Para Todos os Garotos que Já Amei, Você Nem Imagina e Eu Nunca… conquistaram o público com sensibilidade e representatividade
Julia Harumi Morita | @the_harumi Publicado em 13/05/2020, às 07h00
Há dois anos, a Netflix começou a investir em produções originais voltadas para o público adolescente. Contudo, a produtora apostou em personagens representativos, que fugissem do velho padrão de romance entre dois jovens brancos e héteros. E foi assim que plataforma de streaming abriu as portas para as protagonistas asiáticas.
Menos de um mês após o lançamento de Love Simon (2018) nos cinemas, a Netflix anunciou Alex Strangelove (2018), uma comédia romântica com um humor inusitado e piadas sobre a descoberta da sexualidade. O filme dirigido por Craig Johnson e estrelado por Daniel Doheny abriu os caminhos para outros personagens LGBTQ+ nas séries Everything Sucks (2018), Gatunas (2019) e The Politician (2019).
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Afinal, não faz sentido retratar a juventude moderna sem levar em consideração os problemas que a acompanham e ganham cada vez mais espaço para serem expostos e debatidos no mundo real. Porém, a plataforma também cometeu deslizes nessa trajetória de abraçar a “problematização”.
Insatiable (2018) e Crush à Altura (2019) tentaram abordar o desconforto feminino com o próprio corpo, mas não conquistaram o público. Longe de elogios, as produções foram criticadas pelo roteiro fraco e até mesmo acusadas de gordofobia.
Entre erros e acertos, a Netflix deu continuidade à trajetória de exploração no mundo dos personagens excepcionais, caminhou até uma desconhecida e empoeirada porta ignorada por Hollywood e abriu o caminho para uma nova protagonista, a mulher asiática.
Neste momento, deixo a impessoalidade de lado para trazer um pouco das minhas experiências pessoais. Como uma jovem yonsei - quarta geração de descendentes japoneses no Brasil - nascida no final dos anos 1990, minha infância e adolescência foram rodeadas de filmes e séries norte-americanas, de Disney a Nickelodeon.
Eu só fui perceber o abismo que me separava culturalmente das personagens loiras de olhos azuis de comédias adolescentes, quando assisti Para Todos os Garotos que Já Amei (2018) e me deparei com um pequeno elemento cenográfico utilizado para compor o universo de Lara Jean, um yakult.
Ao ver a bebida preferida de Jean, fiquei surpresa e ri em uma cena claramente sem pretensões de ser cômica. Imediatamente lembrei dos tempos em que minha mãe comprava pacotes de yakult e eu tomava uma garrafinha da bebida japonesa quase todos os dias.
Para Todos os Garotos que Já Amei pode reproduzir o clichê de uma garota tímida que se envolve com o garoto mais popular da escola - um homem branco -, mas o filme foi a estreia bem-sucedida de uma nova protagonista que não ia ser esquecida tão cedo.
Pouco tempo depois do lançamento de Você Nem Imagina, as redes sociais, principalmente o Twitter, se empolgaram com o novo filme de Alice Wu e instigaram outros usuários a ver o filme com elogios à narrativa e atriz principal, Leah Lewis.
O longa-metragem realmente é um respiro para quem já estava entediado com o repetitivo roteiro dos romances adolescentes. Ellie Chu é uma estudante tímida, mas determinada em ganhar dinheiro com a venda de redações no colégio e cuidar do pai depressivo, mesmo que para isso precise trabalhar por ele na estação de trem da cidade de Squahamish.
Com comidas típicas e cenas completas faladas em mandarim, a produção retrata bem o contraste da cultura vivida pela personagem dentro de casa com as crenças religiosas e o comportamento extrovertido dos colegas da escola.
Em muitos momentos, lembrei de uma amiga filha de pais chineses. A cultura dela estava ali, em diversos momentos. Alice representou fielmente a vida de uma jovem chinesa em um país ocidental, desde o mandariam carregado de sotaque até o hábito de não levar amigos para conhecer os pais - reflexo do racismo sofrido pelas famílias chinesas frequentemente rotuladas como “esquisitas” e “sujas”.
A diretora também colocou foco sobre as piadas racistas que são feitas pelos colegas de Ellie ao longo do filme, que riem da semelhança do sobrenome Chu com o som utilizado para representar o barulho do trem “chu chu”.
A amizade inesperada de Ellie e Paul Munsky constrói a narrativa principal do filme. Apesar disso, o longa não deixa de contar a história de amor secreta e incerta entre a estudante e colega Aster Flores, que também tenta se desprender dos valores morais impostos pela família católica e conversadora.
Ao lado de Você Nem Imagina, a série Eu Nunca... também ocupou o Top 10 da Netflix durante as primeiras semanas no mês de maio - quando essa análise foi escrita, a produção ocupava o segundo lugar do ranking no Brasil.
A série criada por Mindy Kaling se baseia na adolescência da atriz, comediante, roteirista e produtora, e os dilemas de ser a primeira geração de uma família tâmeis, do sul da Índia, nos Estados Unidos.
É importante ressaltar como os asiáticos geralmente são associados a países do extremo leste, como Japão, China e Coreia do Sul. A Ásia é o maior continente do planeta e inclui 50 países, entre eles a Índia, Malásia e Rússia.
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Contudo, as produções de Hollywood parecem enxergar apenas uma pequena parte do continente, além de apresentá-la por meio de padrões de beleza e comportamento, como, por exemplo, a jovem de pele clara, voz doce, extremamente tímida e preocupada em manter notas altas na escola.
Devi Vishwakumar vem para desconstruir todos esses rótulos. Com uma personalidade explosiva e respostas rápidas, a personagem não deixa ser insultada nem mesmo pela própria mãe. Confiante, a estudante sabe que tem potencial para ser a melhor aluna da classe e entrar em uma das melhores faculdades do país.
De cabelos castanhos e pele marrom - do inglês, “brown girl”-, Devi é a protagonista de um elenco diversificado escolhido meticulosamente pela Netflix. Fabiola Torres, negra, e Eleanor Wong, de ascendência leste-asiática, são as melhores amigas da jovem estudante. Já Paxton Hall-Yoshida, metade japonês, é o garoto dos sonhos de Devi. Os únicos personagens brancos relevantes que aparecem são Ben Gross, descendente de judeus, e a irmã de Paxton, Rebecca, que possui síndrome de down.
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O elenco não foi a única escolha bem feita pela plataforma de streaming, o roteiro da série também foi desenvolvido com sensibilidade e muito senso de humor. A produção consegue mostrar os conflitos de Devi com a cultura indiana, os traumas causados pela perda do pai, as dificuldades de se tornar popular no colégio e as emoções que podem abalar a Geração Z apenas com uma curtida nas redes sociais.
Eu Nunca… é uma representação cômica e leve das diversas dimensões que constituem a realidade atual de uma jovem indiana nos dias de hoje. A série é uma excelente continuação da busca da Netflix pela valorização de culturas e grupos minoritárias na indústria cinematográfica.
Com três produções de sucesso, a plataforma de streaming abriu as portas para as protagonistas asiáticas e reinventou o romance adolescente de forma inédita em Hollywood. Sem estereótipos, sem papéis secundários e sem ser o alívio cômico, as mulheres asiáticas provam que o sucesso está na representatividade.
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