Enquanto fala sobre Prisma, experiência multiplataforma iniciada com o disco AmerElo, e dos planos da TV da Lab Fantasma, rapper paulista lida com a ansiedade da quarentena com queijos feitos em casa
Pedro Antunes, editor-chefe Publicado em 31/05/2020, às 13h30
"Estamos zerando todos os tipos de entrevista, meu mano"
Emicida ri, mas faz sentido. São anos de entrevistas com o rapper paulista, desde as primeiras sedes da Laboratório Fantasma, empresa capitaneada por ele e pelo irmão Evandro Fioti, na zona norte de São Paulo, passando por papos em camarins, em pequenos vídeos de 15 segundos para stories do Instagram. Agora, nessa quinta-feira, 28, riscamos da lista a alternativa "entrevista por vídeo chamada".
Emicida está em casa. Eu na minha. Carol Pascoal, assessora, na dela também, cria a conexão. Pode ser bobo, mas é a entrevista mais íntima já feita com Leandro Roque de Oliveira. "Estou há 75 dias em casa", ele anuncia, em dado momento. É uma experiência distinta, de fato, estar cada um no próprio lar para trocar uma ideia. Mas Emicida está diferente também.
"Pô, tive que fingir que eu era um negrão muito mau numa época", ele diz, enquanto ri mais uma vez.
Noto esse movimento de calmaria vindo de Leandro/Emicida e trago o tema papara a conversa. Ele se diz feliz, admite. "Fui compreendendo cada vez mais a calma. Se a gente não se acalma, irmão, a gente não vai para nenhum lugar melhor do que esse que estamos agora, tá? Temos que acalmar para buscar os 4 princípios de Prisma".
Quatro princípios de Prisma? Espera, eu explico.
Emicida lançou, nessa semana, mais um ambicioso projeto chamado AmerElo Prisma. Sim, ele está relacionado com o álbum mais recente dele, AmarElo, de 2019. Desde o início do papo sobre o disco sucessor de Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…, de 2019, o papo era que não era só um álbum, era uma experiência social. Meses depois, Emicida leva o que era disco em algo maior.
Prisma é uma interessante proposta multiplataforma que expande além dos registros fonográficos e inclui vídeos (às quartas-feiras, em canal dele no YouTube), podcast (às sextas-feiras, nas plataformas de streaming), e imagens e textos (publicados nas redes sociais, Instagram, Facebook e Twitter). Tudo isso começou em 27 de maio, quarta-feira, um dia antes da entrevista.
E já chegou na minha bolha, por exemplo. Vi nas redes sociais alguém compartilhando o 1º episódio do podcast, de título "Movimento 1: Paz/Corpo", publicado no dia 28.
O primeiro episódio parte de experiências pessoais para falar do coletivo sobre um dos quatro princípios de Prisma falados por Emicida ali acima. São eles, no total: paz, clareza, coragem e compaixão.
Os quatro conceitos foram retirados de um texto de um monge budista e poeta chamado Thich Nhat Hanh. O rapper encontrou neles algo sobre o qual tinha rimado na primeira mixtape, chamada Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida Até Que Eu Cheguei Longe (2009). Na música "A Cada Vento", como ele lembra na entrevista, versava "Clareza na ideia, pureza no coração. Sentimento como guia, honestidade como religião". "Sinceramente, é isso, irmão", segue a canção.
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E ainda é isso. "Ali estão as bases da existência tranquila. Já estavam estabelecidos os quatro pilares. Não acho que o número quatro seja um acaso, já que o hip-hop possui quatro elementos e eu gostava do Quarteto Fantástico".
AmarElo é um dos melhores discos de 2019 - e está na seleção da Rolling Stone Brasil de 30 discos que você deveria ter ouvido do ano passado - e dá início ao tratado de "cuidar de mim", levado à enésima potência agora, com Prisma.
Emicida está cuidando de si. Da esposa, das filhas e da horta caseira também. O vício mais recente é fazer queijos em casa. "Fiquei arrasado quando o parmesão que tentei fazer deu errado. Tentei fazer com açafrão. Para mim, foi tipo a sensação de que a humanidade não deu certo. Mas hoje, as mussarelas que eu fiz funcionaram, elas estão lá sorrindo para mim. Então, mano, acho que a vida vale a pena. E é a nisso que estou me apegando."
