- O Beat Delas, parte quatro. Dola (Foto 1: Divulgação) e Nathalia Schleder (Foto 2: Edi)

O Beat Delas (Parte 4)

Estudos, referências e evoluções para quem vem depois com Dola, Luana Flores, NATH Numa e Th4ys

Nicolle Cabral | @NicolleCabral Publicado em 03/08/2020, às 07h00

Com o intuito de ressignificar a discussão sobre a inclusão de beatmakers e produtoras femininas na indústria e impulsionar essa conexão entre elas, surgiu a série de matérias O Beat Delas. Ao todo, tive a oportunidade de entrevistar 20 beatmakers brasileiras com processos, estéticas e referências diferentes. Todas, contudo, se amparam por um elemento comum: a insistência. "Vamos apresentar o nosso trabalho até o final", enfatiza DJ Th4ys, pesquisadora musical e beatmaker. 

+++ LEIA MAIS: O Beat Delas (Parte 1) 

Com projetos palpitantes que transformam a cultura de rua e inspiram mais mulheres a acreditarem nos próprios processos criativos, convidamos Dola, Luana Flores, NATH, Numadessas e Th4ys para a quarta e última edição da série. 

+++ LEIA MAIS: O Beat Delas (Parte 2) 

"Ousadia é o que faz diferença no som" — NATH

Nathalia Schleder (Foto: Ed)

Vinda de uma família artisticamente criativa, Nathalia Schleder se aventurou com instrumentos musicais desde pequena, mas a inclinação para a discoteca ocorreu durante a adolescência aos 14 anos. Ao lado do padrasto, também DJ, aprendeu a fazer mashups com músicas de funk até o momento em que sentiu que não queria mais produzir em cima de faixas acapella, mas sim se unir com outros artistas para fazer música.

BADSISTA, Tayhana, Ashira, Nara, Lila Tirando a Violeta, Dengue Dengue Dengue, Lechuga Zafiro, Abssys, Alfonso Luna são as principais referências que a guiam atualmente. "Sou encantada por ritmos percussivos, porque eles não seguem regras. Fico de cara com quem que faz uns sons muito brabos fora do grid, acho que essa ousadia é o que faz diferença no som". 

Quais foram as principais dificuldades que você sentiu na hora de começar a fazer um som?

Minha principal dificuldade no começo foi não entender nada sobre teoria musical. Eu até tinha estudado quando era mais nova, mas não o suficiente para o que eu precisava. Foi como se eu tivesse pulado essa etapa e ido direto para a execução.

O segundo caso foi que eu não tinha equipamento para produzir: tinha apenas um computador antigo e um fone de R$15 que comprei na banquinha. O corre foi fazer o máximo com o que eu tinha e tem sido assim até hoje. Consigo usar instrumentos e coisas analógicas com ajuda dos meus amigos que quebram esse galho. Ganhei um fone novo, mas o computador continua o mesmo. Uso uma controladora DDJ-RB com rekordbox para tocar.

Você indica algum som que seja interessante para estudar/observar? 

"Amnseia Scanner" - AS Acá (feat. Lalita) 

Você tem algum "ritual" que gosta de seguir no seu processo de criação?

Depende se eu estou fazendo um som para mim ou se é para alguém. Quando é para mim, gosto de sentar na frente do computador e experimentar várias coisas até sair algo. As vezes sento para fazer um trap e sai um industrial vogue — e está tudo bem, costumo respeitar o momento. Quando é para alguém, trabalho muito nas referências. Costumo levar uma caixinha de som para o banho e fico ouvindo as músicas e buscando ideias.

Nath indica: "E Você tá Gostando" - ERAM

 

"A música é uma ferramenta de transformação social. Sei que incomoda, mas é para incomodar mesmo. Quem não estiver gostando, pode se retirar"  — Luana Flores 

 

Luana Flores (Foto: Ana Moraes)

 

"Meu sonho era ter aprendido a produzir beat com uma mulher", anuncia Luana Flores. Focada em instrumentos orgânicos, a produtora e beatmaker natural de João Pessoa, na Paraíba, começou a tocar baixo, guitarra, teclado, bateria e percurssão até o momento em que conheceu o universo da produção musical e decidiu mesclar as possibilidades. "Me apaixonei pelo Curumin e o vejo como a minha primeira referência dessa mistura do eletrônico com a bateria. Me encontrei muito nesse lugar". 

