” (Arnaldo Antunes), “Quem Me Leva os Meus Fantasmas” (Pedro Abrunhosa) e “Estado de Poesia” (Chico César).
O grande momento é quando chega “Reconvexo”, do irmão Caetano Veloso. Ela une os versos à cantigas e sambas de roda, como “Minha Senhora”, “Viola Meu Bem” e “Quixambeira”. Os versos das músicas as unem em uma só, crescendo aos poucos chegando ao fim com palmas e gritos de aprovação vindos do público. Nesta faixa, aliás, consta a lembrança à Dona Canô, mãe dela e de Caetano, morta em dezembro do ano passado.
Já no segundo bis, quando as cortinas se abrem pela última vez, Bethânia despede-se com “Explode Coração” e “O Que É, O Que É”, ambas de Gonzaguinha. Naquele momento, o público já havia saído das cadeiras e postava-se em pé em seus lugares, ou ia para a beirada do palco. Cantavam, dançavam, sambavam. O roteiro soou impecável, carregado de nuances, capítulos, dores e sabores. Nesta reunião de cartas tão distintas, mas com a temática comum, Bethânia encanta e se vai. Novamente de mansinho, para quebrar o feitiço.