A série distópica da Netflix nos ajuda a refletir sobre uma sociedade de vigilância, mas talvez não sobre os problemas tecnológicos futuros
Camilla Millan Publicado em 06/08/2020, às 07h00
Quando se trata de desconforto relacionado às tecnologias, a frase “isso é muito Black Mirror” vem à tona quase instantaneamente. Isso porque a série distópica original da Netflix consegue abordar o tema de maneira angustiante e crítica, propondo uma reflexão sobre certos meios de manipulação e controle.
Repleta de situações extremas e moralmente complexas, Black Mirror nos apresenta a uma sociedade que parece ter perdido o controle sobre o uso da tecnologia, camuflando-a com as relações sociais e corpóreas entre indivíduos. No entanto, não é, necessariamente, uma reflexão sobre uma possibilidade de futuro.
Em maio de 2020, Charlie Brooker, criador da série fez um anúncio surpreendente para muitos fãs: Não haverá uma nova temporada da produção, porque o ano já está muito sombrio devido à pandemia de coronavírus.
“Não tenho certeza se o público terá estômago para aguentar. As pessoas não precisam de mais histórias sobre o mundo desmoronando”, disse o criador ao site Radio Times. Quando chega ao ponto de uma série distópica não lançar mais episódios porque o mundo já é uma grande distopia, talvez seja necessário parar para refletir.
Estaríamos piores do que a sociedade fictícia retratada no seriado? As tecnologias se tornaram irreversivelmente negativas? Podemos esperar isso para o futuro? Conseguimos aprender algo com Black Mirror? Chegamos longe demais?
“Desde sempre, tivemos medo das novas tecnologias. Black Mirror faz isso, mas por outros mecanismos, como uma tecnologia que mexe com corpo, relações pessoais e uma sensação de ataque massivo a uma pessoa. Ela aparece sempre de uma maneira muito negativa - e isso faz parte também de uma história da ficção científica, normalmente distópica”, refletiu André Lemos sobre as discussões presentes na série.
Lemos é professor da UFBA e autor da obra Isso (não) é muito Black Mirror: passado, presente e futuro das tecnologias de informação e comunicação - livro que analisa os episódios do seriado e propõe discussões sobre tecnologia, comunicação, sociedade do espetáculo e outros temas.
O pesquisador acredita que a produção não aborda necessariamente o futuro, mas um passado. Segundo ele, isso se faz por meio da apresentação de invenções inéditas - e a ideia do livro foi, justamente, abordar uma perspectiva diferente:
“Black Mirror leva a esse estranhamento porque aparecem objetos ainda não existentes, e como eles não existem, as pessoas pensam estar falando de um futuro. No entanto, acredito que o argumento principal e toda a visão do seriado é baseada no que foi a sociedade espetáculo, uma vigilância panóptica, audiovisual”, disse.
Para Lemos, a questão é muito mais complexa: “A série não está falando do futuro nem do presente, acredito que o nosso presente e o nosso futuro próximo são bem piores comparando aos acontecimentos apresentados na série. É bem mais preocupante”.
Portanto, a angústia sentida ao assistir Black Mirror seria consequência principalmente de uma percepção de tecnologias responsáveis por afetar diferentes aspectos da vida.
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Liráucio Girardi Júnior, sociólogo e pesquisador sobre cibercultura e humanidades digitais, também comentou sobre o assunto: “A abordagem distópica já é clássica nos meios audiovisuais. Esse ‘medo’ é a manifestação do choque com as transformações e um possível prognóstico do mundo que nos espera se nada for feito. Normalmente, marca a impossibilidade de voltar ao passado e a incapacidade de lidar com o futuro imaginado. É uma tentativa de enquadrá-la simbolicamente frente ao mundo que nós, aparentemente, conhecíamos”.
Como já foi dito, a abordagem distópica não é algo novo. Diversas produções de ficção científica apresentam as ciências dialogando com um certo “medo do desconhecido”. Apesar da evolução dos conhecimentos tecnológicos, a angústia acerca da falta de limites da ciência parece permanecer.
