Referências, texturas e conexões: Apuke, Ashira, Attlanta, BADSISTA e Bárbara Brum refletem sobre o elemento pulsante que as unem
Nicolle Cabral | @NicolleCabral Publicado em 16/06/2020, às 07h00
A primeira coisa que prende a minha atenção ao ouvir um som é o beat — estripulias sonoras são sempre muito bem-vindas. Parte da melodia, essas batidas são praticamente o preparo para um bom flow aterrissar. Mas quem está por trás dessas produções?
Não existe dúvida de que a indústria do entretenimento é dominada por homens. Entre as músicas mais populares no mundo nos últimos sete anos apenas 2% possuem produtoras creditadas, segundo um estudo realizado pela Escola USC Annenberg de Comunicação, da Califórnia, em 2019. Enquanto ao dinheiro que sustenta essa maquinação, 90% vai para os homens, de acordo com a União Brasileira de Compositores.
Esse apagamento das mulheres nas fichas técnicas, à frente das produções em estúdios e em line-ups, porém, não é devido à falta de profissionais no ramo. A cena independente feminina no Brasil existe, contudo, o trabalho não é tão divulgado porque, geralmente, enquanto os homens lideram os grandes cargos hierárquicos, eles ouvem e promovem homens e “é a assim a banda toca”.
Em 2019, o Spotify provocou — assim como outras organizações e coletivos que vem crescendo e impulsionando essa conexão entre mulheres — uma iniciativa intitulada de Escuta As Minas para apoiar os novos talentos da indústria. Durante seis meses, a plataforma de streaming convidou 24 artistas e 12 produtoras para criar uma faixa por semana na Casa de Música em São Paulo. O resultado foram produções criativas que passaram entre o rap, sertanejo, funk, gospel, pop samba e a música eletrônica.
Ao refletir sobre esse mercado e a quantidade de projetos palpitantes, evocamos uma série de entrevistas com mulheres que estão por trás das batidas que dão identidade, textura e movimento para as vozes presentes na cultura hip-hop, R&B e nos bailes funk. Nesta primeira parte, convidamos Apuke, Ashira, Attlanta, BADSISTA e Bárbara Brum para ressignificar a discussão sobre a inclusão de beatmakers e produtoras femininas na indústria.
+++ LEIA MAIS: Fomos a uma balada online (sim, elas existem) e contamos como isso acontece
Para Ashira, o contato com a música aconteceu mais cedo do que o habitual: aos 2 anos, incentivada pela mãe, já participava do coro da igreja. O soul, o gospel e a black music foram os gêneros que saltaram aos ouvidos ao longo da infância. Nomes como Erykah Badu e Lauren Hill aparecem como as maiores referências da artista. "A partir delas, tive ideia do que eu queria ser".
Com o auxílio do padrasto, que gravava coletâneas em alguns CDs virgem, ouviu The Prodigy, Gang Starr, Beastie Boys, Jay-Z e até Mozart. Ashira conta que, inclusive, o primeiro CD dela tinha as Sonatas de Mozart. Além do grande clássico, Graduation, de Kanye West também a influenciou musicalmente. "Foi um álbum que me marcou".
Em meio à essas influências, também foi atraída por clubes e festas eletrônicas. "Ouvi muito techno e house, batia cartão no falecido Clubinho A, fui muito para o interior atrás de rave".
Naturalmente envolvida pela música, decidiu se profissionalizar e cursou produção fonográfica na Anhembi Morumbi em 2016. "Minha cabeça expandiu absurdamente em relação ao que eu sabia e logo comecei [a fazer] as minhas primeiras batidas".
Como funciona o seu processo de criação?
Não tenho uma regra, mas já percebi que a minha produtividade depende muito dos meus sentimentos, então tento criar um ambiente agradável antes de iniciar minha sessão de trabalho. Prezo muito pela organização do meu espaço, tenho que estar confortável fisicamente e com o ambiente limpo, rs. Geralmente, pré estabeleço metas que sejam diferentes do trabalho anterior, visando evoluir musicalmente. Tenho facilidade em criar melodias, então começo pelo mais difícil para mim: a bateria. Depois que acho os timbres e ritmo certo da bateria, o resto flui.
Qual é o estilo de produção você mais gosta de fazer?