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A seguir, a conversa com Emicida sobre Prisma, queijos caseiros, barbas e bigodes, histórias em quadrinhos, e o novo canal da Lab Fantasma TV no Twitch, serviço de streaming de vídeos e lives que estreou no dia 30, sábado, e terá programação fixa a partir de 15 de junho.
"Se o Emicida de 15 anos atrás olhasse para esse cara que faz queijo e yoga em casa, sério, ele diria: tá brincando comigo", diverte-se Leandro.
Rolling Stone Brasil: Estava assistindo ao Movimento 1 para sacar o projeto. Queria voltar um pouquinho no em todo o processo de disco. Lembro quando AmarElo estava para sair, era uma coisa que não era um disco, era muito mais do que isso. Temos um intervalo entre o AmarElo, o disco, e esse experimento social que leva o nome de Prisma. Tudo nasceu junto?
Emicida: O disco me faz pesquisar até agora, mano. Quando bato o martelo e chego à primeira conclusão de que, mano, eu preciso dividir uma hora de música, mais ou menos, com as pessoas, é porque encontro uma linha de raciocínio que acho interessante. E essa linha não é necessariamente findada no disco. Chamar isso de experimento social é porque tenho uma reflexão desde a primeira Batalha de MCs lá em 2006, a gente tem uma trajetória de construir e transformar todos os ambientes que a gente passa. As Batalhas de MCs tinham uma atenção e receberam outro tipo de atenção depois que a gente passa.
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A própria música rap tinha uma atenção e era feita de uma determinada maneira. A nossa produção audiovisual. O ambiente da moda. A gente sempre foi um epicentro de uma série de transformações criativas. Por isso, acho que o termo faz justiça. Cada movimento que a gente dá é experimento social. Não necessariamente um disco. O disco faz parte de tudo isso. As pessoas vão receber 40 minutos, 50 minutos de música em casa. Mas isso não termina no disco.
Se der uma busca nas coisas marcadas no disco AmarElo nas redes sociais, você vai encontrar pessoa que usam o álbum em forma de terapia, não to falando de pessoas que se sentem bem ouvindo música somente, estou falando de profissionais da saúde mental que utilizam o disco no tratamento de pessoas. Isso é muito encantador para mim. Esse experimento vai até jovens que constroem histórias em quadrinhos independentes sobre esse projeto. Isso tá embaixo do guarda-chuva de possibilidade que é o AmarElo. A intenção do projeto é realmente mostrar que o universo é muito mais amplo do que a gente concebe porque a gente olha o mundo por uma única fresta e perde todas as outras luzes desse prisma. Por isso Prisma é o prisma.
Entendi. Mas esse lance de linha de raciocínio que veio só para AmarElo ou é algo de antes? Ou seja, desde as nossas primeiras entrevistas, no primeiro Laboratório Fantasma, você usava isso para criar? Ou é algo que você aprendeu com o tempo?
Como era o imóvel?
Lembro que era um teto baixo, escadinha.
Era Avenida Olavo Fontoura, número 43, em cima de um cabeleireiro chamado O Cafona, que tem mais de 50 anos. Inclusive, uma vez, deixei eles fazerem minha barba, fechei os olhos e os caras arrancaram meu bigode. Fiquei muito puto porque tenho pouco bigode, então tenho um apreço por ele. Poucas coisas são tão valiosas para mim do que meu pouco bigode. Foi a única vez que um barbeiro arrancou meu bigode e eu fiquei cheio de ódio.
Eu entendo. Faz anos que não tiro barba e o bigode. Mas como detesto meu queixo, deixo a barba mesmo para disfarçar.
Você já viajou em uma fita que depois você fica refém da barba?
Fui refém de não tirar, por uns 7 ou 8 anos, por exemplo.
Richard Dawkins, um biólogo, mano crânio, tem um livro que chama O Gene Egoísta, que diz que toda a evolução é para servir um único gene e para que ele progrida. E se, nesse tempo todo, a gente tá só trabalhando para as barbas, tá ligado?
[Os dois riem]
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E em algum momento ter a barba virou normal.
Por causa do desleixo, ela começa a ganhar corpo. Lá no papo de segunda, rolou um papo de todos chegarem com barba feita. Eu segurei até o dia do programa. Passei a maquininha e ficou um pouco mais alta. Mas eu fiquei, mano, totalmente descaracterizado, Pedro. Totalmente. Não era eu.