Sendo assim, ao se especializar em produção musical, deu luz ao projeto Nordeste Futurista em que se dedica à cultura pop nordestina e mistura o rap e o RapEnte, vertentes do maracatu, baião, associados aos beats eletrônicos. 

Além disso, Luana busca criar uma rede de beatmakers regionais pela falta de visibilidade para além do eixo Sul-Sudeste. "Meu sonho é montar um coletivo de beatmakers do Nordeste. A ideia é que a gente possa se unir e ensinar outras mulheres para que elas aprendam a produzir de outras mulheres". 

Na hora de criar um som, quais são os seus passos? 

Pensando se é um som feito para outras pessoas, encomendado, ouço muita referência que converse com aquele artista ou com aquele remix. Algo que esteja relacionado com o estilo de música que a pessoa curte. E aí depois decido qual ritmo vou seguir, e a partir disso, eu já estou com um BPM na mente e com a linguagem que quero seguir. 

Normalmente tem uns ritmos que eu já gosto de trabalhar que são os que compoem a minha identidade como produtora. Costumo pensar também nos momentos da música, a parte A, a parte B, as intensidades, onde que vai rolar um break pra dar uma enfâse, depende muito da letra. Também penso muito na mudança de ritmos, e aí por fim, em como eu vou querer terminar. Começar flui, agora terminar é sempre uma grande responsa. No mais, toda essa criação do som, gosto de pensar na música como um elemento sensorial que possa estar mexendo o corpo e proporcionando afetos, esses são os passos que eu uso para criar um som massa.

Qual é a sua perspectiva dentro no mercado musical? O que você pontua como positivo na indústria e o que você sente falta?

Acho que o mercado está mudando como a sociedade vai mudando. O fato das mulheres terem espaço, ainda que pequeno, me faz perceber que estamos ocupando esse lugar que é  nosso por direito. Isso é o que vejo de positivo no momento. O que eu sinto falta é que, mais uma vez, existe muita visibilidade para esse eixo Sul-Sudeste e falta aqui no Nordeste um incentivo que possa trazer verba para que a gente possa estar aperfeiçoando, melhorando e profissionalizando o nosso trabalho.

Falta incentivo do Governo Estadual, de iniciativas privadas, porque tem muito artista incrível na Paraíba, e no Nordeste no geral, e vejo que existe ainda pouco investimento. Sinto falta de um olhar pra cá nesse sentido. Mas estamos caminhando para isso. Só o fato de eu estar aqui é um ponto positivo para trazer esse olhar para mulher produtora e nordestina. 

Se você pudesse resumir em uma música a sensação de estar tocando em um palco, qual seria? E por quê?

Bem, fiquei pensando qual música poderia resumir isso, porque cada subida de palco é uma sensação diferente, depende muito onde você está, qual trabalho é, enfim. Muitas coisas mexem, porque estamos falando de emoção. Mas uma música que representa uma sensação massa é Cátia de França - "Dança das Lanças". Primeiro que sempre a assisto muito entusiasmada, pela forma que o corpo dela se move no palco, e, com certeza, essa é a energia vibrante que tento levar quando subo em um palco.

Penso muito em um trecho dessa música que fala assim "Se meu canto é persistente, irritante a porta é logo mais adiante". E é como um mantra. Fico pensando que, para mim, a música é uma ferramenta de transformação social, sei que incomoda, mas é para incomodar mesmo. Quem não estiver gostando, pode se retirar.

"Se tira a música, não tem nada" — Numa

 

Manuella Godoy, Numadessas (Foto: Reprodução / Instagram)

"[No começo] eu fazia muito beat errado", conta Manuella Godoy, conhecida por Numa. A DJ, produtora e beatmaker atua na cena em Curitiba, no Paraná, há 11 anos. Influenciada diretamente pela música popular e ritmos como o samba, forró e também o hip-hop, Numa cria os próprios sons a partir de um sample de alguns desses gêneros. "Me inspiro pelo sample". 

Durante a quarentena, segundo ela, o ritmo de produção acelerou. Além disso, separado um tempo para se dedicar a projetos como o Beat Brasilis, idealizado por Rafa Jazz, um encontro de DJs, MCs, músicos, produtores e beatmakers, que acontece semanalmente pelo Twitch

Como você aprendeu a tocar?

Aprendi com dois amigos, o DEM Beats e o BFace. O DEM me ensinou as bases e o B me passou orientações sobre outros assuntos e aí fui me virando. Usava o sample como uma forma de guardar músicas que gostava, eu sampleava um monte de coisa. Mas comecei a produzir com mais frequência agora, fiquei um bom tempo em hiato, eu fazia um ou dois beats por ano, porque eu não levava a sério e não achava que o meu trampo era necessariamente bom. 