Também não tenho uma regra para isso, gosto de variar o máximo possível, porém faz parte do meu estilo explorar mais sintetizadores e tocar os instrumentos eletrônicos. Também sampleio, mas é bem mais difícil usar samples em melodias. Gosto de criar texturas, gosto que ao ouvir, a pessoa consiga identificar cada sonoridade de forma individual, então o meu som tem características minimalistas. Tenho muita influência de soul e house nos sons.
Você participa do Rouff, EP da Tasha e Tracie. Me conta, como foram as gravações?
Fizemos o Rouff em conjunto. Produzi, editei, gravei e dirigi todos os sons. A Tasha e a Tracie foram as MCs principais e diretoras de arte do trabalho. Rouff foi o meu primeiro trampo publicado como produtora musical e o primeiro EP delas como MCs. Como já nos conhecíamos desde 2012, optamos por fazer este trabalho presencialmente, as três reunidas. Então ficávamos uma na casa da outra durante dias criando, pesquisando e conversando muito sobre ideias. Foi um período muito importante para mim, estar num trabalho somente com mulheres, pois isso me permitiu evoluir, aprendemos muito umas com as outras. Foi super natural e gostoso esse processo, embora cheio de pressão, pois havíamos estabelecido uma data antes de começar. Mas nos permitimos ser livres e nos divertir durante [o processo]. Enquanto eu ia criando as batidas, elas estavam escrevendo e, ao mesmo tempo, todas tinham ideias de como moldar o som, o que faltava, e etc. Gravamos muitas e muitas vezes todos os sons, afinal era o nosso primeiro trabalho. Tracie e Tasha são muito criativas e melódicas, o que casou bem com meu estilo de produção ritmada. Coloquei vocal em 3 dos 5 sons, mas meu papel principal foi realmente a produção".
Direto em uma Drum Machine (Caixa de Ritmos, em português) MPC 1000, Brum testou os primeiros beats. Por ser uma frequentadora ávida de concursos de Danças Urbanas, o contato com a cena do hip-hop, R&B e do funk dos anos 70 surgiu por meio de pesquisas musicais para dançar nessas competições. Com o tempo, Brum uniu essas descobertas com criações. "J Dilla foi a minha primeira inspiração para fazer beat, mas a minha cantora e inspiração existencial é a Erykah Badu".
Sem deixar de citar as outras referências como Laudz, DJ Quik, Battlecat, Wondagurl, Sango, Elaquent e o Esta, Brum se dedica a produção de beats de rap e trap. "Gosto muito de fazer Favela Trap, definitivamente é meu estilo favorito. Mas também chapo muito em fazer Funk e Boombap".
Com a quarentena, por causa do novo coronavírus, a DJ e beatmaker passou os primeiros dois meses em isolamento social em Florianópolis. No fim de maio, se mudou para Curitiba para continuar produzindo no estúdio de uma casa que divide com dois amigos.
Como tem sido produzir durante a quarentena? O que você usa para tocar?
Tenho aprendido bastante coisa durante a quarentena, por ter mais tempo livre e menos pressão, estou evoluindo bastante e conhecendo novos estilos musicais para produzir. [Em tempos normais] eu tenho fases que não produzo absolutamente nada e fases que produzo todos os dias. Costumo buscar alguma acapella ou baixo algum drum kit (kit de bateria, em português) que eu acho chave e quero "desossar".
Atualmente eu uso o Fruity Loops 12 mesmo, mas também faço beat na MPC 1000 e tenho uma base no Ableton 9.
Quais são as suas referências musicais atualmente?
Definitivamente são os meus amigos. Um salve para o mu540, ANTCONSTANTINO, Dola, Clemente e kLap.
Como funciona seu trampo na indústria? Você vende os seus beats?
Não tenho trabalhado tanto com isso [venda de beats], por opção mesmo. Produzo mais na intenção de criar e editar sons para eu tocar na pista, já que eu também sou DJ. Mas quando se trata de vender beat, tenho dois processos: ou eu vendo o beat e a partir daí tudo fica por conta de quem comprou, ou também faço parcerias e opino do processo completo da música, tanto da composição, clipe, mixagem e masterização.
BADSISTA ("irmã má", em português) dá nome a persona criativa de Rafaela Andrade. Irmã caçula de dois irmãos, a DJ e produtora teve a ideia do título que, no futuro, assinaria produções de Lei Di Dai, Linn da Quebrada e Jaloo, logo depois de uma briga entre eles.