É, quando fico de bigode, a galera estranha.
Pô, fiz a barba e fiquei só de bigode. Botei um boné e fui ao mercado tranquilão. Tava tipo um Belchior da Etiópia.
Mas, Leandro, deixa eu te perguntar. Tenho a impressão de que, mesmo antes da quarentena, quando você não está em show, está em casa. Você é caseirão, né?
Super. Aliás, fico até mal às vezes, mano. Porque chega a sexta-feira e telefone começa a tocar. Eu sempre tenho que inventar umas desculpas, Pedro. Porque gosto de ficar em casa de verdade, mano. Tenho uma casa muito legal, gosto dos meus cachorros, gosto das minhas filhas, gosto dos livros, de ouvir disco.
Tem uma parada de sair da rua, eu não tenho tesão de ir para balada mais. Quando era moleque, eu ia para tocar. Tem uma coisa louca, eu ia, mas gosto muito de música, é incrível que nos lugares para ouvir música, as pessoas vão para conversar mais alto do que a música. E aí, se você fala pra pessoa é que eu tá tentando escutar o som que o mano tá tocando, é a pior grosseria do mundo. Parece que voce foi lá para conversar, não para ouvir o artista. Então eu pego e ponho o disco para tocar aqui, tá ligado? Aqui em casa, posso ouvir o barato. Sou super caseiro. Gosto de fazer comida, tá ligado?
E qual é a sua especialidade?
Pô, um monte de coisa. Sei fazer pizza. Aprendi com os italianos. Veio até um mano aqui uma vez, amigo dos Caputo [da Caputo's Pizzeria], lá de Nova York, que comeu uma pizza aqui em casa. Ele falou: mano, você pode trabalhar lá em Nova York. Então, também, dependendo do que acontecer depois do coronavírus, você pode me encontrar entregando pizza por lá.
[Os dois riem, de novo.]
Bom, estou aprendendo a fazer umas comidas. Carne de panela, por exemplo.
Isso eu não sei fazer.
É bem simples, é só jogar as carne e as coisas na panela de pressão. O que não pode é ter medo dela.
A gente tem uma boa relação, eu e a panela de pressão. Mas você já cozinha?
Não, não sei fazer nada, mas na quarentena, dá 14h eu já estou fora do expediente por causa da redução de jornada. Então, temos cozinhado mais. Antes, ficava na redação até tarde, a Cássia, minha namorada, começava a lidar com o jantar, às vezes até tinha terminado quando eu chegava. Ou a gente pedia delivery.
Não pedi delivery nenhum dia aqui.
Aqui a gente pedia, mas meu cartão foi clonado, não consigo mais fazer compra por aplicativo.
Mano, me clonaram uma vez também. Os caras clonaram meu cartão de crédito e o cara gastou R$ 3 mil no Giraffas [rede de fast food brasileira]. Eu não consigo entender. Queria encontrar esse cara. Porque um prato no Girafas é R$ 11, mano. O cara parou na frente da quebrada e fez um drive-thru, tipo, fez um aleluia de batata frita e bife.
Ia te perguntar de rotina de casa, estamos em outro momento de estar em casa, né? As pessoas precisam estar em casa. Recebemos as piores notícias vindas de fora de casa todos os dias. Precisou acrescentar novas coisas para ter calma e lidar com ansiedade para absorver tudo o que está acontecendo?
Eu já tenho uma rotina de ser low profile, tá ligado? E a Marina, que é minha esposa, tem um uma visão parecida com a minha. Então a gente gosta de cuidar da horta aqui, a gente tem uma horta que é um dos nossos projetos juntos, sacou? Gosto muito de ficar em casa, mas eu não conseguia. O que fiz durante esses anos que eu moro aqui é que eu comprava umas coisas muito legais e deixava elas guardadas. Agora eu to abrindo e tirando tudo do plástico. Eu to numa rotina de descobrir um monte de coisa.
