Os xarás Eduardo Coutinho e Eduardo Valente apresentam produções de menos apelo popular, mas com fartura de cafunés da crítica
Por Anna Virginia Balloussier, de Paulínia Publicado em 15/07/2009, às 14h54
A noite de segunda, 13, estava com crédito no mercado. Se a segunda edição do Festival de Paulínia, até então, havia apresentado seleção irregular - vide Destino a piada pronta de Lucélia Santos -, o quarto dia de competição trouxe dois nomes fortes.
Diante do veterano Eduardo Coutinho, que veio com seu novo documentário, Moscou, os críticos viraram praticamente cheerleaders - por pouco não levantam pompom e fazem dancinha de saudação.
Eduardo Valente é longa-metragista de primeira viagem, mas já embarcou na primeira classe: antes da sessão em Paulínia, No Meu Lugar ganhou exibição no Festival de Cannes (por lá, o filme conquistou prêmio para desenvolvimento de roteiro). Valente já havia tirado uma casquinha da Croisette em 2002, com a consagração de seu primeiro curta, Um Sol Alaranjado, na categoria Cinéfondation (dedicada ao cinema universitário).
De 70 horas a 78 minutos
Registro sobre os bastidores da peça As Três Irmãs, do russo Anton Chekhov, Moscou coloca o Grupo Galpão numa sinuca de bico. Coutinho propôs à companhia de teatro de Belo Horizonte a montagem de um espetáculo com o qual os atores eram pouco ou nada familiarizados, tudo em apenas três semanas (geralmente, o processo leva meses). Enquanto isso, ele filmaria de exercícios a encenações, capturando o que chamou de "fragmentos e lampejos" de um espetáculo que nunca seria finalizado. Para dirigir a trupe, convocou Enrique Diaz, responsável pela desconstrutiva montagem Ensaio.Hamlet.
O filme é coerente à filmografia de Coutinho. Mais uma vez, ele aposta que ficção e realidade são tão distintas como vestidinhos vermelhos no armário da Mônica. "Toda memória é mentira e verdade. Não é a palavra pura; é o corpo que fala. Me interesso sobretudo pelo que acontece diante das câmeras", o cineasta explicou em entrevista coletiva de imprensa, nesta terça, 14.
E o processo "foi penoso". "Eu tinha 70 horas de filmagem ou mais, e as pessoas diziam que não havia filme ali." Na apresentação do filme, no dia anterior, ele já havia atestado: "Se não tivesse filme, eu ia pro convento...". Felizmente, no meio do caminho tinha um João, tinha um João no meio do caminho. Mais precisamente, João Moreira Salles, um dos produtores-executivos de Moscou - foi ele que convenceu Coutinho a tocar o filme adiante, compactando-o em enxutos 78 minutos (a primeira versão tinha mais de quatro horas).
Ao vivo, Coutinho mostra uma postura quase rabugenta, com ares de "não perturbe: gênio trabalhando". Unanimidade entre críticos, sua obra nem sempre desce tão fácil para o público - enquanto filmes como Jogo de Cena (2007) conseguem grande apelo popular, quase metade da plateia deixou a sala do Theatro Municipal, onde as sessões acontecem, antes que os créditos de Moscou subissem. "1850 pessoas [no Brasil] sabem quem é Chekhov", ele dá seu cálculo mambembe a um rapaz local, que faz o único comentário agressivo da coletiva (ele diz ter gostado do filme, mas que vários amigos "acharam chato").
Moscou, de fato, não é tão acessível quanto outros filmes do cineasta, com enfoques, por assim dizer, mais populares (como o dia-a-dia dos condôminos de Edifício Master, ou dos moradores do morro Babilônia, em Babilônia 2000). Mas o 11° longa do diretor (sete deles feitos de 10 anos para cá) não deixa de ser um dos mais coesos - por mais liquidificada que seja sua narrativa (se é que podemos usar essa palavra), ou que alguns estranhem a falta de entrevistas. Se Coutinho sempre afiançou que a presença da câmera faz de qualquer pessoa um intérprete, bom ou mau, em potencial, o que dizer do próprio ator, "esse que é pago para viver a paixão dos outros"? "Como você separa o ator da pessoa?", Coutinho indaga, embora já saibamos a resposta que se equilibra na ponta da língua do diretor de 76 anos: não se separa.
