Zé Ramalho volta a lançar disco de composições próprias - Divulgação

O velho e divisível Zé Ramalho

Após cinco anos sem lançar álbuns autorais, Zé Ramalho retorna repleto de composições próprias e mais apocalíptico do que nunca em Sinais dos Tempos

Cristiano Bastos Publicado em 14/07/2012, às 13h22 - Atualizado às 14h47

Não é possível dizer que, algum dia, Zé Ramalho também tenha sido o “velho e indivisível” da mítica canção “Avôhai”, que abre seu primeiro LP, de 1978, feita para seu avô Raimundo. Na verdade, desde o dia em que tirou sua carteira da Ordem dos Músicos, no longínquo 1968, o compositor paraibano de Brejo do Cruz vem se multiplicando em vários. Ainda adolescente, já em João Pessoa, integrou formações como Os Demônios e Os Quatro Loucos e, na virada da década, tocou na banda Eles, de vertente tropicalista, e no conjunto The Gentlemen – tido, à época, como o mais profissional da Paraíba.

Veja fotos da carreira de Zé Ramalho.

Em meados dos anos 70, tornou-se parceiro dos pernambucanos Alceu Valença e de Lula Côrtes [morto em março do ano passado, vítima de um câncer na garganta], com o qual dividiu a autoria do álbum duplo Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol. Lançado pela gravadora recifense Rozemblit, o disco – cuja tiragem desapareceu na grande enchente que submergiu Recife em 1975 –, hoje objeto de culto, está na conta de um dos mais raros e caros da música brasileira. Após longa e prolífica carreira solo (com muitos altos e alguns baixos, algumas quedas e ressurreições) nos anos 80 e 90, na virada do milênio Ramalho encarnou – sem nunca perder autoria de vista, porém – na pele de artistas como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Bob Dylan, com a série Canta. Para a alegria de seu imenso séquito de fãs, em Sinais dos Tempos, seu novo de inéditas depois de cinco anos, ele finalmente voltou a ser Zé Ramalho.

Nesta entrevista, Ramalho, tal qual em sua trajetória de mais de 40 anos, mostrou-se igualmente diverso. Falou sobre temas polêmicos e que ainda lhe são caros, a exemplo da pirataria – para a qual “perdeu a paciência”, embora diga “tê-la entendido”. E aproveitou para criticar veementemente a indústria fonográfica da qual fez parte até pouco tempo: “Tudo está mal no comércio da fonografia. Em relação aos piratas, atualizo meu pensamento sobre eles, dizendo o seguinte: perdi a paciência, mas achei a compreensão”.

O trovador, que lançou Sinais dos Tempos pelo seu recém-inaugurado selo Avôhai Music, ainda adiantou o que os fãs podem aguardar do álbum que vem preparando em parceria com o compositor cearense Raimundo Fagner. “Poderá acontecer em breve”, adianta. Mas, afinal, quais seriam, para ele, os apocalípticos “sinais dos tempos” decantados ao longo das 12 faixas do novo disco? “O total descontrole social da humanidade.”

Quão próximos estamos do anúncio final?

Este anúncio final é a proximidade com a passagem do que se chama de morte. Usei essa expressão também para encerrar essa minha pregação musical de Sinais dos Tempos. Não é nada fatalista, nem tampouco religioso. É uma questão filosófica do nosso lifetime e o ponto final, como eu disse, dessa oratória em forma de melodia, dos pensamentos que eu estou eternizando em música.

Quais, você diria, são os mais aparentes sinais dos tempos?

O total descontrole social da humanidade. Pais que matam filhos, filhos que matam pais, países ricos que vendem armas para o mundo árabe e depois vão lá, caçá-los como animais, voltando como heróis para suas pátrias respectivas. A dissolução do respeito à natureza e as fatais consequências que isso impõe. A decadência da Europa, diante dos modelos econômicos atuais, que afogam e humilham países-sede da cultura ocidental, como a Grécia. Tudo da cultura ocidental vem da Grécia e de Roma, e são lugares que foram explorados, sugados e que estão sendo rejeitados como dejetos da cultura europeia mundial. Esses e outros sinais assombram a mim e aos mais atentos. Discos voadores, seres espaciais, que, não sabendo lidar com isso, apenas achamos graça e catalogamos como invenção ou motivo de chacota. Avançamos em direção a que? Para onde estamos indo? Nosso país tão imenso, que só pensa em Bolsa Família, enquanto a miséria e a pobreza morrem nas filas dos hospitais públicos do Brasil. País sem pobreza, como diz o governo, é que é país rico! E essa pobreza está claramente sucumbindo na triste imagem dos que morrem sem atendimento médico. Isso e outros pontos político-sociais seriam motivo para encher a Rolling Stone de razões do que eu acho sinais dos tempos.