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Para mim, o mais desgastante de tudo, por mais que eu saiba lavar meu banheiro, fazer minha comida, cuidar da minha horta, cuidar das minhas filhas, esses não eram afazeres que eu fazia porque tinha pessoas trabalhando aqui. No começo dessa situação a gente dispensou as pessoas, que continuaram recebendo, claro. E a gente se divide entre cuidar das crianças, tarefas domésticas, obrigações externas, já que agora somos profissionais nesse incrível mundo do home office no qual todos existimos agora e todos acreditam que você pode emendar 8 reuniões em 8 horas úteis de trabalho, sacou?
Então, meu parça, eu tô numa luta até hoje para organizar uma rotina. Já escrevi numa folha e colei na parede, listando os horários e as atividades, tipo às 7h, às 8h, e tal. Tentei fazer isso de váris maneiras, mas não deu certo. Então, eu me considero um vencedor quando eu consigo fazer uma coisa muito simples, se lavei o banheiro, fiz o almoço, coloquei a criança para aula online dela, cheguei junto para ajudar um pouco, e chega a noite eu consigo ler um livro - e dia desses eu li Maya Angelou - aí já me sinto um campeão, sabe, parça? Eu não fico me cobrando que preciso fazer isso ou aquilo. É um momento de baixar as expectativas de produção, mano.
Tem que ser assim, mesmo.
Pra nós, na nossa cabeça… O escritório do Chorão era na praia, o nosso é na nossa cabeça, mano. Independentemente de você estar aí ou na Rolling Stone, é a sua cabeça que tá fritando, e tá fritando com tudo o que tá saindo de comunicação a respeito da música - e o universo da música, pelo amor de Deus é bem pequeno, coisa que você resolve em 2 horas, né? Eu vi um filme do [cineasta Werner] Herzog, chamado Lo and Behold [de 2016]. Ele fala que hoje com a produção de dados que a gente tem, se a gente colocar todo o conteúdo que a gente produz em CDs e empilhasse, dava para chegar até a Lua e voltar, todo dia. Tá ligado, parça?
Tudo isso tá acontecendo, tá pipocando na sua cabeça. E aí tem as informações da pandemia, que não chegam de uma forma só. São várias coisas dissonantes. E tem também a vida pessoal, que você não resolve as coisas num estalar de dedos. Quando você vê, passou 2 horas para lavar uma louça porque você foi deixando, deixando, deixando…
Então, estou partindo do simples, Pedro, tô partindo do simples. Tô igual uma velhinha, aprendi a fazer uns queijos bem loucos, estou maturando queijo em casa agora. Ontem, fiquei triste porque tentei fazer um parmesão bem louco e deu tudo errado. Tentei inventar um parmesão com açafrão e deu tudo errado no meu queijo. Para mim, foi uma sensação que a humanidade não deu certo. Hoje as mussarelas funcionaram, elas tão lá sorrindo pra mim, então, mano, acho que a vida vale a pena e é nisso que eu to me apegando.
É muito difícil fazer queijo?
Depende do queijo. Um queijo tipo Minas Frescal é simples. Tem que ser leite cru ou de saquinho UHT, sal e coalho, que é um negocinho que você coloca uma tampinha. É misturar, deixar ele solidificar, prensar, filtrar, deixar ali e pronto, pode ser consumido. Os outros precisam de outro manuseio, daí virou minha meditação, e entrei nessa viagem da meditação. Eu sempre falei que nunca vou conseguir meditar, mas, às vezes, acordo mais cedo e fico com a mente daora, tá ligado? Vendo os pensamentos passarem. Fazemos yoga às vezes aqui em casa, todos juntos. O que é uma coisa que se o Emicida de 15 anos atrás olhasse para esse cara que faz queijo e yoga em casa, sério, ele diria: tá brincando comigo.
É um lance chamado pelos gringos de mindfulness, não? De conseguir ter uma mente sã, de meditação e tal. Eu tentando encontrar uma conexão entre meditação, de AmarElo, de Prisma, de estar bem com o que existe ao redor. Fiquei pensando se essas coisas estão conectadas. Se o AmarElo trouxe você para esse lugar ou se esse lugar levou você para AmarElo?
Acho que é o segundo. Esse lugar me trouxe para o AmarElo. Eu nem chamo de mindfulness, que a tradução seria estar com a cabeça no presente aqui. E é assim que eu falo: quando você for a algum lugar, esteja nele. Se vale a pena fazer, vale a pena fazer bem feito, como dizem os mais velhos. A gente faz tanta coisa e acaba que não estamos em nenhuma, entendeu? A gente não resolve o escritório, chega em casa com a vibe do escritório e arranja treta no relacionamento e no dia seguinte, quando volta ao escritório, está com as tretas do relacionamento na cabeça. Daí entram as coisas de família, de trabalho, nossas ambições, sacou? Mano, eu de verdade venho vivendo de uma maneira muito suave, tá ligado?