Violência sem clichê
A estreia em longa de Eduardo Valente quis escapulir do gênero "favela movie", a Havaianas do cinema brasileiro - costuma dar certo em todas as classes, além de ser excelente produto de exportação. Tarefa um tanto complicada para a sinopse que tinha: três histórias, passadas em tempos distintos mas relacionadas ao mesmo episódio - a morte de um refém, após intervenção mal-sucedida de um policial num assalto a uma casa de classe média alta, no Rio de Janeiro. Como sintetizou o diretor e também crítico de cinema, "a situação da violência como gerador que subjuga todos os cariocas".
São três núcleos. Há a mulher (Dedina Bernardelli) que, cinco anos depois, volta à residência com seus dois filhos e o novo marido. Assombrado pelo fiasco da operação, o policial (Márcio Vito) tenta tocar a vida, com apoio da filha. Por último, pouco antes do evento que deslanchará as narrativas acima, temos Beto (Raphael Sil), entregador de supermercado e morador de favela que se apaixona pela empregada da futura vítima.
Por motivos óbvios, No Meu Lugar tem, sim, predicados em comum a outros filmes que tanto reprisaram a "estética do miserê". Mas, se bate na mesma tecla da violência urbana, a produção consegue arrancar entrelinhas novas. Para começo de conversa, o pé é no freio: apesar do tema similar a filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite, Valente optou por uma linguagem mais lenta. "Tem essa visão de que favela é uma coisa dinâmica, que você precisa correr nela. Não vejo por que filmar a favela de uma outra forma que a casa da família", disse Valente..
Ele também confessou filiar-se à vertente mais autoral, definição que costuma acirrar, na maioria das vezes bestamente, a contraposição entre "cinema de arte" e "blockbuster". "Prefiro que uma pessoa saia tocada com o meu filme do que duas milhões vejam e se esqueçam do que viram." Ficou no ar se tal declaração seria uma alfinetada em Daniel Filho, grande homenageado do Festival de Paulínia e o atual "Moisés" do cine nacional, capaz de liderar multidões às salas de cinema com a franquia Se Eu Fosse Você.
O estreante reconhece a oscilação do público frente à obra. "Há três camadas de recepção: carioca, brasileira e estrangeira", explicou Valente. Em Cannes, por exemplo, nem todo mundo sacou o que é fichinha para qualquer morador do Rio. "Conversei com um espectador [do balneário francês] e ele disse que não entendeu a cena em que um garoto [traficante] aparece com rifle em mão. 'O que está acontecendo? É uma guerra'?, ele perguntou. Para ele, era uma cena quase surrealista."
Um das ideias de Valente era "fugir dos vícios de multiplot" - tramas paralelas que vão se empilhando ao longo do filme, até desembocar em um grand finale. "Não queria saber o quanto as histórias estavam inteligentemente costuradas, esse tipo de coisa", fez pouco caso à manha (polarizadora de opiniões) de diretores como Alejandro González Iñárritu, de Babel e Amores Brutos. "Queria dar mais destaque os atores, que as personagens tivessem vida própria."
E ter vida própria, nesse caso, era passar longe de "tipificar" Beto, o morador da favela. "O grande desafio foi não deixá-lo virar mais um, não deixá-lo virar uma metáfora." Se Valente foi 100% bem-sucedido em sua missão, a história é outra. Embora menos espalhafatoso que os "primos" do gênero, No Meu Lugar, a certa altura, reprisa cacoetes e faz o efeito dominó, mais uma vez, começar na favela até descer o asfalto. A partir daí, o sofrimento, sempre tão democrático, não fará distinção de classe.
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