Vivemos uma era de intensidade tecnológica. Seria isso sinal de evolução ou de excesso?

Acho que as duas coisas. Avançamos nessa área tecnológica, informação rápida, precisa e imediata. Todos que têm acesso a smartphones e internet conduzida no bolso da camisa tendem a se inteirar cada vez mais da posição de cada um no mundo. Os que não têm acesso a esta tecnologia, irão lentamente chegando lá. Mas, como não é ainda possível duzentos milhões de brasileiros terem esse acesso, os cinquenta milhões que já transitam com ele representam uma importante estatística desse segmento manipulável.

Em “Indo com o Tempo” (a canção que abre o novo álbum), você canta: “Me lembro claramente de tudo o que eu vivi/ Até a fase negra dela não esqueci”. Quais são as lembranças mais vívidas dessa longa jornada musical? E sobre a “fase negra”, o que ficou de marcante?

Essa longa jornada é presente na minha memória. Os fatos mais marcantes que aconteceram na minha vida pessoal e profissional. O início da jornada aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, tempos difíceis, dormir ao léu, comer só quando aparecia oportunidade, solidão, sem ter com quem dividir as ansiedades profissionais e o asseio individual, mais difícil ainda de ser praticado, quando você está numa situação destas. E tudo isso também foi muito fácil de ser superado. Como eu disse numa das minhas canções antigas: “Eu não vim de longe para me enganar”.

Quanto à fase negra, estará para sempre na minha memória e na minha história. Foram quatro anos difíceis de serem atravessados, nadando num mar de cocaína e vendo a margem salvadora, cada vez mais distante… e tudo isso foram caminhos que me trouxeram até aqui. Tudo foi válido. Todas as lições foram ensinadas. E eu consegui chegar até a praia desse mar e continuar minha caminhada e pregação, desta vez, sem o vacilo e sem a dúvida.

O guitarrista norte-americano de jazz e blues Jesse Robinson emprestou uma pegada bluesy à “Indo com o Tempo”, cujo solo remete a B.B. King. Porque Jesse tocou apenas nessa música?

Ora, já acho até que foi demais! Quando eu fiz essa música, na beira do mar de Cabedelo, na Paraíba, eu me baseei , fazendo a letra, na cadência obrigatória dos blues dos negros norte-americanos e isto foi percebido pelo Jesse, até porque, antes de chegar no Jesse, seria Celso Blues Boy quem pilotaria a guitarra. Na impossibilidade de ter esse genial guitarrista e artista brasileiro, o também genial guitarrista brasileiro Robertinho de Recife estava indo fazer umas sessões no marco zero do blues, no Delta do Mississipi, e levou os arquivos gravados desta canção. Lá, realizou a gravação com o Jesse, que, segundo Robertinho, “matou de primeira”, confirmando assim a linguagem universal da música, onde artistas de países diferentes se comunicam dessa forma: conhecimento, prática e sabedoria, misturadas com talento e mediunidade.

Robertinho de Recife, seu parceiro de longa data, cuidou da produção e arranjou todas as canções. Robertinho é o que melhor lhe entende em estúdio?

Ele arranjou todas as canções junto comigo. É assim que trabalhamos e acho sim, que ele é o único que me entende, por isso estamos há 15 anos trabalhando juntos. É uma forma de desenvolver a criatividade sem parar, porque a cada disco que fazemos somamos algo novo, amadurecemos a prática e a forma como executar as canções em estúdio. E é assim que será, não imagino trabalhar com outra pessoa. Nos completamos através do respeito e admiração mútuas e chegamos a esses resultados infinitamente preciosos. O trabalho é cada vez mais arguto e preciso, em relação ao grande laboratório que é um estúdio de gravação.

Você contou que houve um momento em que você chorou durante a gravação da voz lembrando de várias coisas. Que coisas foram essas?

Esse momento de emoção aconteceu quando estava colocando a voz na música “Sinais”. É uma música que contém uma melodia triste, profunda. Na parte que diz “de chamar tua irmã, que perdeu-se no tempo”, me emocionei lembrando da minha única irmã, que faleceu há alguns anos, vítima de câncer. A música toda em si emociona porque eu estou falando pela humanidade, como se estivesse num confessionário, diante do poder Supremo, maior, e foi assim que aconteceu esse momento tão profundo de interação do artista com sua obra.

Tempos atrás você declarou que não mais pensava gravar discos de estúdio, embora continuasse compondo. O último havia sido Parceria dos Viajantes, de 2007. Sinais dos Tempos foi um chamado?