Quando a gente tava fazendo a live de 8 horas, passamos o repertório desde o começo e encontrei nas primeiras mixtapes os desejos que só puderam ser compartilhados numa escala maior no AmarElo, tá ligado, mano? Existia um grito de amplitude desse universo, de abaixar a aguarda, de olhar o mundo por outra perspectiva, de sensibilidade, mas o ambiente onde música rap cresce naturalmente não permitida essa perspectiva. Se eu chegasse, em 2008, e cantasse sobre o quão fascinante poderia ser ver o feijão brotar no trabalho de escola da minha filha, provavelmente as coisas não teriam acontecido do jeito que aconteceram.
Tudo o que fizemos e construímos foi para ampliar esse universo. Nesse momento, então, a gente tem uma percepção. E não é uma contradição, é só um reflexo da condição humana porque daqui a 15 dias, Pedro, você pode descer a sua rua, virar uma esquina, encontrar em uma capa de jornal um assunto que vai mudar todas as suas convicções. E tá tudo certo, mano. Ninguém precisa abraçar todas as informações como se fossem uma âncora, mas existe um pensamento binário, ou você é isso ou aquilo, a gente tá perdendo um monte de camada de cinza, que são fundamentais para a experiência humana.
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A gente precisa fazer valer as condições que trouxeram a gente até aqui, mas, na verdade, o que a gente tá fazendo é desperdiçar o tempo. Estamos jogando 10 anos ou 20 anos fora porque a gente tá vivendo como se fosse uma bandeira. A gente não é uma bandeira, tá ligado? Nesse sentido, colocar a nossa cabeça no lugar onde a gente está é a parada mais saudável que a gente pode fazer com relação a isso.
Sim, existe uma conexão mindfulness e o Prisma. É um universo que tenho passeado não só pelas referências que leio, mas também pelo lugar onde eu vivo. Para você ver que barato louco. No Réveillon, a gente foi passar férias, eu e minha família, no Vietnã. A menina que organizou minha viagem criou meio que como uma surpresa. Chegue no Vietnã e passei o réveillon num templo budista, um lugar chamado Jardim Ancestral. A percepção dessa moça que ajudou a gente organizar a viagem notou que eu iria gostar do lugar. De fato, eu gostei. As crianças também. A gente é muito, mano, e a vida é mais.
Ter me relacionado mais com os velhinhos, Pedro, fez toda a diferença. Wilson das Neves, Dona Onete, as tiazinhas da Igreja do Rosário. Não só eles, todos os outros mais antigos que a gente se relaciona, Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil, eles têm outra perspectiva e outra relação com os erros, mano, tá ligado? A relação com a capacidade do ser humano em lidar com o erro é uma parada muito perigosa. Isso tem empurrado um monte de gente para a depressão. Os velhinhos me fizeram pensar no tempo. Pô, o Wilson das Neves gravava em fita cassete. Eu tinha que esperar 30 dias para o barato chegar aqui. E eu esperei. Não tinha áudio de WhatsApp.
O que me pegou na quarentena foi perder o controle das coisas. Tudo se descontrolou, eu tinha planos, você tinha turnê. E até hoje a gente não sabe como a gente via colocar esses planos em prática. Eu estava surtado e alguém me disse: "você só vai ter paz quando você achar que deve controlar tudo."
Concordo.
É ser tipo água, né?
É isso, meu mano. Desde que a gente domesticou o fogo a gente precisa se sentir no controle da natureza. Se você entrar no seu Instagram, tem trocentas pessoas postando receita, crochê, bagulho de maneira, pintou um quadro, a gente tem a necessidade de criar com as nossas mãos de sentir no controle de alguma coisa. A gente é organizado por demandas externas da gente. Tem uma coisa da gente se relacionar com o agora. Na primeira semana que fiquei de quarentena e paramos o Papo de Segunda [no canal GNT]. Começamos a gravar de ele de casa e tal. A primeira pauta foi das pessoas que descobriram com quem estavam se relacionando por causa da quarentena. Mano, as pessoas não conseguiam conversar com quem elas namoravam. Tipo, nossa, fulano tem tais hábitos.
