Belchior no programa <i>Ensaio</i>, da TV Cultura, gravado em 1992 - Marisa Cauduro

O adeus a Belchior

Parentes e amigos se despediram do músico, que morreu no último domingo, 30

Antônio do Amaral Rocha, de Fortaleza Publicado em 04/05/2017, às 17h51 - Atualizado em 08/05/2017, às 16h06

Santa Cruz do Sul, a 120 quilômetros de Porto Alegre, foi o último refúgio do cantor e compositor que há dez anos resolveu dar um basta na vida artística. Ou “desistiu da nossa onda”, conforme disse Paulo Linhares, presidente do Instituto Dragão do Mar de Fortaleza. Nessa década, especulou-se muito sobre as suas reais intenções e este será sempre um segredo, revelado apenas para poucas pessoas. Uma delas é a última companheira de andanças de Belchior, Edna Prometeu (anteriormente, o artista tinha sido casado com Angela Henman, com quem teve dois filhos, Mikael e Camila).

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Vivendo como descrito na letra de sua canção mais famosa, “Apenas um Rapaz Latino-americano”, “sem dinheiro no bolso, sem amigos importantes”, Belchior passou esse tempo de cidade em cidade e sempre contando com a ajuda de amigos para sobreviver. Desde 2013, ele e a companheira estavam morando em uma casa cedida por amigos em Santa Cruz do Sul, justamente onde foi vitimado pelo rompimento da artéria aorta na madrugada do dia 30 de abril, domingo.

Depois da necropsia, o corpo foi embalsamado e na madrugada da segunda-feira, 1, foi levado primeiro para Porto Alegre e depois para Sobral, sua cidade natal, onde foi velado por 4 horas. Dali, seguiu para Fortaleza, direto para o hall do Teatro Dragão do Mar. Desde o início da tarde da segunda, 1, uma fila quilométrica rodeava as cercanias do complexo cultural e, por volta das 16h, o velório foi aberto para as 7.400 pessoas que prestaram homenagens durante toda a noite. Um repertório de 67 canções, escolhidas por João Wilson Damasceno, diretor de Ação Cultural do Dragão do Mar, foram repetidas exaustivamente, e nos intervalos era possível ouvir grupos em catarse entoando outros trabalhos do cancioneiro de Belchior.

Como o velório foi assumido pelo cerimonial do governo do Estado a pedido da família, a guarda de honra da Polícia Militar esteve presente em alguns momentos. Além de familiares (irmãos, irmãs e sobrinhas), amigos e parceiros, também passaram pelo local as mais destacadas autoridades do Estado, como o prefeito Roberto Claudio, o governador Camilo Santana, além do presidenciável Ciro Gomes. Todos fizeram questão de demonstrar apreço pela vida e obra do compositor.

Às 7h da terça-feira, 3, o caixão com o corpo de Belchior foi levado do hall do Teatro Dragão do Mar até o Palco Anfiteatro, dentro do complexo cultural. Houve uma cerimônia católica, a chamada missa de corpo presente, com duração de uma hora, assistida pelos familiares e por cerca de 200 pessoas que estavam na plateia. Após o término, enquanto o caixão era fechado, a música de Belchior voltou a ser tocada por uma banda formada por Ericsson Mendes, Maria Zenaide, Renato Campos Gutemberg Pereira, Eduardo Holanda e Mimi Rocha. Executaram “Na Hora do Almoço”, “Alucinação”, “Como Nossos Pais”, “A Palo Seco”, “Sujeito de Sorte” e “Galos, Noites e Quintais”, proporcionando momentos de extrema emoção entre os presentes, que cantaram em uníssono com a banda. Em seguida, às 8h30, o caixão foi levado até o carro do corpo de bombeiros, que o levou rumo ao Cemitério da Paz, a 12 quilômetros do Instituto Dragão do Mar.

Divulgou-se que o sepultamento seria uma cerimônia fechada só para os familiares, mas no fim, além dos familiares, cerca de 300 pessoas acompanharam o cortejo até a sepultura, sempre cantando emotiva e desafinadamente as canções de Belchior. Às 9H50 deu-se por encerrada toda a cerimônia e o público começou a se dispersar.