A produtora musical atua profissionalmente no mercado desde 2013, porém, muito antes disso, aos 9 anos, teve uma banda de rock underground, CMYK, em que tocava violão. "Eu escrevia e montava os arranjos, então acho que eu já produzia muito mesmo antes de saber o que era isso".
Pautada pelas batidas eletrônicas (house e techno) e a energia criativa do funk, BADSISTA cria o próprio estilo. "Respeito muito o meu tempo, vontade e inspiração. Às vezes em 3 horas ou menos consigo produzir uma música inteira. Às vezes demoro semanas ou mais. Não gosto de forçar o potencial da música, se ela quer se mostrar, ela vai aparecer. Geralmente, ela vem 'poucas ideias' comigo'".
Quais discos foram essenciais na sua formação? E o que tem ouvido?
Gosto muito do Frank da Amy Winehouse, tem beats e arranjos muito bons e Street Bang do Gramatik.
Agora escuto o que minha vizinhança escuta, tenho experimentado álbuns que me marcaram como Anacrônico da Pitty, Felicidade Instantânea do CPM 22 e vários singles da Dido. Fazia tempo que não parava para escutar.
O que você tem feito musicalmente?
Tenho experimentado coisas mais lentas e melódicas, e tem sido muito bom. Não gosto de definir nada quando vou fazer, mas o mergulho que dei na house music foi muito profundo, então isso sempre se mostra de alguma forma.
Acho que quando paramos esse momento de troca com o externo, com outras pessoas e situações, nossas provocações diminuem... Então o processo ultimamente está sendo pensar mais dentro de mim: 'qual sensação eu quero proporcionar?'. Estou pensando mais nos ouvidos que vão ouvir do que nos pés que vão bailar na pista de dança, vamos dizer assim.
Como é a sua dinâmica dentro do mercado musical?
Primeiramente não me considero beatmaker. Isso é só mais uma das coisas que aprendi a fazer e que me dá controle sob a criação. Aprender as ferramentas para não ser refém. E gosto de trabalhar junto, de criar a música do zero, dar pitaco na letra, no jeito de cantar, nas notas. Trabalho com a produção musical como um todo. Penso na música como um quadro de pintura, e gosto de ver algo bonito para se apreciar.
Integrante do Quebrada Queer, grupo de rap formado por Guigo, Harlley, Lucas Boombeat, Murillo Zyess, Tchelo Gomez, a DJ Apuke promove uma reflexão, ao lado do coletivo um coletivo cypher, para quebrar as barreiras da falta de representatividade do público negro e LGBTQI+. Cada integrante, com estilos e flows bem definidos, riam sobre temas como a liberdade sexual e o racismo.
Quando sozinha, resgata as influências musicais cultivadas pela mãe, amante do R&B, Jazz e do Blues. A partir dos 25 anos, Apuke investiu na carreira de produção, e, apesar de ainda aspirar pelos shows, está mais focada em produzir.
Como você aprendeu a tocar?
Eu tive pouca oportunidade de fazer cursos, a maioria das coisas eu aprendi sozinha, desde a parte dos softwares, melodias, criação de timbres, tudo isso, saiu da minha cabeça. Foi tudo a prova de testes. Cheguei a fazer um curso rápido, com cinco ou seis aulas, foi muito breve. A minha aula, em grande parte, foi a vida.
Como você se sentiu ao criar algo durante esse período?
Eu pensei menos no mundo externo, e conectei mais no meu mundo interno para poder criar. Fez muito mais sentido criar por meio de coisas que tem fundamento para mim. Eu tenho um mini estúdio em casa, então na quarentena, o processo mesmo permaneceu igual. Já gosto de criar sozinha. Só que agora com o tempo que eu levava para ir ao estúdio, captar voz, fazer o processo de mixagem e masterização, estou usando para criar um álbum com tudo que me embasou profissionalmente.
Como funciona as suas produções e parcerias?
Eu nunca consegui a principio sobreviver vendendo beats, eu tive outras profissões, em que consegui me estabilizar para ter uma base para poder criar, e aí, com isso, comecei a achar interessante fazer música com pessoas que eu queria, e não fazer disso um motivo só para gerar renda. Então sempre peço para que as pessoas façam uma troca de feat: se eu estou na música de alguém, é um feat. Minha dinâmica é criar igualmente com mais artistas não só como uma produtora.