A gente tá em um modo avião tão absurdo que amarramos a nossa vida em pessoas que não fazemos a menor ideia. Vi nas redes sociais alguém reclamando de certo hábito de fulano e eu pensei: pô, mas vocês namoram há quatro anos. Eu me considero uma pessoa sensível, sempre aberta para aprender. Não quer dizer que não erro. Vou dar muita oreiada aqui ainda.
Paz, clareza, coragem e compreensão. Os 4 conceitos de Prisma. É um lance budista. Quando eles entraram na sua vida?
Voltemos à primeira mixtape, a música "A Cada Vento" dizia: "Clareza na ideia, pureza no coração. Sentimento como guia, honestidade como religião". Ali, as bases da existência tranquila já estavam estabelecidas em 4 pilares. Não acho que o número quatro seja um acaso, eu acho que o hip-hop tem 4 elementos e eu gostava do Quarteto Fantástico. Aí, com o passar dos anos, eu conheci esse mano, um monge budista chamado Thich Nhat Hanh, que é do Vietnã, inclusive, e aí lendo um dos livros dele me veio a ideia de organizar isso em 4 pilares os quais considero fundamentais para a transformação da realidade.
Obviamente, eu li isso e pensei que ele tá falando esse bagulho daora porque não mora na quebrada, não é preto… Fiz essa conta besta, mas aí, mano, quando você vai ver onde ele estava quando estava dizendo essas ideias e descobri que era durante a Guerra do Vietnã. O cara defendia esses princípios no meio da guerra. Quem sou eu para diminuir essa perspectiva. Quando você consegue pacificar a sua compreensão, você consegue olhar para a realidade e entender as coisas com mais clareza. A clareza faz seu discernimento nadar de braçada no que você vê. Você vai tomar uma atitude certa ou uma atitude errada. Quando você consegue se colocar no lugar dos outros, a sua compaixão floresce. Aí vem a empatia, que é uma palavra muito popular.
Hoje, fala-se muito de empatia, mas se a gente não for cuidadoso, ela vai ser esvaziada, igual empoderamento, é uma palavra que virou publicitária, sacou? Quando você alcança esse grau de compaixão, e consegue se colocar no lugar dos outros, irmão, o que acontece? Você começa a querer mudar as coisas. E aí vem a coragem. E assim a gente transforma a realidade, por isso acho que esses quatro pilares estão muito casados com as 4 coisas que eu defendia, mas com palavras diferentes, lá na primeira mixtape, sacou?
Completamente.
Quando comprei essa casa aqui, morria de medo de virar o João Gilberto. Ficava pensando que iria cantar sobre passarinhos voando, tio. Put* que o pariu. Ficava olhando e lá embaixo tem uma lagoa. Vou fazer música de pato nadando na lagoa? Era um desespero meu. Mano, essa relação com a natureza eu sempre quis ter e foi roubada de nós, sabe? Acho que tenho equilibrado isso bem. A primeira coisa que precisamos reaver é a nossa calma, entendeu? Na esteira do grande assalto que a gente sofreu, que levaram as nossas almas, o resto da nossa atitude é desesperada por causa do aluguel que a gente tem que pagar, por causa das nossas contas, do nosso relacionamento que vai acabar, dos nossos filhos que vão passar fome, da nossa família que tá passando necessidade. A gente só pensa nessas coisas desesperadas, mano.
Tudo isso faz parte do processo de de encontrar a calma como uma coisa grandiosa. Pude andar pela África, pelos miolos do Brasil, e sentando e trocando ideia com os velhinhos, tio. É incrível como eles olham par a floresta e veem coisas que a gente não vê mais. A gente parece que vive de olhos vendados por causa das nossas experiências de metrópole. Put*, irmão, eu não quero mais ver o mundo por uma fresta. Quero ver como ele é. É um grande ciclo, mano.
É a ideia da peça de engrenagem que está no primeiro vídeo de Prisma, né?