Depoimentos

A Rolling Stone Brasil acompanhou o velório e colheu diversos depoimentos. Fausto Nilo, parceiro de Belchior em diversas canções, declarou: “São poucos os colegas que eu tenho [na área da música] que faziam shows nos lugares mais remotos, por exemplo, na Ilha do Marajó. Ele fazia como os artistas populares fazem. Nunca esperei que as coisas que um poeta diz e o que as pessoas assimilam precisem ser necessariamente verdades. Isso é uma necessidade que o ser humano tem de imaginar as coisas de outra maneira e essa é a função dos artistas. O que ele sabia da vida ele transformava em poesia, mas não há a necessidade de que aquilo coincida com ele como personagem”.

O irmão, Francisco Gilberto Belchior, relembrou: “Ele me disse uma vez que estava afastado, mas não estava fora de atividade, estava fazendo novas canções e logo ia apresentá-las. Mas a natureza não deixou isso acontecer. Existem muitos trabalhos que ainda vão surgir. É um momento de consternação e pesar para todos nós da família, e especialmente para os sobralenses.”

O doutor Mariano Freitas, médico obstetra em cirurgias de alto risco e colega de Belchior nos tempos da faculdade de medicina, fez questão de estar presente e contar à imprensa fatos pitorescos dos tempos da juventude do futuro compositor como militante estudantil em 1968. “O que encantava em Belchior era a verve nordestina propositadamente provocativa. Era um intelectual que conhecia várias línguas, especialmente o latim, em profundidade. Nós montamos uma chapa para disputar o DCE da faculdade. Era a chapa da Ação Popular e concorremos com o então futuro deputado José Genoino Neto, que disputava com apoio do PCdoB. Fiquei muito amigo de Belchior e quando escrevi um livro sobre o movimento estudantil ele fez o prefácio e cantou no dia do lançamento, que foi aqui no Dragão do Mar. Uma noite maravilhosa.”

A irmã mais velha de Belchior, Angela Gomes Belchior, a princípio estava reticente, mas acabou aceitando falar e conversou com a Rolling Stone por 30 minutos, alternado momentos de desabafo com outros de melancolia, todos permeados por euforia. “Eu quero estar errada, mas não acho que o sumiço tenha sido uma opção dele, foi uma prisão. Esta era a alucinação dele, tentar mudar as coisas e as coisas não mudarem. Ele resistiria ao nosso país hoje? E os nossos sonhos que ele cantou? Ele não resistiria. Ele queria se relacionar com todo mundo, mas foi impedido. Não sei dizer por qual motivo, se eu soubesse eu diria. Ele foi para a grande transformação e nós estamos aqui, buscando mudanças. Ele está nas brumas e nós aqui."

O prefeito de Fortaleza Roberto Claudio (PSB) disse: “A diversidade de pessoas aqui demonstra o significado de um verdadeiro ídolo. Tem gente de 18, 19 anos de idade, que nunca viu um show de Belchior; e gente da geração que viveu intensamente a época dele. Essa talvez seja a melhor síntese de uma obra atemporal, que transcende gêneros e origens sociais, e que consegue tocar a alma do brasileiro. Para nós, cearenses, fica o orgulho de saber que o autor daquelas poesias, a cabeça que gerou aquilo, é uma cabeça cearense. Não convivi pessoalmente com Belchior, mas tenho amigos que conviveram, e todos eles registram uma inteligência superior, diferenciada, alguém com uma bela cultura universal e que conhecia muito filosofia. Um sujeito com grande capacidade de analisar as coisas. Tem muita produção dele ainda não conhecida de poesia, artes plásticas e textos. O nosso papel é solicitar à família que se torne pública essa produção.”

O governador Camilo Santana (PDT) usou versos do próprio Belchior para expressar seu sentimento: “Viver é melhor que sonhar. O melhor é viver o momento, e isso é o que Belchior representava. Ele deixa essa grande marca e uma grande tristeza para povo do Ceará.”

O presidenciável Ciro Gomes, também presente, contou que "andava atrás do Belchior há muito tempo". "Conheço essa inquietação dele desde a mais tenra juventude. Um camarada que foi vocacionado para a poesia, conhecia a profundidade da palavra, da expressão poética, sintonizado com o seu tempo. E se olhar a música de primeira grandeza, que não é nem a que fez mais sucesso, é a obra de um filósofo 'poetando' de uma forma como muito raramente há de se achar na língua portuguesa.".

*O repórter viajou a convite da produção do Festival Maloca Dragão

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