Qual é o seu tipo de produção preferido? E por quê? 

É uma mescla entre o hip-hop e o universo eletrônico. Eu me autointitulo de raptrônico (risos). Quando comecei a pesquisar de fato música e estar presente na cena foi por meio do hip-hop, mas aí com a música eletrônica veio recentemente na minha vida e me deu uma liberdade artística maior e não precisava ficar em uma caixinha. Também sou mais respeitada por ser mulher nesse ambiente, então gosto de fazer essa mescla. E obviamente, com samples brasileiros. É uma coisa Brasil Rap Frito, sei lá, (risos). 

Qual é a palavra que define a sua relação com a música e por quê? 

Essência. Desde que me conheço por gente, eu gostava de música, gostava de saber o que estavam ouvindo, sempre perguntei para a minha mãe e para o meu pai — eles foram as minhas primeiras referências musicais sobre a cultura brasileira. Então, é uma coisa que se tira a música, não tem numadessas. Se tira a música não tem nada porque tudo o que eu faço tem música no mesmo, mesmo quando não é música.

Numadessas indica: Tygapaw, Suzi Analogue, ERAM, Janvi, Saskia, Malka, Xan e Perrelli

 

"Estou tentando aproveitar esse momento para buscar referências e aprender coisas novas" — Dola

 

Dola (Foto: Divulgação) 

Idealizadora da Grave, festa voltada para a Bass Music em Pelotas, no Rio Grande do Sul, Isadora Vieira, que atende por Dola, tem 22 anos e produz desde os 15 anos. Movida pelos ritmos do hip-hop, funk, trap e neosoul, a beatmaker hospeda os projetos na plataforma do SoundCloud e participa do coletivo DASMINA, onde produz conteúdos e eventos focados em artistas mulheres. 

Para ela, a produção veio pela curiosidade. "Comecei a fuçar no programa para descobrir o que cada botão fazia. Depois de muitas tentativas, dicas de amigos e vídeos no YouTube, aprendi a fazer os meus beats", explica. 

Como funciona a sua dinâmica de trabalho? Você vende os seus beats? 

Sim! Disponibilizo catálogos de beats no SoundCloud, mas também trabalho com a venda sob encomenda, quando o cliente traz um pedido específico ou alguma referência… Mas não foco tanto em vender beats, pois sinto que ainda estou me descobrindo musicalmente e definindo o meu estilo. Minha prioridade é entender quem eu sou musicalmente, já faz uns anos que estou nessa busca!

Quais são os artistas e/ou produtores que mais te influenciam atualmente?
Uma das minhas maiores referências há alguns anos quando  é o selo Soulection, DKVPZ, Vhoor, kLap, DJ Brum, Wondagurl, mu540, Paul Mond, Kaytranada e J Dilla.

Dola indica: "No Idea" do Don Toliver, produzido pela WondaGurl. Esse som eu deixo no repeat por horas, bom demais!

 

"Percebi que não existia muito da gente"— Th4ys

 

Th4ys (Foto: Reprodução / Instagram)

"Meu pai sempre me colocava na frente do Virtual DJ para eu ficar brincando", conta Th4ys, filha do DJ Dal, referência há mais de 20 anos na cena do Grajaú na Zona Sul. "Mas sempre vi como um hobby de longe".

Frequentadora assídua dos fluxos, Th4ys despertou para o mercado musical quando notou que as produções eram majoritariamente masculinas, principalmente no funk. "Percebi que não existia muito da gente [mulheres]". 

Com ajuda de amigos e amparada por uma rede de referências — Jacquelone, Kenya, Larinhx, DKVPZ —, começou a tocar. "A gente vive em bolhas e algumas pessoas fazem com que você consiga penetrar nessas bolhas, sabe? O que tem de positivo é que a gente tem uma rede muito forte. Temos mulheres que falam: 'ó, eu não posso de fazer isso, mas tem uma amiga que manja fazer esse tipo de trampo, calma que vou indicar'."

Quando está difícil de buscar inspiração para o que ou quem você recorre? 

Não fico me pressionando muito, porque acho que a inspiração vem quando a cabeça está mais limpa, sabe? Então, eu tiro um pouco a pressão de estar produzindo algo. Ocupo a minha cabeça com outras coisas, e quando eu tiro essa cobrança, eu começo a sentir de novo esse feeling de inspiração. Sei lá, ouvi a mulher da novela falando algum bagulho, ouvi alguma música antiga que dá para fazer o remake dela. Coisas aleatórias me ajudam muito na minha cabeça. 