Isso pode ser relacionado a uma falta de conhecimento envolvendo os processos científicos. Quantas pessoas sabem como funciona o avião, uma usina nuclear ou os algoritmos nas redes sociais? Quando pouco se conhece, outros indivíduos e empresas passam a ter o controle das produções - e ficamos à mercê de algo desconhecido.
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“Quando comecei a mexer na internet na década de 1990, existia uma rede chamada usenet, era um grupo de discussão planetário no qual as pessoas entravam com pseudônimos e participavam em ordem cronológica. Agora, nós temos o algoritmo no meio das plataformas, e esse tipo de curadoria da informação é muito complicada, porque eu não tenho mais o controle sobre aquilo”, explicou André Lemos.
Ainda, o pesquisador complementou: “Isso vai moldando ações, tanto de coisas do dia a dia como de questões políticas importantes. Acredito estarmos em um momento muito preocupante em relação ao desenvolvimento dessas tecnologias. Precisamos pensar, conversar e falar sobre isso. As pessoas, às vezes, não têm muita ideia do que essas plataformas fazem, então é preciso falar”.
O sociólogo Liráucio Júnior também comentou sobre as problemáticas das tecnologias: “A tendência delas é desaparecer como meios. Quando ligamos para alguém não temos ideia da ‘ciência’ utilizada para isso. No entanto, ela não existe fora das relações sociais nas quais se desenvolve. O desconhecimento, nesse sentido, não é apenas de ordem técnica, mas social e política. As plataformas e os meios digitais têm características muito particulares que não são apenas de ordem 'técnica'".
Apesar da trama de ficção científica apresentar novas tecnologias, André Lemos acredita de Black Mirror conversa com o passado, com uma “sociedade de espetáculo e de vigilância panóptica” a qual envolve câmeras e outros dispositivos visuais - algo que mudou com o passar dos anos.
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Para dar um exemplo, Lemos falou sobre “Crocodilo”, terceiro episódio da 4ª temporada da série: “Nele, a seguradora coloca um dispositivo para pegar a imagem vista pela pessoa, mas hoje temos sensores em todos os lugar, câmeras de vigilância, sensor de movimento, telefone celular e dados que colocamos na internet. Essas informações são de uma vigilância distribuída e digital muito mais sutil”.
Segundo o pesquisador, a ideia de uma câmera que consegue ver os lugares visitados pela pessoa seria uma “visão panóptica”, argumentada na série. No entanto, para ele, há meios atuais mais eficazes de conseguir informações: “Se vamos para as redes sociais, não precisam ver o que estou fazendo, pois sabem as informações passadas por mim”.
“‘Momento Waldo’, ‘Urso Branco’..., todos esses episódios são formas de pensar o contemporâneo. É como se os autores tivessem vendo tecnologias ainda não existentes, mas com um arcabouço teórico olhando pelo retrovisor - que era a discussão clássica da Escola de Frankfurt, Sociedade do Espetáculo, Guy Debord… Essas coisas ainda continuam a nos importunar, mas o desafio do futuro não é esse”.
Mesmo com esse diálogo com o passado, Lemos vê momentos nos quais a série toca o presente, como em “Queda Livre”: “Você vai dando ponto para as pessoas, algo muito próximo do que temos hoje, mas não é nada no futuro, nós já estamos assim. Toda a cultura do cancelamento é um pouco isso. Se você não está nas redes sociais, se você está cancelado, está ferrado. Para muitas pessoas, estar nas redes é algo fundamental. É o mesmo de se eu tirar os seus pontos, você vai desaparecendo - é a metáfora do episódio”.
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Para o sociólogo Liráucio Júnior, há outra reflexão importante em Black Mirror: “É importante pensar como a série mostra o movimento das personagens por um novo ambiente comunicacional que desestabiliza, remedia e se abre a múltiplas apropriações por parte das diversas posições sociais e seus interesses e desejos”.
Conversando com o passado, presente e futuro, Black Mirror, traz uma reflexão sobre a sociedade e a forma na qual lidamos com a tecnologia, mas será que a série fala sobre os verdadeiros problemas desse processo científico?