Com a primeia mixtape autoral lançada em março, Futuro, Attlanta é um dos nomes palpitantes da cena de trap de Belo Horizonte. A produtora e beatmaker se envolveu profissionalmente na cena em 2017, logo após ter trancado o curso de Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Olheira dos bastidores e das produções de rap, principalmente dos registros disponibilizados por produtores internacionais, Attlanta aprendeu a fazer os próprios beats. Para ela, "o importante de fazer beat é não parar".
Quem são as suas maiores referências de produtores(as) e produção?
Essenciais: Zaytoven, Scott Storch, WondaGurl, Lex Luger e a maioria das produções do Juicy J [da década de 1990].
Quais são os seus passos na hora de fazer um som?
Normalmente eu faço alguns acordes, faço uma progressão, vejo o que eu mais gosto, e depois adiciono uma melodia, e aí logo depois vem a bateria, normalmente pelo 808 direto. Na maioria das vezes, começo pela melodia, dificilmente eu começo pela bateria da música.
Ao pontuar as questões do mercado e as vivências ao longo da carreira, perguntamos às entrevistadas as experiências e principais diferenças que sentiram ao estar em estúdio ou colaborar apenas com mulheres.
Ashira: Sinto [diferença] até antes mesmo do trampo. As mulheres costumam me procurar mais que os homens pra trabalhar (o que eu acho ótimo) e notei que as minas chegam valorizando meu trampo, sabe? Me tratando de forma mais profissional, pedindo orçamento, enviando e-mail. Os homens (não todos, mas a maioria) tentam ‘marretar’ batidas e chegar com um script do que fazer, e às vezes nem os conheço muito bem. Uns anos atrás eu não tinha tanta maturidade e confesso que me sentia menor perto de algum produtor homem, ofuscada. Por muito tempo não mostrava meus trampos. Hoje isso não me desestabiliza mais e nem tento ser melhor que eles ou mostrar algo pra algum homem, tento ser melhor que eu mesma e fazer algo que agregue para as mulheres, principalmente periféricas (como eu) e pretas.
Bárbara Brum: Existe muita diferença em vários aspectos: trabalhando com mulheres eu percebo muito mais interesse e esforço mútuo para chegar em um consenso e em um interesse em comum. Com homens é mais comum eles esperarem com que eu me curve aos interesses deles, sem respeitar muito minha estética e o meu processo criativo. Fora que eu já tive problemas algumas vezes com homens que não me creditaram direito nas produções. Com mulher nunca aconteceu isso, rs.
BADSISTA: Sempre preferi trabalhar com mulheres, cis ou trans. Já tive experiências trabalhando com homens também, porém em coisas mais técnicas. A diferença é que os homem geralmente tem duas escolhas: 1 - falar e ouvir, trocar informações e gostos; 2 - ser arrogante e desrespeitoso. A parte boa, é que hoje em dia já aprendi a lidar com a segunda opção. E com as mulheres eu deixo fluir naturalmente, tem coisa que dá liga, tem coisa que não... temos que respeitar o processo também.
Apuke: Eu tive muita experiência em estúdio com homens e a maioria delas foi cansativa. Você sempre tem que colocar a prova o seu conhecimento, tem que afirmar o seu ponto de vista e ver ele ser questionado. Então assim, existe um desgaste muito maior quando você está dentro de um estúdio com um homem do que quando você cria com uma mulher. Eu já participei de alguns projetos, que desde a primeira até a última fase eram só mulheres, e é muito mais leve. O processo de criação é livre. Foi muito mais fácil de conversar, questionar, colocar uma opinião e receber. A compreensão existe muito mais nesses lugares que estão cheio de mulheres, do que em estúdio com caras.
Attlanta: Trampar com homem é muito mais dificil, porque você não sabe se a pessoa está te levando a sério ou se tem outra intenção. Isso é muito comum e na maioria das vezes muito desrespeitoso. É mais fácil trabalhar com mulheres, as coisas fluem mais e eu nunca fui desrespeitada.
Para você sintonizar em algumas produções feitas por mulheres, indicada por mulheres.
Blake Lively se pronuncia sobre acusação de assédio contra Justin Baldoni
Luigi Mangione enfrenta acusações federais de assassinato e perseguição
Prince e The Clash receberão o Grammy pelo conjunto da obra na edição de 2025
Música de Robbie Williams é desqualificada do Oscar por supostas semelhanças com outras canções
Detonautas divulga agenda de shows de 2025; veja
Filho de John Lennon, Julian Lennon é diagnosticado com câncer