Tem algumas vezes que eu olho umas coisas e fico "hmmm, ref, ref" [referência]. Muito no Twitter também. Teve uma live da Pabllo que ela falou "Ei, ei, ei DJ para o som!" e samplei. Tenho uma pasta de samples, que são assim, maluquice, tem até sample do pica-pau. Gosto muito desse rolê de ver algum vídeo e pensar em sample. 

Se você pudesse fazer o beat ou produzir a faixa de alguém, quem seria? E por quê? 

Faria com a Rihanna, tá ligado? Ela é de Barbados, e querendo ou não, eu tenho um rolê de valorização de reggae igual ela. Em "What's My Name", ela usou um sample de um dancehall muito antigo e é papo de 1990. É muito bom, chama "Hommie". Gosto muito da forma como ela estuda o reggae, então eu produziria para ela. Tenho as minhas maluquices de produzir reggae com funk e acho que ela brisaria muito na minha onda também. 

Curto muito o raggae, vou martelar isso sempre. Temos riddim [ritmos] muito incríveis e devíamos explorar isso. Muitos artistas famosos usam, o Jay-Z, Kanye West, sabe? A própria Rihanna, Beyoncé. Estou estudando muito para colocar em batidas que se encaixam. É ruim porque o BPM [batidas por minuto] é, sei lá, 90, e estou produzindo em 130BPM, então tenho que ficar diminuindo o tom. Mas é muito gostoso aprender. É algo necessário para a gente aprender que dá para fazer vários tipos de batidas e sons com a mesma base, só ir incrementando. 

Qual é o seu próprio beat preferido?

Eu fiz um do DJ Magrão que, caraca, está muito lindo. Não terminei ele, mas soltei no site da NTS (Estação de Rádio londrina) e estou doida para soltar ele. Usei reverb, mudei o tom de voz, está uma delícia. Vai começar e todo mundo vai pensar 'uou, isso é um lowbass' e do nada vai entrar um funkão. Eu gosto muito desse beat, fiz com muita vontade. 

Th4ys indica: Jacquelone, adoro o trabalho dela. Ela tem uma perspectiva muito fod* de produção, sampleia umas maluquices. 


Para o fim da série, cada uma das entrevistadas refletiram sobre as principais dificuldades que sentiram quando entraram neste mercado e compartilharam dicas para as beatmakers e produtoras que estão buscando o próprio espaço. 

NATH: Não queira dar um passo maior que a perna, comece do básico com o que você tem e fazendo o que você sabe e pode fazer, tem muita gente fazendo e conquistando muita coisa, mas o caminho é longo, é aquela coisa de não parar até chegar onde você quer.

Luana Flores: Como a gente está muito no virtual, ainda mais com a pandemia, dá pra ser bem autodidata e tentar acesso a cursos e oficinas online de produção de beats. Muitas dicas massa estão rolando por aí. Participe desses cursos, aproveite os grupos online para tirar as dúvidas e acesse as manas que estão produzindo beat para se fortalecer.

Dola: Mexa em TUDO que estiver à sua disposição no programa que você usa para produzir, mesmo que fique ruim ou "estrague" o que estava fazendo. Nada que um CTRL + Z não resolva. Depois que você souber para que serve cada função ali, vai otimizar muito a sua criação.

Numadessas: Para estudar, o melhor é pegar as pessoas que você gosta e ouvir várias vezes com calma, perceber os instrumentos e assistir vídeos dos produtores fazendo o beat para você ver o processo deles e descobrir novos. Acho que a troca entre os próprios produtores é o melhor jeito de estudar. Tem que estudar para saber de onde vem as coisas, ouvir rap, entender de onde veio aquele sample do beat. Também ouvir pessoas que trabalham bastante com bateria, tipo jazz, para pegar referências. 

Th4ys: Muito da produção é ter organização mental e criar um pattern [padrão]. Eu comecei a entender que se eu não fosse organizada, a minha produção ia flopar. Então, primeiro tem que se organizar e não pegar a base dos outros, referências é tranquilo, tem mil beats aí de toquinhos e latinhas, mas é mais papo de ter uma organização de criar um beat e não sair colando tudo ali. É muito mais fácil quando a gente tem essa percepção de entender BPM, entender tudo. 

 

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