Acho que sim, porque minha missão, como autor, é continuar servindo aos ouvidos que me dão atenção com minhas ideias e filosofias. Acho que será sempre assim. A gente pensa que vai parar, mas o chamado da profissão me arrasta e me conduz às fontes inspiradoras e a momentos de criatividade.


Zé Ramalho Canta (Bob Dylan, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Beatles). Existe outro engatilhado?

Essa série é basicamente dedicada aos artistas que me influenciaram, ao mesmo tempo que me deleitaram. E pretendo continuar ainda homenageando alguns artistas ou épocas. Talvez o próximo seja Zé Ramalho canta Jovem Guarda, que foi um movimento musical que fez parte da minha juventude, nos anos 60, tocando guitarra em bailes de 4 horas de duração, cantando e vivendo todos esse período romântico, ingênuo e cheio de brilho.

Nesse meio tempo você também lançou o box A Caixa de Pandora. Ainda há muitas cartas na manga que poderão ganhar as prateleiras?

Sempre terei cartas na manga. Sou um cultor e curador do meu próprio arquivo. Possuo gravações que nunca foram ouvidas e que sempre serão uma surpresa quando reveladas, como, por exemplo, uma gravação onde estou cantando tetê-â-tète com o gênio Hermeto Pascoal, entre outras participações minhas em discos de selos alternativos, de que participo frequentemente. E tudo é apenas uma questão de tempo e oportunidade de virar produto.

A pirataria, para a qual você disse “não ter mais paciência”, sinaliza a derrocada do mercado fonográfico?

Tudo está mal no comércio da fonografia de dois anos prá cá. Em relação aos piratas, atualizo meu pensamento sobre eles, dizendo o seguinte: perdi a paciência, mas achei a compreensão. Isto é, não me incomodo mais com as reproduções grotescas, tecnicamente, dos meus discos e DVDs, que serão consumidos por um público de classe social menos favorecida. Se não ganho royalties com essas vendas, ganho, por outro lado, novos fãs e pessoas simples e humildes, que só têm condição de adquirir um CD ou DVD meu comprando nesses fornecedores. Preços baixos, com qualidade também baixa. No fim, o que importa é que estou sendo visto e ouvido em locais em que nem a internet chegou ainda.

Seus últimos cinco anos foram tumultuados. Desde 2005, você buscava na Justiça o direito de poder gravar seus próprios sucessos – um imbróglio que envolveu sua antiga gravadora (Sony) e a editora detentora dos direitos autorais de suas músicas (EMI). Você disse ter saído vencedor dessa batalha, mas chateado. Lançar Sinais dos Tempos pelo recém-fundado selo Avôhai Music foi uma maneira de expurgar tudo isso?

Não de expurgar, mas de me libertar desse ciclo que é artista x gravadora. Cheguei a apresentar Sinais dos Tempos tanto à Sony Music, quanto à Universal. Ambas olharam com desdém para o projeto. Ainda bem que isso aconteceu, porque eu não teria tido o estalo que tive: partir para essa nova empreitada. Isto porque, nestes trinta e cinco anos de gravadoras, aprendi todo o processo de como se lança um disco. Processo para ser posto em prática. Com esse selo Avôhai Music, sou o patrão de mim mesmo. E me associando à Microservice, que fabrica e distribui os discos com segurança em todo o Brasil, vamos tocar este projeto quase como sócios. Os diversos departamentos que formavam as seções de uma gravadora, isto é, marketing e divulgação, terceirizei com investimento que fiz na minha própria carreira. Contratei a agência de Alice Pellegatti (AZ Produções) para colocar na mídia eletrônica, em jornais, revistas, rádios, TVs, etc.. Estou gostando muito de poder fazer o que estou fazendo e, principalmente, de não ter que dar satisfação a nenhum executivo de gravadora.

Você já está em estúdio gravando um álbum com o cantor cearense Raimundo Fagner. Para quando está previsto o lançamento e o que podemos esperar dessa parceria?

Este projeto ainda está em andamento. Fizemos algumas gravações juntos, mas não está concluído. Poderá acontecer em breve, contudo ainda não sentamos para conversar sobre a finalização. Já trabalhamos juntos, participando de discos um do outro. Em dois discos meus ele canta, eu canto em um disco dele e temos uma música em parceria. Há algumas afinidades, além de sermos vizinhos e termos nascido no mesmo ano e no mesmo mês.

Agora que Lula Côrtes faleceu, a quem pertencerá o futuro do disco Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol?

Cristiano, isso faz parte dos “Segredos de Sumé”!

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