É uma metáfora simples: a gente é uma peça dentro de uma máquina gigantesca, mano. Se a gente desconecta uma das peças, aí é o colapso. O que a gente tá vendo agora, o colapso, um monte e de coisa que a gente acreditou que precisava, entendeu? Tenho observado minha realidade e tenho olhado para os hábitos antigos e, poxa, eu acho que fiz muita coisa mais pelo vício de fazer do que necessariamente precisar fazer.
Tenho pensado nisso. De coisas com relação à bebida e cigarro. Tudo junto, sabe? Isso me leva à uma impressão: já falamos por telefone, pessoalmente. Agora, por vídeo-chamada.
Estamos zerando as formas de fazer entrevista, meu mano.
Mas o que queria dizer é que você parece estar muito mais calmo do que todas as outras vezes. A fala, parece, está em outro lugar. Você reparou nessa transformação?
Pô, tive que fingir que eu era um negrão muito mau numa época. Vamos fazer uma viagem de uns 8 anos para trás. No quando, começam a se organizar e se mover numa escala maior isso que foi chamado de lutas identitárias, é fácil as pessoas escreverem coisas bonitas sobre causas importantes. Mas aquilo não se traduz em atitudes na imensa maioria das vezes. Talvez meu super-poder seja ter uma grande sensibilidade para obsertvar. E isso sempre me faz pensar nesse questionamento: "tá, mas e depois?" Posso dizer que vou fazer uma história em quadrinhos ou colocar fogo no Congresso Nacional. Eu perguntaria: e depois? Sacou, meu mano?
Observar tantas pessoas falando sem que isso se traduzisse em atitudes me fez pensar que eu precisava ter um grupo de atitudes que me dessem orgulho antes de sair por aí falando para as pessoas fazerem isso ou aquilo. Foi nisso que me concentrei nos últimos anos. Construí uma outra forma de me relacionar com a realidade e me cercar de pessoas que têm uma visão de mundo onde a intenção delas também é essa. Fico feliz que você tenha falado sobre isso porque essa é a minha percepção também e tenho me concentrado e me esforçado para ter isso.
Estamos atravessando o maior inferno e pareço tranquilão? Não é isso. Penso em todos os bagulhos ruins que eu já vivi, Pedro. E já vivi coisa ruim para caramba. A gente tá falando de quarentena e hoje eu estou 75 dias em casa. Entendeu. Eu não imaginava isso há 6 meses. Mas vejo como um copo meio cheio. Eu sou um esperançoso incorrigível. Eu busco ver a realidade positiva porque tenho duas crianças debaixo das minhas asas. Não posso dizer para elas que viver não faz sentido, tá ligado?
Na virada dos anos 1990 para 2000, o Jardim Fontalis [na Zona Norte de São Paulo] atravessou um dos momentos mais violentos da história. Teve chacina que mataram dois amigos nossos. Teve toque de recolher. A gente foi obrigado a ficar dentro de casa e o mundo não viu. Sacou? As pessoas que estudavam e trabalhavam, faziam hora extra sei lá, viviam com o coração na boca porque elas chegavam no ônibus das 23h30 e os caras tinham colocado um aviso nos postes que quem estivesse na rua depois das 22h eles sentariam o dedo. O mundo não viu isso.
Isso que a gente tá atravessando na escala global agora, obviamente é desesperador. Eu também faço uma conta de toda as situações desesperadoras que vivi na minha vida. E o mundo não estava preocupado com ela. Eu estou muito preocupado com o destino do mundo, e verdade, todos nós temos que estar. Mas também olho para as catástrofes que vivi e atravessei outras coisas muito difíceis. Vi uma entrevista do BB King e ele disse uma coisa que me tocou profundamente. Ele disse: quando cheguei aqui, se um negro morria, diziam 'vai no pegar outro'. Tá ligado, meu mano?
Existe uma série de coisas tristes que a gente pode olhar na nossa realidade e vai falar que não vai dar certo. Mas temos exemplos de resistência foda. O País não explodiu mesmo como só os grandes desencontros da humanidade já geraram, é porque temos um material humano riquíssimo. Essa porr* me inspira. Falo zoando do Wilson das Neves e as fitas cassetes, mas ter me relacionado com ele e com pessoas mais velhas me fez perceber que, com eles, nada precisa ser para sempre. Tinha uma outra forma de ver a vida. Quando eu estava na África, as tiazinhas tinham uma outra forma de ver a vida também. Fui uma vez para o Centro-Oeste ficar em um santuário indígena que estavam querendo destruir para fazer um condomínio. Eu tava com esses caras, em um momento de extrema tensão, e rolava a Copa do Mundo. A serenidade e a entrega desses caras e dessas mulheres em um momento de extrema tensão foi a melhor universidade que eu poderia ter feito para lidar com momentos ruins, meu mano. Entende?