Para refletirmos sobre as problemáticas atuais da tecnologia, é preciso entender como vivemos e deixar um pouco de lado a ficção distópica da Netflix.
Segundo André Lemos, atualmente há um regime “PDPA”: plataformização, dataficação e performatividade algorítmica. “Isso está dentro de todas as coisas, do nosso corpo, das indústrias, escolas, plataformas - e é transformar todas as nossas ações em dados performativos que vão gerar ação sobre o que nós fazemos hoje”, disse.
Há diversas problemáticas nesse sistema de dados, de acordo com o professor: “Ele está na mão de cinco grandes empresas controladoras de tudo - desde as ações cotidianas mais banais até o corpo, relógios inteligentes, drogas inteligentes, equipamentos nas casas. Esses objetos estão ali puxando dados o tempo inteiro, então o nosso perigo é justamente uma hipervigilância e hiper monitoramento generalizado. Tudo que nós fazemos hoje, essa dataficação - alguns autores vão chamar de capitalismo de vigilância - é justamente baseado nessa captação de dados sobre as nossas intenções”.
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Com uma tecnologia e sociedade controlada por dados - estes manipulados por poucas pessoas - não sabemos quais e quantas informações sobre nós estão sendo usadas para, de certa forma, nos vigiar.
“O problema está nessa dataficação e nessa plataformização que transforma tudo em formas de vigilância - ela é central em Black Mirror, mas a série não fala sobre essa vigilância", explicou Lemos.
“Nós não precisamos filmar ninguém. Quanto mais livre você for, melhor para as plataformas. Elas estão captando o tempo inteiro. Você não precisa ter um olho em cima de você, você está oferecendo essas informações as quais serão usadas para diversos fins… Comerciais, políticos e sociais. Isso mostra a necessidade de reposicionarmos o nosso pensamento em relação à tecnologia. Todas as questões as quais vivemos hoje vêm justamente da internet. Fake news e a manipulação de sentimentos para manipular eleição são problemas que emergiram justamente nesse processo de dataficação e de redes sociais”, disse.
Segundo o sociólogo Liráucio Júnior, é preciso fazer uma reflexão, a qual não está necessariamente presente nos episódios de Black Mirror: “Há um processo histórico do mundo ocidental que ocorre dentro de uma ordem capitalista - talvez, a parte que fica oculta em boa parte dos episódios. Ou os responsáveis são as próprias personagens, ou trata-se de um tipo de ‘fatalidade’ gerada pelas próprias condições do novo ambiente comunicacional”.
O pesquisador tem alguns palpites sobre os principais problemas nesse processo: “A falta de construção de bens comuns relacionados às riquezas produzidas por meios digitais, a necessidade da eliminação do gap tecnológico vivido por diversos grupos sociais (desde o acesso à eletricidade, banda larga e dispositivos), a proteção dos dados que produzimos e a integração de estudos sobre os meios de comunicação (digitais) nas escolas”.
A opinião de André Lemos não é muito diferente. Ele fala sobre a necessidade de discutirmos as fake news, proteção de dados pessoais e o acesso à “tecnologia no sentido mais amplo”, considerando que ela inclui esgoto, água, luz e internet.
O professor também refletiu sobre outra problemática: a certificação digital de pessoas. “Estamos vendo hoje essas filas quilométricas na Caixa Econômica Federal porque as pessoas não têm essa identificação que possa fazer chegar ao dinheiro no celular da pessoa. Isso é feito em vários países e é fundamental”.
A discussão sobre tecnologia vai muito além de uma série distópica. As reflexões sobre o gerenciamento tecnológico se pautam em uma atualidade na qual, mais do que vigilância, percebemos um uso indevido de informações e dados pessoais - problemática que alcança grandes dimensões.
Em vez de usarmos os dados e recursos tecnológicos para possibilitar o acesso à informação, internet e recursos básicos, muitas vezes manipula-se números em prol de causas políticas e fake news. E agora eu te pergunto: até onde a tecnologia pode chegar?
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