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Por isso, fui me comprometendo cada vez mais com a calma, irmão. Sem ela, não vamos para nenhum lugar melhor do que esse que a gente já está. É preciso acalmar para buscar os 4 princípios do Prisma.
Nesse contexto, o conceito de Prisma, tem também tem a TV da LAB Fantasma, que estreia em 30 de maio. Há quanto tempo tem a ideia de fazer isso e levar para esse ambiente audiovisual?
Desde o momento em que entramos para o mercado da música, a gente percebeu que éramos mais do que música. Claro, vender disco ainda era o primeiro chamariz, porque a venda de disco em um ambiente inóspito que era a música independente e, sobretudo, na música rap. A gente consegue ter números de artistas que estavam mais consolidados que a gente naquele período. A gente vendeu 10 mil cópias em um ano. O que foi um feito fantástico para um gênero tão marginalizado quanto o nosso. E que fizesse justiça a todas as outras coisas que a gente têm capacidade de produzir.
E aí, aquilo ajudou a produzir show, camiseta, e cada vez mais na medida da nossa resolução, a gente foi se transformando em um hub de muita coisa. A moda entrou mais forte, o audiovisual entra e se intensifica a experiência do vídeo. No que a gente vivencia hoje não existe uma experiência como a Twitch TV, sobretudo nesse momento. Agora, a gente tem muita coisa para compartilhar. A gente tem ideia do que a gente gostaria do que fosse compartilhado, seja comigo, com o Fioti, seja com a Drik [Barbosa], com Rael, seja no grande número de histórias que existem debaixo do Laboratório Fantasma que a gente nunca compartilhou. Tudo isso pode ajudar a gente a iniciar uma parada de transformação. A gente, há alguns anos, nos entendemos como uma empresa de entretenimento. A música vai ser uma boa parte do nosso conteúdo, mas nossa missão é produzir e transpor isso para a Twitch TV. A gente tá falando de música, de roupa, de cinema, de videogame, de quadrinhos, tudo isso vai dar um salto nos próximos anos, sacou? A gente foi pego no contrapé pelo coronavírus, o nosso disco tinha acabado de sair na Europa, ainda estávamos empolgados. Nessa semana saiu uma resenha bonitona dele na Inglaterra, fizemos uma versão em inglês de "Quem Tem um Amigo (Tem Tudo)". O vírus gerou uma interrupção e a gente usa nosso tempo para criar algo que tem mais tentáculos que não seja só música.
Acho interessante pensar em conteúdo com uma programação, no fim das contas. As pessoas estão voltando à ideia de querer sintonizar em algum lugar e assistir ao conteúdo, sem ter que escolher entre várias séries e filmes no streaming. Eu, mesmo, passo horas tentando escolher o que assistir.
Tem uma coisa também que gera desconforto é a relação doentia que a gente tem com o tempo, essa possibilidade de consumir um universo de coisas por um momento. A gente só consegue prestar atenção em uma coisa por vez. Eu não gosto de assistir à uma serie inteira de uma tacada só. A gente tem o storyboard do roteirista e é incrível, mas existem outras coisas que a gente fica conjecturando ao longo da semana, entre um episódio e outro. E depois seremos supreendidos pela capacidade do roteirista. Essa coisa não existe quando assistimos a todos os episódios na sequência, de uma vez, sacou? A gente vai começar, sabe? É uma experiência bacana, mesmo. Tô concentrado em voltar a desenhar histórias em quadrinhos, quero ajudar pessoas a produzirem coisas legais. A gente conhece muita coisa incrível e pode fazer muita coisa incrível para o canal. A parada que eu gosto demais e tem crescido são os games. Quero estar perto disso também. Quero mais. Quero desenhar. Quero escrever roteiro de jogo. A Carol [Pascoal, assessora de imprensa] até olha e arregala o olho. E fala: "Meu Deus do céu, eu só queria férias, cara".
Dessa vez, os três riem, cada um na sua casa, em uma tela compartilhada de computador.
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